Escalada militar na pandemia

Imagem: Elyeser Szturm
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Por JOSÉ LUÍS FIORI* e WILLIAM NOZAKI**

Não se tem dado a devida atenção a uma série de acontecimentos na área militar que têm se desenvolvido, inclusive, como consequência provável da própria “crise bioeconômica”.

“Eu gostaria de enfatizar que qualquer ataque de um submarino americano de mísseis balísticos, independentemente de suas características, será percebido como um ataque com armas nucleares. E, de acordo com nossa doutrina militar, uma ação desse tipo seria considerada motivo para uso retaliatório de armas nucleares pela Rússia” (Maria Zakharova, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Federação Russa).

Quando a China identificou a existência da epidemia do coronavírus, em dezembro de 2019, o mundo já estava sob a pressão de duas grandes forças ou tendências internacionais de longo prazo e altamente corrosivas: a da “saturação sistêmica” [1] e a da “fragmentação ética” [2] em escala global. Desde seu nascimento na Europa, durante o “longo século XVI” (1450-1650), o “sistema interestatal” expandiu-se de forma contínua, e de maneira cada vez mais acelerada, até alcançar sua plena globalização no final do século XX, em uma história que não foi linear.

Esta envolveu uma competição e uma belicosidade quase permanentes entre os Estados que aumentaram seu poder, individual e coletivamente, na forma de grandes “explosões expansivas” como a que estamos vivendo no início do século XXI. Essas “explosões expansivas” começaram no século passado com a plena incorporação de grandes unidades territoriais, como foi o caso da Índia, e depois da China e da Rússia, em um sistema composto por 60 Estados ao fim da Segunda Guerra e que hoje conta com cerca de 200 membros.

No passado, quando ocorreram explosões similares provocadas pelo aumento da pressão competitiva elas foram acompanhadas, invariavelmente, de um aumento da desordem interna do sistema, de um movimento expansivo deste para fora de suas antigas fronteiras e, finalmente, de algum tipo de “guerra hegemônica” que ajudou a refazer a ordem e a hierarquia do sistema depois de sua expansão dentro e fora da Europa. E tudo indica, neste início do século XXI, que a própria tendência à “fragmentação ética” do sistema mundial – em pleno curso – torne o atual processo de explosão e entropia o mais amplo da História.

Esse movimento se tornou mais veloz depois que o governo de Donald Trump passou a atacar e destruir suas antigas alianças e todos os consensos éticos, culturais e institucionais que ordenaram o mundo durante o século XX. Ele abriu mão de uma liderança ética mundial que os Estados Unidos conquistaram depois da Segunda Guerra deixando o sistema mundial sem um poder de arbitragem em última instância, o que deverá se prolongar depois desta crise desenhando um mundo sem nenhum tipo de “pax” seja americana, chinesa, russa, ou mesmo europeia. Neste sentido, se pode afirmar que existe uma alta probabilidade de que o mundo esteja marchando na direção de uma “guerra hegemônica”, inevitável no longo prazo, mesmo que não se possa dizer quando e onde ela ocorrerá.

Foi sobre esse “pano de fundo” que se instalou a pandemia do coronavírus, junto com a “crise do petróleo”, provocando uma devastação imediata na economia mundial, com consequências que devem se prolongar pelos próximos anos. Hoje já existe total consenso sobre a gravidade desta crise, e já é possível antecipar algumas de suas consequências econômicas. No entanto, ainda não se tem dado a devida atenção a uma série de outros acontecimentos na área militar, que têm se desenvolvido, inclusive, como consequência provável da própria “crise bioeconômica”, em particular nas três grandes potências capazes de alterar o rumo do sistema mundial por meio de suas decisões de responsabilidade exclusivamente nacional.

A China, onde a epidemia foi identificada, foi o primeiro país a experimentar o seu impacto econômico, com a interrupção da produção, aumento do desemprego e a ruptura de todos os seus circuitos e fluxos econômicos da produção e do crédito. E foi também o primeiro país a sofrer o impacto político e militar da epidemia, com o enfraquecimento inicial do governo de Xi Jiping, que depois retoma as rédeas da situação com o sucesso de sua política sanitária e começa imediatamente um movimento de afirmação do poder militar chinês no Mar do Sul da China, com o surgimento dentro do próprio país de setores nacionalistas que voltam a propor a ocupação militar imediata de Taiwan. É sabido que a China construiu nos últimos anos uma frota significativa de navios de guerra, submarinos, barcos anfíbios e hoje já dispõe da capacidade de destruir, com mísseis DF-21, qualquer embarcação que navegue a menos de 1.500 km de suas costas, o que tornaria possível uma ofensiva imediata sobre Taiwan, embora esta tenha sido rejeitada pelo governo de Xi Jiping.

No caso da Rússia, o impacto imediato da crise foi ainda mais violento do que na China, devido à dependência fiscal russa do preço internacional do petróleo. E tudo indica que a crise desencadeou ou acelerou uma disputa interna de poder, dentro e fora do Kremlin, envolvendo setores ultraliberais que ainda controlam o Banco Central e as grandes empresas privadas, e setores nacionalistas e militaristas que também estão defendendo uma espécie de “fuga para frente” militar, na direção do Báltico, da Bielorússia e da própria Ucrânia. Ninguém mais duvida que a Rússia já recuperou a sua posição de liderança militar na fronteira tecnológica do desenvolvimento de novas armas estratégicas, com mísseis e armas submarinas hipersônicas que lhe dão uma capacidade de resposta avassaladora, caso se sinta ameaçada.

