Acordos internacionais

Marina Gusmão, Peão.
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Por PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.*

Armadilhas para um futuro governo brasileiro.

O Brasil participa atualmente de duas negociações econômicas de importância estratégica – importância muito mais negativa do que positiva, como vou explicar. Refiro-me ao acordo Mercosul/União Europeia e à entrada do Brasil na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). As duas remontam ao governo Temer, que decidiu pleitear o ingresso na OCDE e retomar negociações antigas com a União Europeia. Foram levadas adiante pelo governo Bolsonaro, mas estão basicamente paralisadas, por obra das suas políticas climáticas. Dificilmente serão concluídas enquanto o governo não for substituído ou não mudar suas políticas nessa área (e a primeira hipótese parece mais fácil do que segunda!).

As duas questões devem ficar para um outro governo, que começará em janeiro de 2023, admitindo-se que Bolsonaro chegue ao final do seu mandato, mas não alcance a reeleição. (Deixo de lado, neste artigo, a possibilidade – a melhor para o País – de que o seu mandato acabe sendo abreviado, terminando antes das eleições de 2022.)

Do governo Bolsonaro, um dos poucos bons resultados – completamente involuntário – é o de ter inviabilizado, com suas políticas de destruição ambiental, tanto a entrada na OCDE quanto a ratificação do acordo com a União Europeia. Como diz meu amigo Gabriel Ciríaco, “há Salles que vêm para bem”. Diga-se de passagem, que uma administração Mourão, que adotaria presumivelmente política ambiental mais civilizada, traria a desvantagem de talvez viabilizar a conclusão dessas duas iniciativas, emparedando o próximo governo.

Porém, o mais provável é que Lula ou Ciro Gomes, ambos defensores de políticas de desenvolvimento, venham a ser confrontados, se eleitos, com as duas em aberto: a) um acordo pronto ou praticamente pronto, mas ainda não ratificado, entre o Mercosul e a União Europeia; e b) um processo relativamente adiantado de preparação para a entrada do País na OCDE. Como nem Ciro nem Lula dariam continuidade aos descalabros ambientais do atual governo, o caminho estaria aberto para finalizar as negociações internacionais em curso. Pequeno problema: elas se chocam frontalmente com a autonomia das políticas nacionais de desenvolvimento.

Se, por outro lado, o vencedor das eleições for alguém da direita tradicional, não-bolsonarista, digamos Mandetta, Dória ou Jereissati, é provável que a questão se coloque de outra forma e sem grandes dificuldades, pois a finalização das duas negociações se enquadra perfeitamente na agenda neoliberal tradicionalmente defendidas pelas forças políticas que eles representam.

Quais são os argumentos neoliberais? São, em boa medida, genéricos ou de natureza ideológica, do tipo “O Brasil precisa estreitar laços com os países mais avançados”, “não podemos ficar restritos ao mundo emergente e em desenvolvimento”, “precisamos modernizar e abrir a economia”, “temos de aprimorar nossas leis e regulamentos e obter um selo de qualidade”. Conversa que não comove nenhum país emergente que tenha noção dos seus objetivos de longo prazo e da importância de conservar margem de manobra na definição de políticas públicas.

OCDE: órgão pesadamente normativo

A OCDE, leitor, não é um clube confortável em Paris, com toalhas felpudas e outras amenidades. Não é apenas um fórum de discussão, onde nossa voz seria ouvida se nos tornássemos membros. Trata-se de um organismo normativo, que estabelece diferentes tipos de compromissos e obrigações para seus países membros. Ela existe desde 1961 e se cristalizou como organismo que reflete, de forma infalível, as prioridades e interesses dos Estados Unidos, dos principais países da Europa e de outras nações desenvolvidas. Os emergentes que lá figuram são meros coadjuvantes, sem peso real na definição das normas da instituição, há muito consolidadas pelos desenvolvidos. Na prática, são sócios de segunda classe, que aceitam limitar suas políticas em troca do prestígio de participar do “clube dos ricos”.

O Brasil está, desde 2017, na fila dos candidatos e vem se esforçando para atender os requisitos e exigências. Sintomático que o secretário-geral da OCDE, o mexicano Angel Gurría, tenha afirmado recentemente que, entre os seis candidatos atuais, “o Brasil tem enorme vantagem, faz parte da família e já está na cozinha”. De lá não sairá… Pode até ser aceito como membro, mas continuará na cozinha da OCDE na companhia de México, Colômbia, Chile e Costa Rica.

