A dissonância do ministério da defesa

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MANUEL DOMINGOS NETO*

Observando com cuidado as declarações do Ministro, ficou escancarada a dissonância da Defesa com a orientação governamental, revelando o despreparo do Estado para defender a sociedade brasileira

Lula considerou José Múcio Monteiro o mais hábil dos ministros da Defesa. Referia-se ao cumprimento do papel que lhe atribuíra, de apaziguar a caserna excitada.

Político de direita, apoiador da ditadura, defensor de golpistas acampados em torno de quartéis, jejuno em assuntos da pasta, José Múcio Monteiro empenhou-se em demonstrar aos comandantes a boa vontade do presidente para com as fileiras. Não assumiu de fato a posição que lhe competia, de formulador e condutor de política pública: agiu como porta-voz das corporações.

Essa semana José Múcio Monteiro desautorizou a política externa de Lula posto que prejudicaria a Defesa. Reagiu à decisão presidencial de suspender provisoriamente a compra de material de artilharia da empresa Elbit Systems, sediada em Israel. Insinuou, apelativamente, que essa posição discriminaria o “povo judeu”.

Desde quando a Defesa pode prevalecer sobre a política externa? Força militar existe para amparar decisões da chefia de Estado.

Para ser eficaz, a Defesa nacional precisaria conjugar-se às variadas funções públicas. Em abrangência e complexidade, talvez a defesa rivalize apenas com a política cultural, que responde em boa dose pelo amor-próprio de uma ampla e diversificada coletividade. Defesa não deve ser conduzida por comandantes guiados por viés corporativo.

José Múcio Monteiro considera que a diplomacia deve subordinar-se ao quartel. Assim, afronta o Chefe de Estado, que define a política externa.

O Ministro exprimiu a chateação de oficiais dedicados, durante anos, a preparar a licitação que resultou na escolha do obuseiro Atmos 155/52, montado sobre um veículo tcheco e apto para usar munição produzida por países da OTAN.

A empresa brasileira Ares Aeroespacial e Defesa foi definida como montadora das peças e responsável pela manutenção técnica.

Ao preparar a compra do obuseiro, o Exército não levou em conta a possibilidade de o Brasil desvencilhar-se do esquema militar comandado por Washington. Desde a Segunda Guerra, a defesa brasileira nunca foi objetivamente pensada para atuar fora do arco da OTAN.

Os comandos sempre arguiram fantasiosa isenção ideológica. Imaginam-se portadores de racionalidade técnica refratária às paixões, tidas como abomináveis. Incorporaram o discurso conservador, usando o termo “ideologia” para carimbar proposições estabelecidas na Constituição e na legislação internacional endossada pelo Estado brasileiro.

Negociar armas com beligerantes é sempre decisão estratégica ideologicamente calcada. Postura sem cabimento seria reforçar a indústria de guerra de Israel e enviar socorro humanitário para suas vítimas.

O Estado israelita é acusado de crime hediondo. Temendo processos na Corte Internacional, a Alemanha, recentemente, suspendeu vendas de material de guerra para Israel. Negociar armas com Telavive é contribuir para aumentar a poça de sangue.

A bem da verdade, os obuseiros objeto de licitação recebem componentes de diversos países. Não são armas puramente israelitas. No Ocidente, a indústria de armamento é fortemente internacionalizada. O avião de carga Embraer C-390 Millennium, orgulho nacional, usa componentes de diversos países, inclusive de Israel.

A decisão sobre compras de material de guerra é essencialmente política. Jamais pode ser resumida ao exame dito técnico. Implica definição de aliados estratégicos. Ninguém negocia armas com potenciais inimigos. A compra suprime a capacidade de decisão do cliente e poderia ser inútil em decorrência dos problemas de manutenção.

Repito o que escrevi muitas vezes: comprador de armas estrangeiras vende a alma ao diabo. Foi Maquiavel o primeiro a mostrar a fragilidade do Príncipe equipado com armas alheias.

A manifestação de José Múcio Monteiro bateu de frente com a orientação de Lula, que condena a chacina de palestinos em Gaza e as bestialidades do governo israelense no Líbano. Telavive classificou Lula como “persona non grata”. Se Lula abonasse a compra dos obuseiros incorreria, no mínimo, em falta de zelo com a dignidade brasileira. Absurda, portanto, a manifestação de José Múcio Monteiro.

Diante do desalinhamento explícito do Ministro, alguns acham que o presidente deveria demiti-lo. Seria forte recado às corporações e para ser consequente, caberia revisão da defesa nacional, algo distante de suas intenções.

Com justa razão, muitos se indignaram com as palavras de José Múcio Monteiro, que bateu também nas prescrições constitucionais relativas à proteção dos povos originários.

Observando com cuidado as declarações do Ministro, ficou escancarada a dissonância da Defesa com a orientação governamental. A gravidade desse desacordo se amplia em virtude do clima de guerra reinante na cena internacional. Revela o despreparo do Estado para defender a sociedade brasileira.

*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED). Autor, entre outros livros de O que fazer com o militar — Anotações para uma nova Defesa Nacional (Gabinete de Leitura). [https://amzn.to/3URM7ai]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • O veto à Venezuela nos BRICSMÁQUINAS FOTOGRÁFICAS 19/11/2024 Por GIOVANNI MESQUITA: Qual seria o maior desaforo ao imperialismo, colocar a Venezuela nos BRICS ou criar os BRICS?
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • Balanço da esquerda no final de 2024Renato Janine Ribeiro 19/11/2024 Por RENATO JANINE RIBEIRO: A realidade impõe desde já entender que o campo da esquerda, especialmente o PT, não tem alternativa a não ser o nome de Luiz Inácio Lula da Silva para 2026
  • Notas sobre a disputa em São Paulogilberto maringoni 18/11/2024 Por GILBERTO MARINGONI: É preciso recuperar a rebeldia da esquerda. Se alguém chegasse de Marte e fosse acompanhar um debate de TV, seria difícil dizer quem seria o candidato de esquerda, ou de oposição
  • O perde-ganha eleitoralJean-Marc-von-der-Weid3 17/11/2024 Por JEAN MARC VON DER WEID: Quem acreditou numa vitória da esquerda nas eleições de 2024 estava vivendo no mundo das fadas e dos elfos

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES