O Manifesto Juntos

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Por VALERIO ARCARY*

O enigma Lula permanece. Ele será um agitador na luta para derrubar Bolsonaro ou será o negociador de uma transição eleitoral?

Voltar atrás é melhor que perder-se no caminho” (Sabedoria popular russa).

A esquerda brasileira foi capaz, em maio, de se unir em torno de um pedido conjunto de impeachment de Bolsonaro. Mas agora em junho se dividiu sobre dois temas: a assinatura do manifesto Juntos, e a participação nas primeiras manifestações de rua depois do início da pandemia. As duas polêmicas despertam paixões, mas são muito diferentes. A primeira tem sentido estratégico, a segunda é de natureza tática.

Erros táticos podem ser, rapidamente, corrigidos. Os estratégicos são mais complicados. Por isso, a decisão de Lula indo contra a corrente, e contrariando muitos no PT, e até mesmo no Psol, foi corajosa. Porque o manifesto Juntos não se posiciona pelo Fora Bolsonaro. E esse silêncio decorre, evidentemente, de um veto imposto por Fernando Henrique. A luta para derrubar Bolsonaro pode se fortalecer procurando a unidade de ação pontual entre a oposição de esquerda e a oposição liberal. E toda unidade de ação só é possível a partir de um mínimo denominador comum. Estes dias, por exemplo, uma unidade de ação foi possível exigindo transparência na divulgação de dados da pandemia. Mas, um manifesto em defesa da democracia, que não denuncia sequer as ameaças de autogolpe de Bolsonaro, não merece ser assinado. Seria uma rendição.

Precisamos aprender com a história, se queremos derrotar Bolsonaro. Existe o perigo de cometermos erros sectários, ou tomar iniciativas ultraesquerdistas, mas o perigo oposto não pode ser ignorado. Na verdade, o perigo de uma capitulação às pressões da oposição liberal é o maior, neste momento. Mas ainda há tempo de voltar a trás.

O dilema está colocado para toda a esquerda. Vencerá a tática quietista de aguardar as eleições de 2022 “sem provocar”, e respeitar o mandato de Bolsonaro, aceitando a posição de FHC de pressionar o governo para evitar o autogolpe? Ou aqueles que defendem a necessidade de enfrentar Bolsonaro agora e já, unindo a esquerda na resistência ao perigo neofascista serão ouvidos? Nesse contexto, um pouco de perspectiva histórica poderá ser útil.

Qual foi o debate de tática na esquerda na fase final da luta contra a ditadura militar? Quem tinha razão em 1978/79? Qual foi a tática que passou a prova no laboratório da história? Como foi que o PT conquistou a posição hegemônica na esquerda nos anos oitenta?

Tinha razão a esquerda moderada, o PCB, PCdB e MR-8- que se mantiveram dentro de um MDB que negociava, explicitamente, a transição lenta, gradual e segura, esperando as eleições de 1982, e o Colégio Eleitoral? Era correto aceitar a liderança do MDB, que representava uma fração da classe dominante que queria garantir uma transição controlada, por dentro das instituiçôes do regime, para evitar, a qualquer custo, o perigo de uma nova tentativa de golpe como o do general Frota em 1977? A tática de “não provocar” estava certa ou errada? A tática quietista, de aguardar “quietos” o ritmo da transição organizada pela próprio ditadura, era o melhor caminho?

Ou não é verdade que a direção do MDB só aceitou encabeçar a campanha pelas Diretas Já, a partir de 25 de janeiro de 1984, porque: (a) temia qua a iniciativa ficasse nas mãos do PT, ou mesmo de Brizola, eleito governador do Rio de Janeiro em 1982; (b) temia a vitória de Maluf contra Andreazza dentro da Arena/PDS; (c) apostava na divisão do partido da ditadura, e a formação do PFL liderado por Sarney; (d) e porque Ulysses Guimarães pressionou Tancredo e Montoro até o máximo limite?

Ou era correto apostar, depois da onda de greves de 1978/79, em uma luta de massas para derrubar a ditadura? Estava ou não certa a direção do PT que compreendeu que a burguesia estava dividida, que a classe média se deslocava para a oposição à ditadura, e que uma nova classe trabalhadora, em um país mais urbanizado, tinha força social para derrubar o regime? Estava certa a direção do PT em dizer que o perigo maior não era “não provocar”, era “não colaborar”? Como se reconstruiu a esquerda brasileira depois de vinte anos de ditadura militar?