Os compromissos exigidos pela OCDE são mais amplos do que os de outras instituições multilaterais. No campo dos movimentos internacionais de capital, por exemplo, a OCDE é bem mais rigorosa do que o FMI na busca de compromissos de liberalização. Quando eu era diretor do Brasil e de outros países no FMI, houve tentativas de importar aspectos das normas da OCDE nesse tema. Não sendo o Brasil membro da OCDE, eu podia me opor a isso com sucesso, assim como fazia o ministro Mantega nas reuniões do conselho ministerial do FMI.

Não é por acaso que nenhum dos outros países dos BRICS está pleiteando ingresso na OCDE. Rússia, Índia e China são grandes países emergentes que prezam a sua autonomia estratégica. Mesmo a África do Sul, menor e potencialmente mais vulnerável às pressões ocidentais, não faz questão (até onde sei) de entrar nesse clube.

Acordo Mercosul/União Europeia: poucas vantagens, muitas limitações

O acordo Mercosul/União Europeia também é altamente problemático. A negociação propriamente dita já foi concluída; o acordo encontra-se em fase de revisão jurídica e tradução para depois ser encaminhado aos Parlamentos. Engana-se quem pensa que se trata de um acordo de livre-comércio. Não é. E por duas razões. Primeira: os europeus se reservam o direito de proteger, de formas variadas, a sua agricultura contra a concorrência dos produtores mais competitivos do Mercosul. O acordo proporciona, na verdade, pouco acesso adicional aos mercados da União Europeia. Mas abre, por outro lado, os mercados do Mercosul para as exportações industriais europeias por meio da diminuição das tarifas de importação.

Segunda razão: o acordo vai muito além do comércio de bens para estabelecer obrigações em áreas como serviços, investimentos, competição, solução de controvérsias, propriedade intelectual (inclusive indicações geográficas), compras governamentais e proteção do meio ambiente. No que se refere a compras governamentais, por exemplo, o acordo coloca em pé de igualdade as empresas do Mercosul com as empresas europeias industriais e de serviços, mais avançadas tecnologicamente e mais competitivas.

No frigir dos ovos, obtém-se um pouco de acesso adicional ao mercado europeu em troca de:  a) abertura dos mercados do Mercosul para as exportações industriais da Alemanha e outros países; e b) severa limitação de políticas governamentais em diversas áreas.

Não por acaso, um negociador europeu foi flagrado confessando que “we got way with murder on this deal” (em tradução livre: obtivemos tantas concessões que o acordo foi um assassinato). A inconfidência não surpreende. Nos seus aspectos principais, o acordo foi concluído em 2019, no primeiro ano do incompetente governo Bolsonaro e na reta final de um governo fraco na Argentina, o de Macri.

Vamos ter que nos livrar desse entulho todo.

O que fazer?

          Um futuro governo brasileiro pode desativar as duas armadilhas (e outras, não abordadas neste artigo) sem confrontação e sem alarde. Seria fazer algo semelhante ao que fez o governo Lula com a ALCA (Área de Livre Comércio das Américas) em 2003 e 2004, acordo que serve de matriz, aliás, para o acordo Mercosul/União Europeia. Graças à ação inteligente e habilidosa de Celso Amorim, Samuel Pinheiro Guimarães e Adhemar Bahadian, sem barulho e sem brigar com ninguém, o Brasil impediu a concretização da ALCA, que o governo Fernando Henrique Cardoso, submisso às orientações dos Estados Unidos, havia deixado praticamente pronta. Não restou aos americanos outra alternativa do que negociar acordos bilaterais no modelo ALCA com alguns países latino-americanos. O Mercosul ficou de fora.

No que diz respeito à OCDE, basta abandonar o pedido de ingresso e continuar como parceiro-chave da organização, participando sempre que possível e conveniente de discussões sobre temas de nosso interesse. Os regulamentos e as práticas recomendados pela OCDE que forem úteis para a nossa economia e o nosso desenvolvimento podem ser adotados em âmbito nacional, sem estreitar por compromisso internacional o espaço de atuação do País em áreas de interesse estratégico.

No que se refere ao acordo Mercosul/União Europeia, o natural seria buscar uma redefinição do acordo, buscando maior equilíbrio em várias áreas. Os europeus nem teriam condições de denunciar uma volta atrás, posto que eles mesmo vêm tentando reabrir o acordo concluído em 2019 para introduzir mais compromissos e obrigações na área ambiental. Se for possível reequilibrar o acordo, ótimo. Se não, continuaremos a prezar e desenvolver as nossas relações econômicas com o bloco europeu, sem amarrar-nos a compromissos internacionais desequilibrados e invasivos.

Em tudo isso, o fundamental é nunca esquecer que o Brasil não pode abrir mão da sua capacidade de desenvolvimento nacional independente.

Paulo Nogueira Batista Jr. foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países. Autor, entre outros livros, de O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata (LeYa).

Versão ampliada de artigo publicado na revista Carta Capital, em 28 de maio de 2021.

 

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