Por DANIEL AFONSO DA SILVA*
Nem Donald Trump nem Kamala Harris parecem estar à altura dos desafios
Mário Vargas Llosa afirmou o dilema AIDS versus câncer no escrutínio das disputas eleitorais do presente século. Essencialmente após a crise financeira mundial de 2008, para ele e para todos, virou flagrante a impotência, inadequação e inconsequência da maioria dos postulantes a cargos majoritários diante dos desafios hodiernos crescentes.
No caso norte-americano, as presidenciais de 2008 inauguraram o fim de momentum politikós da esperança de ganhos sociais e econômicos progressivos e o início de um momentum Hamlet, do ser ou não ser, da indiferença frente aos agentes políticos.
Nesse ínterim, a vitória do presidente Barack Obama causou o início de um confuso e desvairado furor. O antigo senador por Illinois era um herdeiro espiritual de Martin Luther King Jr. acedendo ao posto máximo da nação. O legado de seu antecessor imediato, George W. Bush, parecia totalmente nefasto. A “guerra ao terror” – inicialmente apoiada quase unanimemente pelos cidadãos norte-americanos – era, agora, em 2008, objeto de toda sorte de condenação, também quase unanimemente. O mal-estar no Iraque e o desassossego no Afeganistão produziam externalidades negativas impressionantes.
Os mais antigos recordavam-se dos dilemas no Vietnã. Os mais moços ainda tinham da retina a indiferença sobre Ruanda. E velhos e moços não conseguiam entender essa imensa impotência de sua potência.
Ainda não estavam evidentes as vinculações entre a reação aos ataques do 11 de setembro de 2001 e a crise de subprime iniciada em 2007. Mas parecia bem claro que os republicanos – e seus apoiadores neoconservadores – não deveriam seguir no poder. De maneira que uma virada aos democratas era quase um imperativo para novos tempos. Uma alternância necessária. O câmbio entre o burlesco belicoso e o charme calculado.
E assim se fez.
O senador por Illinois portava todos os predicados para os novos tempos. Era democrata e sinceramente charmoso. Um contraste perfeito ao seu antecessor e à memória belicista e mal-ajambrada dos presidentes saídos do clã republicado desde Dwight D. Eisenhower.
A razão de ser do general-presidente Dwight D. Eisenhower decorria da presença profunda e penetrante da imagem de bravura dos norte-americanas nas guerras totais contra Hitler e Mussolini na Europa e contra Hirohito no Pacífico. O traumatismo de Pearl Harbor ainda tangia corações. A selvageria dos conflitos também não. De maneira que a presidência Eisenhower era espécie de quintessência das presidências de Roosevelt e Truman. Forma de continuação com fins de superação e encerramento seguro do momentum mais trágico do século XX que cintou da crise 1929 às bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki.
Por tudo isso, foi sob o período Eisenhower, por volta de 1955, que os norte-americanos conseguiram, finalmente, concretizar o New Deal inaugurado pelo presidente Franklin Roosevelt e, do outro lado do Atlântico, os Trinta Anos Gloriosos também afirmavam níveis inéditos de prosperidade aos europeus. O chão de ruínas forjado pelas batalhas começava a virar memória no Velho Mundo.
Malgrado as querelas coloniais e malgrado os dissabores pós-coloniais. Aqueles que levaram os ingleses simplesmente a subverter as premissas do primeiro-ministro Winston Churchill, abandonar os domínios coloniais e abdicar o remorso de olhar pra trás; e, entre os franceses, em sentido oposto, aqueles que os mantiveram aferrados às colônias até o colapso total do regime político que impôs a convocação do general de Gaulle de volta ao comando do país. O que, claramente, em sinergia, permitiu a confirmação e a ampliação da presença e da influência dos norte-americanos no mundo inteiro. Encerrando momento rédeas curtas e reabilitando o charme dos democratas como leitmotiv da nação norte-americana através da eleição de John F. Kennedy.
Como bem notado e sabido, o presidente Kennedy não era tão tímido nem tão culto quanto o presidente Wilson tampouco tão destemido e nem tão determinado quanto o presidente Roosevelt. Entretanto, ele amalgamava e explorava o charme contido deles dois. E, por isso, foi relevante. Depois dele, o marido de Jackie, só Bill Clinton, vez que Jimmy Carter era sincero demais para ser empático e hesitante demais para ser, de fato, charmoso.
Fale-se e pense-se o que se quiser do presidente Bill Clinton, mas a sua presidência permitiu um extraordinário arejamento da política – notadamente externa – norte-americana. Tal e qual o presidente Kennedy, ele assumiu o poder depois de tormentas. No caso, depois do muro e depois da implosão do mundo soviético.
