O controle do pix

Imagem: Feson Xie
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Por SÉRGIO GONZAGA DE OLIVEIRA*

Crônica de uma falha lamentável

A recente disputa política gerada pela inclusão do pix entre as modalidades de meios de pagamento fiscalizadas pela Receita Federal ainda merece nossa atenção. As evidências indicam que o cancelamento da instrução normativa 2219/24 e emissão da Medida Provisória que equiparou o pix à moeda corrente não eliminaram as causas institucionais e estruturais que deram origem a esse episódio.

Na verdade, o pretendido controle do pix ameaçou diretamente os agentes econômicos mais vulneráveis da economia brasileira. Que não são poucos. Segundo o IBGE, no final de 2024, mais de 40 milhões de pessoas eram informais.(1) Do ponto de vista institucional foi um erro grave. Os organismos de Estado, como a Receita Federal, não podem desconhecer essa imensa multidão de trabalhadores autônomos, pequenos e microempresários que vivem e ganham seu sustento, com dificuldade, na periferia do sistema. Além disso, os informais são um produto do subdesenvolvimento que ainda se mantém em grande parte da sociedade brasileira. Sem enfrentar de vez esse atraso, as dificuldades dessa natureza serão sempre recorrentes.

Desde sua criação as transações com o pix foram muito bem aceitas e festejadas pela maioria da população na medida em que simplificaram bastante as movimentações financeiras. Mais do que isso, o pix aumentou muito a segurança dessas transações. Lembro-me perfeitamente de pessoas de baixa renda que transportavam pequenas quantias em dinheiro, escondidas no sapato para fugir de eventuais assaltantes.

A chegada do pix acabou com essa e outras dificuldades. Os trabalhadores autônomos, pequenos e micro empresários comemoraram. Afinal os cheques não eram muito confiáveis e nem todos os seus clientes possuíam cartões bancários. Não haviam Fintechs com contas correntes isentas de taxas. Ter uma conta corrente em um banco tradicional custava caro em taxas e contrapartidas. Nem todos os pequenos produtores, comerciantes, trabalhadores autônomos e seus clientes podiam se dar a esse luxo.

Não à toa, a invenção do pix foi um sucesso extraordinário. Em pouco mais de quatro anos o pix se tornou o principal meio de pagamento no Brasil, sendo usado por 76,4% da população. Superou o cartão de débito (69,1%), o dinheiro (68,9%) e o cartão de crédito (51,6%).(2) A invenção do pix e a chegada das Fintechs provocaram ainda um aumento significativo no número de clientes bancários. Segundo o Banco Central entre 2018 a 2023 este número saltou de 77,2 milhões para 152,0 milhões de pessoas físicas.(3)

Entretanto, a criação do pix foi, também, muito bem recebida pelo crime organizado, pela corrupção e contraventores em geral, já que passaram a dispor de um meio de pagamento bem mais prático e livre de controle e fiscalização. Muito mais funcional do que as tradicionais malas de dinheiro transportadas com dificuldade e risco.

A Receita Federal tentou eliminar esse subproduto indesejável da invenção do pix, editando a referida instrução normativa. Na prática cancelou a equiparação do pix à moeda corrente, estabelecendo que os movimentos mensais acima de 5 mil reais para pessoas físicas e 15 mil reais para pessoas jurídicas deviam ser informadas ao Fisco. Incluiu nessa instrução as novas Fintechs e suas contas gratuitas.

Com isso a Receita estava fechando as portas para os sonegadores de impostos, mas, principalmente, estava dificultando a vida dos contraventores de qualquer espécie. Entretanto, cometeu um grave erro. Ameaçou os mais vulneráveis.

O universo de pequenos e microempresários e trabalhadores autônomos é bastante diversificado. Muitos são formalizados pelo Simples e pelo MEI. Nesses regimes os impostos são bastantes reduzidos. Mesmo assim, para muitos deles, os impostos ainda são elevados. São pequenos produtores caseiros, vendedores ambulantes ou técnicos de informática que atendem em domicílio ou escritórios de empresas. Mas, também, são entregadores, costureiras, cabeleireiras, manicures, diaristas e profissionais de pequenos reparos, com baixa qualificação. Todos eles evitavam emitir notas fiscais e procuravam receber suas vendas em dinheiro vivo com todos os riscos e dificuldades que essa opção acarretava. O pix naturalmente veio em seu auxílio.