Se os setores mais lúcidos e combativos da esquerda não tivessem fundado o PT em 1980, se o PT não tivesse lançado Lula como candidato a governador, disputando com Franco Montoro, em 1982, quando não havia sequer segundo turno, se o PT não tivesse tomado a iniciativa da campanha das Diretas no comício do Pacaembu em 1983, Lula não teria podido ocupar o lugar que teve nas ruas em 1984. O PT não teria conquistado autoridade para não participar do Colégio Eleitoral que elegeu Tancredo Neves. Não teria se posicionado com coerência para ser oposição a José Sarney. Em consequência, Lula não teria chegado ao segundo turno em 1989.

A tática do PT entre 1980-/89 passou a prova da história. A tática do PCB/PCdB e MR-8 demonstrou-se errada. Sobreestimaram a força da ditadura, e subestimaram a potência da mobilização de massas da classe trabalhadora. Uma das razões porque a classe dominante conseguiu reduzir os danos na transição, e preservar intacto o aparelho militar-policial, foi que uma parcela da esquerda, majoritária naqueles anos, serviu de biombo na proteção da liderança do MDB de Tancredo, e a negociação por ele liderada.

A direção do PCB, ainda a maior organização de esquerda em 1978/79, finalmente, foi até ao limite da destruição do seu próprio partido. A direção do MR-8 transformou uma das mais dinâmicas e vibrantes organizações de esquerda em um satellite-apêndice do quercismo, uma ala paulista decadente do MDB. A direção do PCdB se reposicionou, corretamente, durante o governo Sarney, e se aliou ao PT e a Lula a tempo da disputa de 1989.

Uma esquerda para o século XXI tem que ser útil para lutar contra Bolsonaro. A natureza neofascista da corrente bolsonarista que mantém a hegemonia dentro do governo de extrema-direita é o fator chave que obriga uma reflexão muito serena sobre a tática. O objetivo central do bolsonarismo é impor uma derrota histórica à classe trabalhadora, e a anulação da esquerda brasileira. Têm muito medo do que aconteceu no Chile no ano passado. Têm muito medo do que pode acontecer se Trump perder as eleições nos EUA. Têm muito medo de serem derrubados, e depois criminalizados.

Evidentemente, qualquer partido de esquerda cujo posicionamento seja percebido pelas massas como um obstáculo na luta para derrotar Bolsonaro será, seriamente, desaprovado. Portanto, a questão de qual tática vai prevalecer, e quais forças políticas vão liderar a oposição é muito importante. Não há razão para não se aceitar iniciativas comuns pontuais com a oposição liberal, desde que sejam, efetivamente, contra Bolsonaro.  Porque a tática de lutar para sair da defensiva e derrotar Bolsonaro, antes das eleições, é muito diferente da posição da oposição liberal. Já deixaram claro que pretendem respeitar o mandato de Bolsonaro até o fim.

O mais grave, entretanto, é que, se mantidas as atuais condições de “temperatura e pressão”, derrotar as candidaturas do bolsonarismo em 2020 ou, pior ainda, em 2022 será uma luta duríssima. São, pelo menos, quatro variáveis a serem consideradas: (a) as sequelas da catastrofe sanitária que pode assumir dimensões apocalípticas, mas estão em disputa; (b) a degradação do cenário econômico-social, e a percepção que as massas populares terão da responsabilidade do governo; (c) a força da resistência politico-social diante da ofensiva do bolsonarismo em todos os terrenos; (d) e o futuro das investigações sobre as relações do bolsonarismo com as milícias e com as fake news.

A questão, portanto, é complicada. Os partidos não são um fim em si memos. Devem ser instrumentos de luta coletiva. Mas “um mais um” só são dois em aritmética. Em política há alianças em que as forças aliadas se fortalecem, e outras em que se anulam.

Outra questão de fundo, neste momento, no lugar que a esquerda pretende disputar, mas onde se decide, também, o destino do PT  é se Lula recupera ou não os direitos políticos. Terá a dificuldade de tentar uma reinvenção a la Corbyn do PT tendo sido, doze anos antes, ele mesmo, o Blair do PT. Não será simples, embora não seja impossível. Entretanto, o enigma Lula permanece. Ninguém sabe que lugar quer ocupar diante da história. Estará disposto a ser um agitador na luta para derrubar Bolsonaro? Ou veremos de novo o “Lulinha paz e amor” tentando ser o negociador de uma transição eleitoral? As entrevistas de Lula até agora não permitem tirar conclusões. Mas ele esteve muito bem ao não assinar um manifesto perigoso.

*Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de As esquinas perigosas da história (Xamã).

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