Por RAFAEL VALLES*
Comentário sobre o filme dirigido por Eduardo Escorel
Logo no primeiro plano de Antonio Candido — anotações finais vemos, desde a sacada de um edifício, a chuva e uma grande quantidade de prédios vizinhos que compõem uma paisagem fria e melancólica. Acompanhando essa imagem, escutamos o narrador dizer: “Na madrugada de 12 de maio, oito meses antes dessa tarde de chuva em São Paulo, eu morri. Ao morrer, deixei meus cadernos de anotações no armário do corredor interno do apartamento onde morava há 21 anos”. A voz do narrador, interpretada pelo ator Matheus Nachtergaele, é serena, sem revelar emoções, como se a constatação da morte pudesse ser calma, natural, esperada.
Tanto nesse texto introdutório elaborado por Eduardo Escorel para apresentar os protagonistas do filme (Antonio Candido e os seus cadernos) como na composição visual e sonora dessa cena, é possível encontrar o tom do filme. Também é possível identificar uma conexão com o texto que o cineasta tomou como ponto de partida para a realização deste documentário.
Já na introdução de O pranto dos livros, de Antonio Candido, escrito em 1997 (e publicado na Revista Piauí em outubro de 2018), o autor afirma: “o mundo não existe mais para mim, mas continua sem mim. O tempo não se altera por causa da minha morte, as pessoas continuam a trabalhar e a passear, os amigos misturam alguma tristeza com as preocupações da hora e lembram de mim apenas por intervalos”.
Mais adiante, ao descrever o que seria sua imaginária cremação, o autor comenta: “Foi o fogo sutil, levíssimo, que consumiu a minha roupa, a minha calva, os meus sapatos, as minhas carnes insossas e os meus ossos frágeis”. Numa mesma frase, a densidade dramática das imagens que descreve e a serenidade na forma como narra. Antonio Candido — anotações finais é um filme que entende esses entrelaçamentos construídos pelo sociólogo e crítico literário, um dos principais intelectuais que o país já teve.
O documentário faz escolhas narrativas que ressaltam essa mescla entre a densidade e a serenidade nas palavras de Antonio Candido. Ao abandonar os caminhos mais previsíveis para o gênero documental (o filme não apresenta entrevistas nem depoimentos de amigos, de familiares ou do próprio personagem, com exceção para a sequência final), Eduardo Escorel coloca o protagonismo nos cadernos, nas anotações que povoaram os pensamentos de Antonio Candido em seus três últimos anos de vida (2015-2017).
Não faltam reflexões sobre a velhice, o luto, a morte, a cultura brasileira, mas todas expõem certo grau de serenidade, no qual mesmo os antagonismos podem permanecer em relativa harmonia (“Ao acordar me veio a ideia que talvez eu já tenho ultrapassado a hora certa para morrer”). Nesse sentido, as palavras amortecem a dor, convivem com Antonio Candido num exercício literário constante que busca aplacar as adversidades impostas pela idade (“Note bem. Uma das coisas boas é reduzir a vida a palavras. Elas podem ser uma espécie de sobrevida”).
Nessa sobrevida, os textos mostram um personagem que, mesmo retirado da vida pública, não estava alienado em relação ao que ocorria no país naquele momento. Assim como Antonio Candido vivia o seu “apagar da vida” (“Sou um inativo político, nem quero ser outra coisa no meu apagar da vida”), o país também vivia o “apagar da sua democracia”.
Embora consciente da gravidade de acontecimentos como o impeachment da presidente Dilma Rousseff, o golpe capitaneado por Eduardo Cunha (então presidente da Câmara dos Deputados), a iminente prisão de Lula e a apreensão de documentos do PT pela Polícia Federal, Antonio Candido procurava manter sua serenidade (“Não entro no ritmo de desespero em face do incomensurável descalabro em que vive o país”).
Mesmo sem ter presenciado a Era Bolsonaro, também tinha consciência do estado tenebroso que a política brasileira atravessava (“No futuro, quando estudarem o nosso tempo, ficarão perplexos como nós ficamos”), inclusive aponta um caminho que, até hoje, o campo progressista não conseguiu encontrar, no que se diz respeito a Lula e ao Partido dos Trabalhadores (“Chego a pensar que tanto o partido como a sua principal figura já cumpriram a missão histórica que lhes coube. Cabe agora uma nova onda”).
A serenidade reflexiva das palavras de Antonio Candido só consegue ceder terreno para um tom mais emotivo quando as anotações se referem a sua esposa Gilda de Mello e Souza, filósofa e crítica literária, falecida no ano de 2005. É também o único momento do filme em que os textos estão direcionados a alguém em especial (as suas filhas), quando ele afirma: “às vezes sinto a realidade da sua mãe de um modo tão intenso que é como se ela estivesse viva, me animando com a sua graça e o seu encanto incomparáveis. E eu penso: o que estou ainda fazendo por aqui?”.
Mais adiante, ele afirma: “Ter vivido com ela me parece a justificação de toda uma vida”. Subjacente à intensidade dessas frases, prossegue a voz interpretada por Matheus Nachtergaele com um tom sereno e sutil, respeitando os tempos de cada palavra, acentuando, com a devida moderação, os sentimentos expressados por Antonio Candido.
O mesmo pode ser dito acerca da sobriedade das cores do filme e da escolha de enquadramentos que revelam os diferentes espaços da casa (muito bem realizados por Carlos Ebert e Guilherme Maranhão), assim como o trabalho de edição de Laís Lifschitz e do próprio Eduardo Escorel (que pelo ritmo de montagem mais cadenciado, não por acaso nos remete ao documentário Santiago (2007) de João Moreira Salles, com montagem também de Eduardo Escorel). Com sua discrição sonora e visual, com uma narrativa que mantém certa distância do apelo emotivo, Antonio Candido — anotações finais parece um filme de outro tempo, com um personagem de outro tempo. No entanto — e isso é importante frisar —, com a consciência do seu tempo presente.
Mesmo tocando em temas como a crise política no país, a definição dos termos “liberdade” e “igualdade”, a importância de se pensar os negros na construção da cultura brasileira, o filme não cai em generalidades, porque entende que, nas palavras de Antonio Candido, encontramos uma potência reflexiva que tanto nos faz falta hoje em dia (“A gente vai vendo, vai ficando velho, vai vendo os governos sucederem, as utopias desmoronarem e a gente pensa, a curto prazo, será que nós temos solução pra isso?”).
Em tempos nos quais as palavras estão sendo tão maltratadas e vulgarizadas, o documentário abre as portas para a moderação e a lucidez de um intelectual diante de seu universo mais íntimo, as anotações cotidianas de seus cadernos, hábito que manteve desde os seus quinze anos de idade até os seus últimos dias de vida.
*Rafael Valles é escritor, realizador audiovisual. Doutor em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Autor, entre outros livros, de Ensaio sobre o Grito. Realizou, entre outros filmes, Em busca de Jonas Mekas.
Referência
Antonio Candido — anotações finais
Brasil, 2024, documentário, 83 minutos.
Direção: Eduardo Escorel.
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