O mesmo vem acontecendo, de forma ainda mais extensa e visível, nos Estados Unidos, neste momento em que se sentem atacados e fragilizados pelo avanço gigantesco da epidemia e da crise econômica em seu território, e por culpa – em grande medida – do próprio governo de Donald Trump. Este desqualificou a ameaça epidêmica e agora terá que enfrentar uma tentativa de reeleição presidencial que parecia assegurada, mas que já não é mais tão fácil em uma sociedade ainda mais dividida e polarizada com o avanço da epidemia e da crise econômica.

É exatamente isso que parece explicar o grande movimento de reafirmação do poder militar norte-americano em curso em todo o mundo e de forma absolutamente explícita. Seja no Golfo Pérsico, onde os Estados Unidos aumentaram recentemente seu poder de fogo, com um sistema de drones mais modernos e letais (como é o caso do MQ-9 Reaper), junto com um exército de 80 mil homens, agora distribuídos em torno do Irã. E o mesmo está acontecendo na região do Oceano Glacial Ártico, no Mar de Barents, onde a frota naval norte-americana ingressou nas últimas semanas pela primeira vez desde 1980. No mesmo momento em que os EUA e a OTAN realizavam exercícios militares no Mar Báltico, utilizando bombardeiros B-1B supersônicos e com capacidade nuclear, junto com o anúncio da instalação de um novo sistema de foguetes na Europa Central, próximo da fronteira ocidental da Rússia. O mesmo vem se repetindo no Mar do Japão, no Mar do Sul da China, e mais recentemente, no próprio Caribe, com o deslocamento de navios de guerra, destroyers, submarinos e aeronaves de vigilância, que se somaram à IV Frota, e a pressão constante dos Estados Unidos contra o governo venezuelano de Nicolas Maduro.

Tudo isso poderia parecer uma mera “jactância” americana feita com o objetivo ostensivo de escapar de problemas internos através da reafirmação da superioridade militar global inconteste dos Estados Unidos. Sobretudo porque Estados Unidos, China e Rússia, em particular, teriam grande dificuldade econômica de enfrentar uma guerra frontal neste momento e provavelmente ainda por alguns anos. Mas é exatamente neste ponto que aconteceu, nas últimas semanas, uma mudança militar capaz de alterar radicalmente todas as perspectivas e prognósticos futuros.

Foi exatamente aí que as coisas se complicaram, com o anúncio recente de uma “mudança operacional” promovida simultaneamente pelas Forças Armadas norte-americanas e russas. Em primeiro lugar, o governo dos EUA anunciou que já havia tornado operacional o uso de uma bomba nuclear de “baixa intensidade”, com uma potência equivalente a um terço da bomba de Hiroshima (5 kilotons). Além disso, a nova arma, W76-2, seria instalada nos mísseis Trident utilizados pelos 14 submarinos USS Tennesse da frota americana, e poderia ser utilizada pelas Forças Armadas norte-americanas no caso de conflitos ou guerras “limitadas” ou “regionais”.

Em seguida, os EUA anunciaram um exercício militar com simulação de uma guerra nuclear limitada contra a Rússia. E foi como resposta a esse anúncio, e em particular a esse exercício militar americano, que a porta-voz do Departamento de Assuntos Estrangeiros da Rússia, Maria Zakharova, declarou que a Rússia responderia com um ataque nuclear maciço contra os Estados Unidos caso algum submarino americano fizesse qualquer tipo de lançamento de míssil, independentemente de este carregar ogivas atômicas ou não. A partir desse momento, a prática do “bullying militar” contra países considerados adversários ou estratégicos, por parte dos Estados Unidos, transformou-se num jogo extremamente perigoso.

Não é difícil de calcular as consequências dessa simples “mudança operacional” num mundo em plena transformação provocada por sua “saturação sistêmica” e “fragmentação ética” sem contar com qualquer tipo de instituição, autoridade ou poder capaz de arbitrar divergências, e sem nenhum tipo de liderança com legitimidade universal. Num mundo como este, esgotada a diplomacia, só restam as armas e a partir de agora qualquer falha involuntária ou erro de cálculo pode transformar um conflito regional numa catástrofe de grandes proporções. Isto vale para o Golfo Pérsico, bem como para o Mar do Sul da China, e também para o Caribe, dada a disputa entre os Estados Unidos e a Venezuela que envolve ainda os interesses econômicos da China e a proteção militar da Rússia.

Normalmente, seria muito pouco provável que os Estados Unidos aceitassem ou iniciassem uma escalada atômica dentro do seu próprio “hemisfério ocidental” e junto de suas fronteiras. De fato, é muito pouco provável, mas não é impossível porque uma vez anunciada a decisão de resposta mútua com armas nucleares limitadas entre EUA e Rússia já não se pode excluir a possibilidade, mesmo que remota, de um conflito atômico, ainda que acidental, no Caribe e na Amazônia Sul-Americana.

A simples existência dessa possibilidade obriga a uma mudança radical da sociedade brasileira com relação a suas próprias Forças Armadas que não têm representação nem o direito de impor aos brasileiros a vassalagem militar com relação aos Estados Unidos, pois isso pode induzir o Brasil e os brasileiros a cometer um crime abominável contra seu próprio povo, contra seus irmãos latino-americanos e contra toda a humanidade.

*José Luis Fiori é professor de economia política internacional na UFRJ. Autor, entre outros livros de Sobre a Guerra (Vozes, 2018).

**William Nozaki é professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e diretor técnico do Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP).

Notas

[1] José Luís Fiori. O Poder Global e a Nova Geopolítica das Nações. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 40.

[2] José Luís Fiori. “Ética cultural e guerra infinita”. In: Sobre a Guerra. Petrópolis: Vozes, 2018, p. 398.

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