Por ADELTO GONÇALVES*
Comentário sobre o livro recém-lançado.
1.
Uma profunda reflexão sobre a história de Goiânia é o que o leitor vai encontrar em Goiânia, 90 anos, obra lançada dentro do programa de comemoração dos 90 anos de existência da cidade e que reúne 16 textos apresentados durante simpósio realizado nos dias 18, 19 e 20 de outubro de 2023, nas dependências do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás (IHGG), por historiadores, professores universitários, ativistas culturais e técnicos em planejamento.
A primeira parte do livro aborda aspectos históricos, enquanto a segunda apresenta artigos que tratam de temas relacionados ao urbanismo e à arquitetura, ficando a terceira seção reservada à discussão de elementos culturais e estéticos.
No texto de apresentação, os organizadores do livro lembram que “Goiânia representou a imposição do espírito humano sobre a natureza agreste do cerrado, mas também é um exemplo do preço alto que pagamos por tamanha ousadia. Em busca da harmonia geométrica de ter uma cidade com praças circulares ou quadradas, ruas retas ou curvilíneas, árvores foram arrancadas; córregos, soterrados; morros, aplainados, e brejos drenados. O resultado, sem dúvida, é uma bela e imponente cidade”, lê-se no texto assinado por Eliezer Cardoso de Oliveira, Jales Guedes Coelho Mendonça, Nars Fayad Chaul e Nilson Jaime.
No artigo “Os 10 anos do livro A invenção de Goiânia: o outro lado da mudança e os rastros de genocídio cultural”, Jales Mendonça, promotor de Justiça, doutor em história e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, autor da obra citada, lançada em 2013 pela Editora da Universidade Federal de Goiás (UFG), ao observar que, dez anos depois, as hipóteses lançadas ali foram todas reafirmadas, faz também uma rememoração das várias experiências de deslocamento de capitais ocorridas no mundo, entre as quais se destaca especialmente a construção da monumental São Petersburgo, na Rússia, pelo czar Pedro, o Grande (1672-1725).
Destaca que, igualmente no Brasil, ocorreram pelo menos três vezes esse fenômeno: a mudança da sede administrativa de Salvador para o Rio de Janeiro e do Rio de Janeiro para Brasília e, em Minas Gerais, de Ouro Preto para Belo Horizonte, depois da Proclamação da República em 1889. Em Goiás, a movimentação começou na década de 1920 e, em 18 de maio de 1933, saía um decreto do interventor Pedro Ludovico Teixeira (1891-1979) fixando a cidade de Campinas como futuro local da nova capital.
É de se lembrar que o médico Pedro Ludovico, com a chamada Revolução de 1930, movimento que afastou temporariamente do poder as elites paulistas e mineiras, assumiu a liderança da “Marcha para o Oeste”, política pública engendrada pelo governo de Getúlio Vargas (1882-1954) durante o Estado Novo (1937-1945) para aumentar a densidade demográfica e o desenvolvimento das regiões Centro-Oeste e Norte do País.
2.
Obviamente, a mudança da capital para Goiânia só ocorreu depois de muitas discussões e pressões políticas, especialmente por parte daqueles que se sentiam prejudicados com a saída da capital da tradicional Cidade de Goiás, a antiga Vila Boa.
A região do antigo arraial de Campinas, fundado em 1816, assentado em terreno plano junto ao rio Meia Ponte e habitado por agricultores e criadores de gado, era conhecida por Campanha dos Dourados e seu desbravamento deu-se, a rigor, a partir da construção de uma capela entre os anos de 1813 e 1814, conforme se lê no texto “Campinas, a Igreja e Goiânia”, de autoria de Antônio César Caldas Pinheiro, doutor em Documentação pela Universidade de Salamanca, Espanha, e diretor do Instituto de Pesquisas e Estudos Históricos Brasil Central (IPEHBC/PUC-Goiás). Hoje, Campinas é um bairro de Goiânia bastante movimentado por abrigar grande concentração de estabelecimentos comerciais.
A história pregressa de Goiânia pode ser muito bem acompanhada também no texto “Goiânia: os impactos de sua criação em Campinas”, de Itaney F. Campos, desembargador do Tribunal de Justiça de Goiás e membro do IHGG e da Academia Goiana de Letras (AGL), em que se lê que, no começo do século XIX, Campinas seria um vilarejo composto de apenas 20 ou 30 casas, “plantado na solidão das planícies da região central da Província de Goiás”.
Já no texto “Goiânia, entre o racionalismo da técnica e o pragmatismo da política”, de Eliézer Cardoso de Oliveira, doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) e professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG)-campus Anápolis, o leitor vai descobrir a razão da escolha do nome de Goiânia para a nova capital, nascido a partir de um concurso promovido por um jornal local em 1933. O nome Goiânia foi menos votado que Crisópolis, Heliópolis e Petrônia, mas acabou por ser escolhido por decisão pessoal do interventor Pedro Ludovico.
Aliás, neste artigo, o autor observa também que a escolha do local foi outra imposição do interventor, depois de uma disputa com a cúpula religiosa que defendia a escolha de Bonfim, localidade próxima e que hoje constitui o município de Silvânia, nome adotado em 1943.