O que lhe permitiu trabalhar o seu charme. Que não era qualquer charme, mas aquele tipo de charme que Talleyrand-Périgord classificava por cinismo. O mesmo cinismo que irrigava as veias dos democratas desde a noite dos tempos. De Thomas Jefferson a James Madison a James Monroe e John Q. Adams – que foram, ao mesmo tempo, republicanos e democratas – até chegar em Bill Clinton.
Todos, de Jefferson a Clinton, eram charmosos por vocação e cínicos por convicção. Cínicos no sentido mais profundo da expressão que sugere o cinismo como navegação a contravento. No caso preciso, em oposição à estética dos republicanos que sempre foram, por pragmatismo, mais sanguíneos, mais truculentos, menos cerebrais e menos charmosos.
Depois do presidente Bill Clinton, veio o presidente Barack Obama, que sucedeu a George W. Bush, deixando clara a tensão entre estilos. De um lado, a quase grosseria de Bush e, do outro lado, o quase excesso de delicadeza de Barack Obama. A questão foi que, depois da crise de 2008, esses códigos parecem que deixaram de vigorar. A agonia da crise estraçalhou as bases e referências dessa distinção. O presidente Obama até tentou, mas não conseguiu reabilitar a presença de espírito do presidente Roosevelt. O seu sorriso fácil e o seu declamar calibrado lembrava o presidente Kennedy. Mas, infelizmente, não em seus pontos magnânimos. Do contrário, o Kennedy encarnado por Barack Obama era bem distante daquele que pugnas guerreou com Khrushchov pelo destino de Washington desde Habana e de Moscou desde Ancara e bem próximo daquele pai de família fragilizado apanhado em adultério.
Pode não parecer, mas foi bem assim. Um charme sem conteúdo nem consequência.
Do contrário, veja-se que, no plano internacional, Barack Obama inaugurou a sua verdadeira epopeia internacional no Cairo com uma forte inclinação à estabilização das relações dos Estados Unidos e do Ocidente com o Oriente Médio tendo aquele seu famoso discurso On a new beginning como ponta de lança. Um discurso recebido como memorável em todas as partes. Mas, com o passar do tempo, desmanchado integralmente no ar. Pois, de 2009 em diante, em contraponto do desígnio do presidente norte-americano, o Oriente Médio ficou mais e mais conturbado.
De início, internamente. Especialmente, com a Primavera Árabe. Que manchou de indecisão e instabilidade todos os principais regimes da região. Sendo o sírio o exemplo acabado. Externamente, não diferentemente, com a profusão de radicalismos religiosos, espirituais e culturais em todas as partes. Sendo o Estado Islâmico a maior mostra do dissenso.
Focando na Europa, no mesmo diapasão, a postura da presidência Obama foi da euforia à frustração. De modo direto, ele aplicou o salve-se quem puder aos patrícios do velho mundo que agonizavam a crise do euro. O que conduziu as lideranças europeias a mal-estar sem limites. Entre os franceses, sobretudo. Pois vale sempre lembrar que a França, sob a presidência de Jacques Chirac, disse “não” à aventura norte-americana no Iraque em 2003, vetando, assim, no Conselho de Segurança das Nações Unidas, a legitimidade do uso da força naquela região do Oriente Médio.
O que produziu, em contraponto, toda sorte de represálias da Casa Branca ao encontro do Élysée. Tornando a França e os franceses quase persona non grata no caleidoscópio político norte-americano sob George W. Bush, notadamente após a sua reeleição em 2004. Dessa maneira que a eleição de Barack Obama projetava refrigério na relação entre franceses e norte-americanos. Mas, não.
Esteticamente, era agradável notar o presidente Barack Obama ladeado com o presidente Nicolas Sarkozy – como com a chanceler Angela Merkel ou com o primeiro-ministro Gordon Brown. Mas, no vivo das questões, as aparências não encantavam nem enganavam ninguém.
Saindo da crise do euro, a ofensiva geoestratégica ante o Irã foi desidratada no conluio com europeus. Mas o regime change na Líbia, com o apoio integral do presidente Obama, simplesmente, lançou os europeus e o seu Mediterrâneo ao desconhecido. Sendo a França, novamente, das mais penalizadas.
Depois veio o justice has been done, com a interceptação de Osama Bin Laden, que permitiu a reeleição dos democratas em 2012, pois os norte-americanos não tiveram como não retribuir.
