Guerra contra o Paraguai — 160 anos

Imagem: João Saplak
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Por RONALD LEÓN NÚÑEZ*

O aparente e o essencial na interpretação da Guerra contra o Paraguai

Passaram-se 160 anos desde o início da guerra contra o Paraguai. A data do início, como quase todos os aspectos do conflito, continua sendo objeto de grande controvérsia. Dada a influência que detém a narrativa nacionalista, positivista e militarista estruturada em torno da teoria do grande homem, o peso dos detalhes não deve surpreender.

Se o que se pretende é uma análise estrutural, que implique interpretar processos complexos com enfoque totalizante para aproximar-nos da definição da natureza daquela guerra, enredar-se em estabelecer “datas exatas” não é irrelevante, porém é secundário.

Expliquemos melhor este ponto. O general Carl Von Clausewitz, teórico da ciência militar, propôs que “a guerra nada mais é do que a continuação da política por outros meios”. Se aceitarmos essa definição, entenderemos que as guerras nunca são eventos isolados e repentinos, desconectados de eventos anteriores na esfera sociopolítica. “Na guerra,”, escreve o militar prussiano, “devemos começar olhando para a natureza do todo; porque aqui, mais do que em qualquer outro assunto, a parte e o todo devem ser sempre pensados juntos”. Se unicamente o estudo e o esclarecimento da globalidade possibilitam ir além do aparente, o esforço para reduzir esse processo — necessariamente contraditório e dilatado no tempo a uma data, revela estreiteza intelectual.

É claro que, em termos políticos, a questão da data responde à necessidade de estabelecer historicamente qual foi o “país agressor”. A propaganda aliada e, posteriormente, a escola liberal, atribui essa responsabilidade exclusivamente ao Paraguai. A intenção é, evidentemente, justificar o Tratado da Tríplice Aliança e a subsequente campanha militar em solo paraguaio como medidas legítimas e inevitáveis para defender a honra nacional de seus países, manchada pelo ataque traiçoeiro de uma nação “bárbara”.

Solano López iniciou as hostilidades com o Brasil e a Argentina. É um fato. No entanto, isolá-lo do contexto e da dinâmica geral da política prévia, para basear-se apenas no critério de “quem disparou o primeiro tiro”, é outro exemplo do tipo de raciocínio superficial que acabamos de criticar.

O estopim, na perspectiva de Assunção, foi a penetração das tropas brasileiras no Uruguai, então governado por um partido próximo ao regime lopista, iniciada em 12 de outubro de 1864. López, como se sabe, havia advertido explicitamente Rio de Janeiro de que uma invasão terrestre do país oriental seria considerada um casus belli. Esse fato não pode ser omitido. O ditador estava convencido que o controle de Montevidéu pelas duas maiores potências regionais, além de estrangular o comércio exterior controlado por sua família um punhado de “cidadãos-proprietários”, era um primeiro passo para, em um segundo ato, acabar com a soberania paraguaia e, com ela, com seu próprio regime.

Com esse raciocínio, e mal informado, ele decidiu atacar primeiro, contando com a improvável convergência de uma série de fatores favoráveis que nunca ocorreram. Solano López, um militar intempestivo e medíocre, errou em quase todos os seus cálculos político-militares, principalmente em seus primeiros movimentos ofensivos. Contudo, não se pode dizer que a hipótese de que a independência de seu país — no qual ele se considerava “o Estado” — estaria em perigo devido à inusitada aliança brasileiro-portenha que atacava o Uruguai não tinha fundamentos recentes e históricos.

A ameaça existia. Como o regime paraguaio reagiu a ela é outra discussão. Portanto, se considerarmos a dinâmica dos eventos, parece correto considerar que o fato decisivo que colocou a crise regional em um ponto sem retorno ocorreu em 12 de outubro de 1864, quando a monarquia escravocrata brasileira, sabendo da potencial reação paraguaia, colocou suas botas no Uruguai. Isso selou, na prática, a aliança militar entre o Rio de Janeiro, Buenos Aires e a fração colorada liderada pelo caudilho uruguaio Venâncio Flores contra o governo do Partido Branco. A mesma que, meses depois, marcharia sobre o Paraguai.