Para alguns, como entregadores e motoristas de aplicativos, o mercado onde atuam é um oligopsônio, constituído por poucos tomadores de serviços. Uber, 99 e IFood são os mais conhecidos. Nessas condições, o valor de seu trabalho é estabelecido pelo contratante em um mercado bem restrito o que pode, muitas vezes, conduzir à exploração do trabalho. Esses pequenos empresários e trabalhadores, na maioria das vezes, mal se sustentam com suas atividades. Evidentemente grande parte não paga impostos. Nem poderiam. Não tem de onde tirar.

A Receita Federal para estabelecer o teto de 5 mil reais deve ter levado em consideração que 80% dos clientes das Fintechs tem renda de até 5 mil reais.(4) Entretanto esse valor é muito baixo. A movimentação financeira desses pequenos agentes econômicos ilude muito. Principalmente se considerarmos que nesse valor estão incluídos os gastos totais e não apenas a remuneração de seu trabalho. Um exemplo típico é uma micro empresária que fabrica e vende doces e bolos, trabalhando em casa. Em seus recebimentos estão incluídos todos os materiais, energia e desgaste dos utensílios e equipamento utilizados.

Prestadores de serviços em domicílio, como bombeiros e eletricistas, bem como, motoentregadores e motoristas de táxi estão na mesma situação. Peças de reposição, combustível, desgaste e manutenção de suas motos e carros constituem a maior parte de seus rendimentos. É preciso lembrar ainda que uma parte dessa multidão de informais não tem controle contábil de sua atividade. Na verdade, não sabem ao certo quanto faturam ou recebem ao final do mês e muito menos qual a parcela de seus rendimentos são custos e qual é o seu saldo disponível.

Por tudo isso a insegurança se instalou. Uma boa parte da população brasileira se sentiu ameaçada pela instrução normativa da Receita e imaginou que outros apertos poderiam ser anunciados no futuro. Não sem razão, no imaginário popular, o Leão é muito voraz, principalmente com as rendas baixas e médias. No Brasil os de menor renda pagam mais impostos proporcionalmente do que os mais ricos. O sistema de impostos é essencialmente concentrador.

A reação foi gigantesca e foi aproveitada pela extrema direita para sair da defensiva em que se encontrava desde a revelação do plano de golpe de Estado, detalhado pela Polícia Federal. O vídeo de um deputado da oposição explorou essa insegurança, atingindo 300 milhões de visualizações no Instagram em poucos dias. Obviamente o vídeo foi editado em tom catastrófico com muitas fake news e meias verdades. Certamente a grande repercussão do vídeo não foi devida somente à sua capacidade de comunicação nas novas mídias.

A insegurança e insatisfação dos mais vulneráveis teve um papel preponderante. Com a repercussão negativa, o Governo Federal corretamente cancelou a instrução normativa da Receita e determinou que o movimento financeiro com pix em qualquer valor se equiparasse à moeda corrente.

Entretanto, essa medida saneadora não tem a capacidade de corrigir algumas características que marcam a sociedade brasileira desde muito tempo. A informalidade obviamente não é culpa dos informais. Tanto é que uma recente pesquisa da FGV/IBRE mostrou que quase 70% dos trabalhadores autônomos gostariam de ter um emprego com carteira assinada (5). A Receita Federal precisa achar formas criativas de dificultar a vida dos grandes sonegadores e contraventores sem atingir os pequenos informais. Precisa ter consciência que opera em um país de desigualdades extremas.

Além disso, como já foi dito, a alta informalidade é um problema estrutural da economia brasileira. A informalidade resulta, em grande parte, do estágio de subdesenvolvimento em que vivemos. Ainda segundo o IBGE, no trimestre encerrado em setembro de 2024, 38,8% da força de trabalho no Brasil era informal.

Por comparação, nas economias desenvolvidas este número raramente atinge 10%.  Entretanto a superação do subdesenvolvimento não é uma tarefa fácil. Exige planejamento e execução de ações de longo prazo. É necessário que as forças progressistas e democráticas encontrem uma forma de colocar esse projeto em sua pauta. De criar a expectativa concreta de que um dia chegaremos ao Estado de bem estar social.

*Sergio Gonzaga de Oliveira é engenheiro (UFRJ) e economista (UNISUL).

Notas


(1) Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, PNAD Contínua 2024, 29 de novembro de 2024.

(2) Banco Central do Brasil, O Brasileiro e sua Relação com o Dinheiro, Pesquisa de 28/05 a 01/07/2024.

(3) Banco Central do Brasil, Relatório de Economia Bancária, 2023.

(4) Globo Economia, Pix e fintechs incluíram 60 milhões em serviços bancários em uma década, 20.01.2025.

(5) Campelo, Aloisio et al, Trabalhadores autônomos: quem são e o que pensam, IBRE / FGV, 01.07 2024


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