Mas algo já não ia bem na interação entre Washington e o resto do país. O Yes, we can que conduziu o sucesso democrata em 2008 parecia ter perdido a totalidade de sua força. E por razão simples: o primeiro mandato do presidente Obama não conseguira reerguer o moral da sociedade norte-americana. Seu charme era, ao fundo, vazio. Sem verdade e, quem sabe, nem honestidade.
A classe média tinha sido indelevelmente machucada pela crise financeira de 2008 e, incrivelmente, ninguém em Washington parecia notar. Mesmo com a persistência do Occupy Wall Street. Uma persistência que, revista com atenção, indicava o fim de um pacto intrassocial forjado entre as gerações do New Dell, do Vietnã e do “tear down this wall” da presidência de Ronald Reagan. Onde a questão nuclear era, sim, os centavos, vez que os protestos estampavam a batalha dos 99% versus o 1%. Mas o fator essencial envolvia uma distopia que soterrava os norte-americanos na síndrome argentina do que se vayan todos.
Desse modo, era a primeira vez na história dos Estados Unidos que os protestos – a contrapelo de todos os anteriores – alimentavam emoções negativas. Muito diferentemente daqueles pelos direitos civis, nos anos de 1960-1970, que haviam sido, sim, dramáticos, mas não lúgubres, como os de agora.
Vivia-se, porquanto, após 2008, algo muito profundo e preocupante. Algo que modificava o ethos, o pathos e o logos dos norte-americanos. Refletindo diretamente nas dinâmicas eleitorais, na essência do voto e, sinceramente, na natureza do próprio sistema político. Tornando o suposto charme dos democratas quase irmão da suposta truculência dos republicanos. Com a diferença que a truculência tinha tons de verdade.
Com tudo isso, o eleitor – para não dizer, o cidadão norte-americano – parecia ir perdendo a alma. Sendo aqueles oriundos dos seguimentos mais historicamente alijados da sociedade – entre eles, os afro-americanos e os latino-americanos – os mais diretamente acoimados pelas novidades sombrias. Pois eram eles os mais penalizados pela desclassificação e desmoralização social. E também eles os maiormente objetos de toda a fúria dos estabelecidos que, ao seu modo, também viam o chão fugir de seus pés após 2008.
Frente a tudo isso, a principal promessa do primeiro presidente negro norte-americano, que era construir uma sociedade pós-racial, foi virando quimera – para não dizer, um estelionato eleitoral. Da mesma forma que, ao exterior, a pavimentação de uma era pós-imperial bateu no muro e subiu no telhado. Demonstrando que a presidência Barack Obama fora incapaz de recompor o bem-estar social entronizado na presença do presidente Roosevelt e incapaz de dar tônus ao multilateralismo wilsoniano inspirador de uma sociedade internacional postulante à condição de “comunidade internacional”. Obama, portanto, falhou no atacado e falhou no varejo. Não por sua única e total culpa. Mas pela insensibilidade generalizada para se perceber a mudança de tempos.
A presidência de Barack Obama, assim, frustrou a tradição democrata e colocou em questão a compleição da competência do sistema político norte-americanos em produzir saídas concretas para as agruras da sociedade. Fazendo do charme – como das palavras e dos gestos – algo fora do lugar. Pois, era a primeira vez na história recente dos Estados Unidos que o bom-mocismo de uma presidência democrata não conseguiu aplacar as dores emocionais da população – como fizeram Wilson, Roosevelt e Clinton – e, em consequência, abriu uma passarela segura ao desconhecido, que ganharia corpo com Donald J. Trump.
Desse modo, nenhuma presidência democrata nos Estados Unidos foi tão shakespeariana quanto a de Barack Obama pois nenhuma outra deixou tão evidente a força do adágio de Shylock ao Antonio, o mercador de Veneza, que dizia que “billds could not been payid by words” [palavras não pagam dívidas]. E, no caso, palavras nem charme. O que avivou um desespero sem precedentes entre os norte-americanos, que encontrariam refúgio em Donald J. Trump.
Donald J. Trump, a rigor, nunca foi democrata nem republicano. E, caso se queira, tampouco foi um político. O magnata sempre foi um jogador. Típico explorador das misérias humanas. Que especula e aposta para ganhar. Sobretudo em cenários de desespero e dor, como esse aberto pela crise de 2008.
De toda sorte, mesmo outsider, ele precisou se aninhar num partido. Que, por ocasião, foi o republicano.
Uma vez, portanto, republicano, o venerado animador de auditórios precisou incorporar as hostes republicanas e forjar uma postura estética contrária à dos democratas. E assim o fez. Mas ninguém poderia supor que o faria de modo tão contundente e magnânimo.