Se analisarmos a crise regional de 1863-64 sem omitir o papel expansionista e opressor que, historicamente, portenhos e luso-brasileiros exerceram sobre o Paraguai, não é tão difícil entender que, embora Solano López tenha tomado a iniciativa militar contra seus poderosos vizinhos, ele o fez em meio a uma situação defensiva, com intuito predominantemente preventivo. Essa aparente contradição consistiu mais em “atacar primeiro” para ganhar tempo e terreno e, assim, criar um cenário — uma negociação? — mais vantajoso.

Obviamente, ninguém sabe o que Solano López tinha em mente. Todavia, a hipótese anterior é muito mais plausível, tendo em vista a dinâmica do todo, do que a cantilena liberal sobre o suposto “Napoleão do Prata”, cujos planos expansionistas incontroláveis levaram-no a acreditar “…que poderia derrotar as nações vizinhas e conquistar porções de seus territórios”.[i]

O essencial

Entretanto, insistimos, a efeméride não deve girar em torno da própria efeméride. Ela deve propiciar, principalmente, o debate sobre a natureza da Guerra Guasu, o ponto nevrálgico das principais interpretações historiográficas.

Por parte dos governos aliados, não foi uma guerra justa. Não foi, como a propaganda liberal sustentou e seus atuais herdeiros na academia e na imprensa corporativa repetem, a expiação civilizatória de um povo bárbaro, embrutecido por um tirano, por mais que Solano López tenha sido, de fato, um ditador.

A essência da guerra também não consistiu, como argumenta a ala esquerda do revisionismo, em um confronto épico entre uma potência industrial e cultural em ascensão, com elementos “protossocialistas”, contra o Império Britânico e seus fantoches, liderados por um marechal progressista, americanista e anti-imperialista, suposto precursor de Fidel Castro, Salvador Allende ou Hugo Chávez.

Está demonstrado que, apesar da notável modernização e dos avanços técnicos introduzidos nas comunicações e na esfera militar na década anterior ao conflito, nem o Paraguai era uma potência econômica — nem mesmo em relação a seus vizinhos— nem Solano López, representante da oligarquia mais poderosa da história desse país, tinha um pingo de “anti-imperialismo” — uma interpretação, aliás, escandalosamente anacrônica. A adesão ao culto à personalidade de Solano López por quase toda a esquerda paraguaia não implica em nenhum anti-imperialismo, mas na substituição de uma perspectiva de classe por um nacionalismo reacionário e rançoso.

Defendo que as interpretações tradicionais, do liberalismo e do revisionismo e suas ramificações, propõem premissas e conclusões erradas sobre a natureza dessa guerra. Principalmente, elas pressupõem cosmovisões burguesas da história, à medida dos interesses de uma ou outra fração das classes dominantes.

Assim, por um lado, a escola (neo)liberal apoia as burguesias vencedoras; por outro, o chamado revisionismo capitula à burguesia do país derrotado. A tal ponto que, no Paraguai, tanto a ultradireita colorada[ii] quanto a esquerda reformista e “democrática-popular” curvam-se diante do altar do oligarca Solano López.

Se as principais interpretações propõem conclusões falsas, qual foi, então, o caráter da Guerra? Para responder a essa pergunta, devemos retomar a máxima de Clausewitz: partir de uma análise do todo, da política prévia dos beligerantes, ou seja, das pretensões políticas que, como sabemos, sempre contém interesses materiais.

Sob essa perspectiva, é possível afirmar que a Tríplice Aliança promoveu uma guerra reacionária de conquista e extermínio de uma nacionalidade pequena, pobre e oprimida. Os fatos são irrefutáveis. O Paraguai perdeu dois terços de sua população total, uma hecatombe demográfica poucas vezes vista na história mundial; foi ocupado militarmente até 1879; suportou a imposição de uma dívida imoral com seus algozes até 1942-43; perdeu 40% de seu território; e foi reduzido, até hoje, à condição de Estado satélite, não só dos imperialismos hegemônicos dos séculos XIX e XX, mas também das duas burguesias regionais mais poderosas. O Paraguai sofreu uma derrota nacional de proporções históricas. Nada poderia estar mais distante da civilização e da liberdade prometidas pelas capitais aliadas.

