Minha infância nos porões da Bela Vista

Imagem de Gérson Rodrigues Marins
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Por FLORESTAN FERNANDES*

“Eu morava lá na casa dele e queria sair de lá, eu dizia que passava mal, que comia mal, dormia mal e tudo ia mal, e ela não acreditava”

Era uma cidade dura e uma das experiências dramáticas que tive foi na casa de um alfaiate italiano, na rua Major Diogo. Foi um trabalho que minha mãe, através de amigas, me arrumou na preocupação de me dar um ofício. O patrão tinha uma alfaiataria na rua Quintino Bocaiúva. Era um sobrado e ele tinha boa freguesia. O conde Matarazzo era freguês dele. Eu conheci o conde e sua filha lá.

Tinha por volta de nove anos e pouco, dez anos. Uma criança mirrada que ele vestiu com um paletó velho dele, sem reformar nem ajustar. Eu vestia, arregaçava a manga e parecia um desses garotos dos romances de Charles Dickens, aquelas crianças abandonadas de Londres.

Eu ia a pé da Major Diogo até a Quintino Bocaiúva, esquina com a José Bonifácio, e voltava várias vezes, porque eu ia de manhã, depois voltava para pegar o almoço dele, e volta à noite. Nesse vaivém passava por várias áreas de pessoas que tinham outra vida. Eu via, por exemplo, o Paramount. Ao passar por lá, via aquela beleza, aqueles metais amarelos, aquilo tudo brilhando, aqueles homens que abriam as portas dos carros das pessoas que iam assistir aos filmes, todos vestidos com aquela roupa especial, tudo aquilo me deslumbrava.

Desse ângulo, a vida em São Paulo me encantava sim. Mas era eu de um lado e essa vida de outro. Isso bolia muito com minha fantasia, porque eu ficava pensando na minha vida em termos daquilo tudo que não usufruía. Essas minhas fantasias iam na direção compensatória. Preocupava-me em conseguir para mim e para minha mãe coisas desse tipo.

Fiquei trabalhando com esse alfaiate durante algum tempo, até que minha mãe foi me visitar uma noite, porque eu ia só uma vez ou outra na casa dela. Eu morava lá na casa dele e queria sair de lá, eu dizia que passava mal, que comia mal, dormia mal e tudo ia mal, e ela não acreditava. Um dia ela foi lá para ver.

Ele morava numa casa térrea e a rua tinha um desnível grande. Então, o porão era mais alto do que a parte da casa térrea. Eu morava no porão. Só que ele morava numa casa e alugava a outra. E nos dois porões ele guardava grandes armários. Em cima de um desses armários ele colocou um colchãozinho e eu então ficava perto do respirador.

Com a iluminação da rua, as sombras das pessoas que andavam se projetavam na parede de uma maneira fantástica, o mesmo acontecendo com o ruído das pisadas. Afora o barulho, tinha rato, morcego, aranha, barata, eu vivia apavorado, passava a noite apavorado. Quando minha mãe viu onde eu dormia, levou um susto e brigou com o homem: ‘o senhor não tem coração?’. Na mesma hora me tirou de lá.

*Florestan Fernandes (1920-1995) foi professor de sociologia na USP e deputado federal pelo PT. Autor, entre outros livros, de A Revolução burguesa no Brasil (Contracorrente).

Publicado originalmente em: CHASIN et al. (1986). Florestan Fernandes: a pessoa e o político, Revista Ensaio, v. 2, n. 3, p. 65. Disponível aqui.


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