Valeria a pena retornar ao começo e observar com calma a ascensão política de Donald Trump das primárias entre os republicanos, aos combates versus Hillary Clinton até o seu sucesso eleitoral em 2015-2016. Tudo ali foi diferente. À força do momento, aquela campanha vislumbrou uma violência espiritual e moral superior e inigualável a qualquer outra investida eleitoral nos Estados Unidos e em qualquer outra democracia do Ocidente.
O MAGA – Make America Great Again – não era simplesmente um slogan. Era uma questão de fé, que conduziu Donald Trump a transformar a campanha num embate existencial, feito um Juízo Final, batalha do fim dos tempos. Era disso que se tratava.
Uma vez eleito, tudo que se viu no tensionamento transatlântico com os europeus, na afeição desavergonhada com a Rússia, no carinho desinibido com Israel, na despolitização das tensões no Oriente Médio através dos Acordos de Abraão, na verdadeira guerra de moedas com a China e nas escaramuças com a Coreia do Norte era a mostra explícita das urgências de um novo tempo que, talvez, apenas Donald Trump tenha levado a sério a nascer.
Ou seja, diferente dos demais elementos do establishment, Donald Trump, talvez, fora o único a compreender as dores profundas que a histerese da crise financeira de 2008 causara na integralidade da sociedade norte-americana.
E, ciente disso, ele foi, conscientemente, o primeiro a, decididamente, ousar transgredir todos os códigos e decoros. Pois, em verdade, esses códigos e decoros já estavam a esmaecer. Por tudo isso, a compulsividade de sua campanha e presidência foi tão disruptiva.
Ele notou que uma sociedade extremamente machucada, quebrada, fraturada e destituída de suas expectativas positivas recusava-se a reviver sonhos antigos. Queria algo novo. Com saídas rápidas. Mesmo que dramáticas, sem jeito, e extemporâneas. O que evidencia que Donald Trump não singrava no vazio. Bem do contrário. Ele era produto de uma crise estrutural multidimensional sem precedentes, que conduzia os norte-americanos a entropias terminais.
Piores que em 1917, quando os norte-americanos atravessaram o Atlântico para conter a gente de Moscou. Piores que em 1929, quando a miséria e a pobreza bateram às portas de todos indiscriminadamente. Piores que em 1941, quando do início das batalhas incertas para conter fascistas e nazistas mundo afora. Piores que na crise de Watergate sob Richard Nixon e piores que no malaise geral no momento Jimmy Carter. Piores que no baque do “9/11”.
Donald Trump, assim, notou a gravidade de tudo e interiorizou que “this time is different”.
Diferente porque a globalização triunfante do após 1989-1991 revelou-se um pesadelo na crise de 2008 e trouxe à consciência dos populares uma sensação de derrota e humilhação intensa e implacável. Levando todas as gerações que acreditaram nos dividendos planetários da paz onusiana, no império do dólar e no multilateralismo orquestrados desde Nova Iorque e Washington a iniciar uma navegando a contravento. Pois, após 2008, de súbito, a China sozinha parecia se acelerar para tomar o posto país hegemônico do sistema internacional.
O agrupamento BRICS imprimia o seu ímpeto revisionista em tudo aquilo que Roosevelt, Stálin, Churchill e De Gaulle, a duras penas, haviam construído depois da Carta do Atlântico de 1941. A Venezuela do presidente Hugo Chávez desmoralizava a ordem tanto quanto Cuba dos irmãos Castro. O Brasil da presidente Dilma Rousseff, sob a sombra do presidente Lula da Silva, seguia organizando as periferias nas Américas e na África. Os europeus, por sua vez, colocavam em questão a validade da aliança transatlântica virando-se, conscientemente, para a Ásia.
Em suma, era um conjunto de evidências que trazia um o gosto amargo de irrelevância aos tripulantes do império. Não simplesmente pela afirmação de um mundo pós-americano, mas pela clarividência da impotência, interna e externa, da última superpotência.
E, com tudo isso, Donald Trump simulou a condição de mártir. Lançando-se ao sacrifício. Como um verdadeiro Quixote. Confrontando avatares. Muito piores que singelos moinhos de vento. O que caiu no gosto e convenceu parcelas importantes da sociedade norte-americana que viram em Trump a quintessência do espírito dos Founding Fathers através de seu America First e do seu MAGA – Make America Great Again, estratégicas retóricas poderosíssimas na reabilitação da essência do American Dream.