Alguns autores liberais admitem as consequências catastróficas para o país derrotado. Entretanto, não responsabilizam a política da Tríplice Aliança. Argumentam que a debacle paraguaia se deveu à dinâmica da guerra — a “mão invisível” da guerra? — e, de modo repugnante, sugerem que o povo paraguaio é o culpado por seu próprio infortúnio, uma vez que, animalizado e tiranizado, não soube render-se aos invasores.

Esse caráter de conquista e extermínio, no entanto, não deriva, pelo menos não exclusivamente, da dinâmica imprevisível de qualquer guerra. Não: ele é anterior a ela. Foi consagrado no próprio Tratado da Tríplice Aliança — no início das hostilidades —, que estabeleceu de antemão a pilhagem e a divisão territorial do vencido, prostrando-o definitivamente. A dinâmica militar respondeu a essa política geral.

Por outro lado, se analisarmos a natureza da guerra a partir da posição do Paraguai, entendido como uma nação historicamente oprimida, a conclusão é oposta: a resistência popular à invasão dos Aliados, que logo assumiu a dimensão de uma guerra total, foi uma causa justa e, portanto, uma guerra justa. E esse caráter independe da natureza oligárquica e da condução militar medíocre do regime de Solano López. A guerra justa, por parte dos paraguaios comuns, não tem que ver com o indivíduo Solano López, mas com a defesa do direito à autodeterminação e, a partir de certo ponto, de sua própria existência como nação. Isso é o que a esquerda nacionalista não admite.

A abordagem marxista, pelo contrário, nunca omite que, embora a defesa da autodeterminação antes e durante as hostilidades fosse um objetivo compartilhado pela oligarquia lopista e pelo povo despossuído, ambos enfrentaram esse perigo existencial com base em interesses de classe opostos. A falha teórico-programática fundamental da esquerda nacionalista está na negação dessa premissa, tão fundamental quanto a anterior.

Nesses termos, fica claro que a principal polêmica política é com a corrente liberal e com todos aqueles que, de uma forma ou de outra, justificam ou atenuam a essência conquistadora da Tríplice Aliança. A questão, do ponto de vista marxista, é que a crítica da “história escrita pelos vencedores” não pode ser feita aderindo às teses revisionistas, ou seja, capitulando ao culto à personalidade de Solano López ou dos caudilhos federais argentinos, representantes de um setor de classe tão oligárquico quanto os liberais do Rio da Prata.

Entender o passado para transformar o presente

O estudo do passado não deve ser um fim em si. Deve servir para compreender e transformar o presente, para elucidar problemas teóricos e históricos, buscando formular, com rigor, respostas programáticas adequadas aos flagelos das classes exploradas e, quando apropriado, das nações oprimidas.

Portanto, a guerra contra o Paraguai não pertence a um passado morto, sem conexão com a realidade dos séculos XX e XXI.

A vitória dos Aliados, como argumentamos, exacerbou uma relação preexistente de exploração e opressão nacional. Tanto a burguesia brasileira quanto a argentina sempre consideraram o Paraguai como seu quintal. Há muitos fatos que ilustram essa atitude. No caso do Brasil, sem ir muito longe, lembremos que, em 2022, o ex-ministro de Bolsonaro, Paulo Guedes, declarou que o Paraguai não passava de um estado brasileiro.[iii]

Os negócios da classe dominante brasileira penetram no Paraguai por meio do comércio desigual[iv]; da proliferação de empresas que produzem com custos tributários, energéticos e trabalhistas nulos ou muito baixos, aproveitando o “regime de maquila” garantido pelos governos paraguaios[v]; da expansão desenfreada do agronegócio, controlado por proprietários de origem brasileira, a tal ponto que, atualmente, estima-se que 14% dos títulos de terra no Paraguai pertençam aos chamados brasiguaios[vi]. Em departamentos como o Alto Paraná e Canindeyú, que fazem fronteira com os estados do Mato Grosso do Sul e Paraná, a porção do território nas mãos desses empresários brasileiros é escandalosa: 55% e 60%, respectivamente.