3.
Na seção “Arquitetura e Urbanismo”, um artigo que se destaca é “Goiânia, cidade bem-nascida: convivência com a capital desde a infância” no qual Narcisa Abreu Cordeiro, arquiteta e urbanista e sócia do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, observa que na Goiânia dos primeiros tempos, além dos edifícios administrativos, começaram a surgir as chamadas casas populares, enquanto as famílias com maior poder aquisitivo construíam residências com características art déco, hoje em boa parte já demolidas. “Com o advento da chegada da estrada de ferro e a construção de Brasília, Goiânia foi saindo do patamar do ecletismo para o modernismo, com influência de Le Corbusier (1887-1965) e outros mestres internacionais”, acrescenta.
No artigo “Marcos da arquitetura em Goiânia (1930-1980)”, Eurípedes Afonso da Silva Neto e Lenora de Castro Barbo, ambos doutores em Arquitetura e Urbanismo pela UnB, explicam que a art déco está presente em edifícios como o Palácio das Esmeraldas, sede do governo, na residência de Pedro Ludovico e em mais 20 edifícios e monumentos públicos, tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 2023, tendo como relator o historiador goiano Paulo Bertran (1948-2005). Mas lembram que há outros estilos de construção que marcam as diferentes épocas vividas pela cidade.
Vale apontar, na última parte do livro, o texto “Goiânia, 90 anos”, em que Nasr Fayad Chaul, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e professor titular aposentado da UFG, diz que “os principais prédios públicos simbolizavam o Uno Estado Novista, as principais ruas canalizavam seu destino para o centro do poder”. E chama a atenção para um teatro de art nouveau cravado no meio do Planalto Central, observando que, arquitetonicamente, Goiânia foi “o símbolo do moderno e do urbano em solo rural”.
Diz mais: “Projetada para pouco mais de 50 mil habitantes, (Goiânia) não pensou em ter milhões de pessoas a sua volta, multiplicando casas, vilas, prédios e pressões urbanas”. E a define em linguagem metafórica: “Com 90 anos, já é avó de seus problemas, sem controle de seus meninos de rua, sem dar palmatória desejada nas mãos de sua violência aterradora, sem resolver suas crises de menopausa de toda ordem. Apenas senhora de suas lições pelos caminhos de Goiás”.
Enfim, como reconhecem os organizadores da obra ao final do texto de apresentação, “a cidade ainda tem problemas que não foram resolvidos, já que continua violenta e socialmente desigual”. Mas, com seus modernos e gigantescos edifícios e com uma população superior a 1,4 milhão de habitantes, segue deslumbrante rumo aos 100 anos.
Ainda na última seção, é de se destacar o texto em que Nilson Jaime, engenheiro agrônomo e doutor em Agronomia pela UFG e sócio do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, traça o perfil de Bernardo Élis (1915-1997), o único goiano a obter assento na Academia Brasileira de Letras (ABL). No texto “O cronista e historiador Bernardo Élis: arquétipo de um cidadão geral que adotou a erma Goiânia”, Jaime lembra que, no livro Goiás em sol maior (1985), o escritor conseguiu sintetizar, em 16 páginas, os principais acontecimentos que redundaram na criação daquela que tornar-se-ia a décima mais populosa cidade brasileira (IBGE, 2022).
4.
Diante do pouco espaço que permite uma recensão e na impossibilidade de se citar os demais textos que compõem esta obra, diga-se que todos são de esmerada feitura e apurada pesquisa e que, com certeza, muito auxiliarão nas reflexões críticas que se possam fazer daqui para frente, lembrando-se que, em 2033, a propósito da celebração do centenário de Goiânia, haverá ainda a oportunidade de se aprofundar a discussão sobre o passado e o futuro desta metrópole que, com Brasília, marcou o avanço do Brasil rumo ao Oeste.
É de se lembrar ainda que, iniciada no dia 1° de fevereiro de 2022, a Coleção Goiás +300 prevê a publicação, até 2026, de mais 18 livros, contidos em seis boxes, sobre a historiografia dos seguintes temas: História – Geografia – Memória e Patrimônio (Box 1); Cronistas e Viajantes – Literatura – Povos Originários (Box 2); Povos Afrodiaspóricos – Música – Mulheres (Box 3); Brasília – Agricultura – Direito e Justiça (Box 4); Economia – Direitos Humanos – Goiânia (Box 5); e Os primeiros arraiais – Sustentabilidade – Educação (Box 6). As obras estão sujeitas a um Conselho Editorial, formado por 30 doutores e mestres, de diversas instituições culturais e científicas.
*Adelto Gonçalves, jornalista, é doutor em literatura portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP). Autor, entre outros livros, de Bocage – o perfil perdido (Imesp).
Referência
Eliézer Cardoso de Oliveira, Jales Guedes Coelho Mendonça, Nasr Fayad Chaul e Nilson Jaime (orgs.). Goiânia, 90 anos. Goiânia, Edições Goiás +300, Instituto Histórico e Geográfico de Goiás (IHGG), 2024. 336 págs.
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