Eis o mérito de Donald J. Trump. Goste-se ou não. Condenem-no ou o ovacionem. Mas ele serviu e foi percebido como um genuíno mobilizador do ethos da nação. Mas veio a pandemia e baralhou tudo.
O empilhamento de mortes e o bate-cabeça entre o fique em casa e o fique tranquilo tornou a situação, moralmente, delicada e desafiadora para Donald Trump. Ninguém no mundo inteiro sabia muito bem como agir. Donald Trump, menos ainda. O que, por força do desespero, abriu uma passarela consistente para o retorno dos democratas com a eleição de Joe Biden.
Perdeu o sentido asseverar que as eleições norte-americanas são controversas e contestáveis. Mas essa de 2020 foi além. Virou sanguinolenta. A ponto de suscitar o assalto ao Capitólio.
Não restam dúvidas que os profanadores do Capitólio eram trompistas aninhados em fragmentos de uma lunatic fringe. Entretanto, fora do Capitólio existiu mais gente mentalmente correta extraordinariamente chocada com a derrota de seu campeão e também disposta a barbarizar o oráculo sagrado dos guias da démocatie en Amérique. Mais uma vez demonstrando que o espírito do que se vayan todos havia tomado conta de tudo. Que o statu quo ante tinha perdido a valência. E que o charme engomado dos democratas não era mais que um anacronismo.
Mas, enfim, votou-se e elegeu-se Joe Biden. Mas não para esquecer Donald Trump e sim para desacelerar e respirar. Donald Trump tinha ido longe demais, rápido demais e profundo demais. E, agora, sob a pandemia, todos estavam, além de desesperados, confusos.
Quatro anos se passaram. A presidência Joe Biden fez o que fez. Reabilitou algum charme e algum decoro à gestão pública. Mas os norte-americanos não se convenceram de seu valor. Donald Trump seguiu amparado em imensa preferência popular. E, agora, retorna à disputa como favorito. Contra Joe Biden, contra Kamala Harris e contra todos.
Sob qualquer aspecto, o legado de Joe Biden lembra o de Barack Obama: desastroso. Os norte-americanos seguem amargando agruras existenciais e os democratas ofertaram-lhes charme – leia-se: band aid para hemorragias. Galvanizando o retorno de Donald Trump. Que levou os democratas a dar um jeito de remover Joe Biden da disputa em favor de Kamala Harris.
Kamala Harris não foi escolhida por ser mulher, negra, vice-presidente ou por dispor de algum charme. Muito do contrário. Ela foi escolhida por ser a única capaz de sinceramente despir-se dos pudores, espelhar Trump e trumpinizar a campanha democrata.
O que, inicialmente, parecia alvissareiro, mas, com o tempo, em poucas semanas, foi se tornando quimera e a disputa segue acirradíssima. Como foram aquelas de Trump versus Hillary e Trump versus Biden. Mas, agora, muito mais complexa que outrora. As questões de sociedade seguem importantes no espectro dos eleitores norte-americanos. Mas, após pandemia, questões planetárias viraram objeto de deliberação interna e se apresentam, essencialmente, na forma de cui bono a continuação do conflito na Eurásia, no Oriente Médio e o desmanchar dos regimes na Europa?
Note-se que a erosão das democracias europeias – como ocorreu nos anos de 1930-1940 – não joga água limpa no fluir natural da sociedade norte-americana. Todos sabem, mas somente agora os norte-americanos tomaram ciência disso. A manutenção da alta tensão das guerras eternas no Oriente Médio também virou questão nacional. E o que dizer da contração russo-ucraniana?
Tudo mudou e emergiu como questionamentos existenciais. Deixando de ser, simplesmente, a economia, estúpido!. Para virar um conjunto de premissas muito mais abrangentes e complexas que envolvem a geopolítica, a tecnologia, a digitalização da vida, o clima, a espiritualidade, o após 2008 e o após pandemia.
Ou seja, tudo virou muito mais desesperador que na eleição de reeleição de Obama, em 2008 e 2012, na eleição de Trump, em 2016, e na eleição de Biden, em 2020. De modo que, agora, Trump nem Kamala parecem estar à altura dos desafios. O que levou o eminente Robert Paxton a sair do silêncio para afirmar que “se Trump vencer, será horrível. E se ele perder, também será horrível”.
Eis o dilema.
AIDS versus câncer. “To be or not to be”. Algo cheira muito mal no reino da Dinamarca.
*Daniel Afonso da Silva é professor de história na Universidade Federal da Grande Dourados. Autor de Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas (APGIQ). [https://amzn.to/3ZJcVdk]
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