Para agravar, o Tratado de Itaipu, principal instrumento jurídico-econômico de dominação brasileira sobre a pequena república mediterrânea, elimina qualquer indício de soberania energética do sócio mais fraco.[vii]

O estudo crítico da história, especialmente o da Guerra, é uma base indispensável para a compreensão de problemas urgentes no contexto da dinâmica das relações de poder entre os Estados do Cone Sul. É também uma condição para fundamentar rigorosamente questões mais profundas, como a necessidade de reparações materiais ao Paraguai.

Na nação derrotada, onde, naturalmente, essa guerra ocupa um lugar central na educação e na identidade nacional, é imperativo livrar-se de qualquer abordagem nacionalista, de direita ou de esquerda. A reivindicação da defesa do direito à autodeterminação não deve ser confundida com chauvinismo nem justificar a animosidade contra os irmãos e irmãs de origem estrangeira. A destruição do Paraguai foi obra das elites dos países aliados, não de seus povos.

Entre as classes trabalhadoras dos países vencedores, um estudo da guerra com enfoque classista reforçaria uma perspectiva internacionalista, contribuindo para o conhecimento da realidade do Paraguai e combatendo, assim, muitos preconceitos chauvinistas. Contudo, também ajudaria a compreender de forma muito mais ampla as particularidades históricas de suas formações socioeconômicas, o caráter de suas classes dominantes e as singularidades dos processos de formação de seus Estados nacionais e a gênese de seus exércitos profissionais, os mesmos que hoje reprimem as lutas operárias e sociais.

Por outro lado — e isso é muito importante — uma abordagem classista e internacionalista do problema nos países vitoriosos seria de grande ajuda para combater conscientemente, no dia a dia, a visão xenófoba e racista do Paraguai e do paraguaio, promovida pelas classes dominantes — bem como pelas classes médias “educadas”. Não faltam estereótipos e expressões pejorativas: os “paraguas”, o “guarango”, o “boliguayo”, na Argentina; o “muambeiro”, o “cavalo paraguaio”, o “caboclo” e a ideia profundamente enraizada de que paraguaio é sinônimo de falso e de má qualidade, no Brasil.

A efeméride deve incitar, entre outras questões pendentes, a reflexão sobre até que ponto essa xenofobia não está enraizada na intensa propaganda liberal, mitrista e monarquista, de que o Paraguai possuía um povo bárbaro, atrasado, racialmente inferior, que deveria ser civilizado…

Se o estudo da Guerra, com o enfoque que propomos, é fundamental para a educação política das classes exploradas de todos os países que dela participaram, pode-se dizer que é crucial para todos os que, politicamente, buscam superar a exploração e a opressão do capitalismo, pois, como ensina o marxismo: “o povo que oprime outro não pode ser livre”.

*Ronald León Núñez é doutor em história pela USP. Autor, entre outros livros, de A Guerra contra o Paraguai em debate (Sundermann). [https://amzn.to/48sUSvJ]

Tradução: Marcos Margarido.

Publicado originalmente no Suplemento Cultural do jornal ABC Color

Notas


[i] Segundo a citação de Luiz Octávio de Lima no site pró-Bolsonaro “Brasil paralelo”: ver neste link.  

[ii] O conservador Partido Colorado, que governa o Paraguai há mais de 70 anos e atuou como um dos sustentáculos da última ditadura militar, sempre utilizou a figura de López para legitimar-se historicamente.

[iii] Veja neste link.

[iv] O Brasil é o principal parceiro comercial do Paraguai, representando 28,5% do total de transações em 2022. É seguido pela China (18,3%), Argentina (12,8%), Estados Unidos (6,9%) e Chile (4,8%).

[v] Aproximadamente 72% das empresas sob regime de maquila no Paraguai são brasileiras. Veja neste link

[vi] Veja neste link.

[vii] Entre 1984 — ano em que Itaipu entrou em operação — e 2022, o Brasil ficou com 91% do total da energia produzida pela empresa. Veja neste link.


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