Os russos estão chegando!

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Por SAMUEL KILSZTAJN*

A Europa segue se debatendo com o fantasma russo que derrotou Napoleão e nunca aderiu à Revolução Francesa e à democracia ocidental. A organização e as instituições políticas da Rússia constituem um mistério e um desafio para a Europa

Em 1956, o relatório de Nikita Khrushchov “Sobre o culto à personalidade e suas consequências”, conhecido como “Relatório (discurso) secreto”, que destacava o expurgo e extermínio de milhares de militantes comunistas e desmistificava o papel de Joseph Stalin durante a Segunda Guerra Mundial, afetou as relações diplomáticas entre a China e a União Soviética, que se deterioraram categoricamente em 1964.

Em meio à Guerra Fria, os Estados Unidos acompanharam radiantes a cisão sino-soviética, que enfraquecia o seu então inimigo nº 1, a Cortina de Ferro formada pela Rússia, as demais repúblicas da União Soviética e os estados satélites da Europa que compunham o Pacto de Varsóvia, além da vizinha Cuba.

A aproximação dos Estados Unidos à China teve início em 1968, o presidente republicano Richard Nixon visitou o país (1972), a Guerra do Vietnã acabou (1975) e as relações diplomáticas entre os Estados Unidos e a República Popular da China foram formalmente estabelecidas em 1979.

A Rússia deu início à Perestroika em 1986 e os países-membros do Pacto de Varsóvia começaram a abandonar o comunismo em 1989, ano em que o Muro de Berlim foi colocado abaixo. Em 1991 o Partido Comunista foi extinto, a União Soviética foi dissolvida e a Guerra Fria acabou. Apesar da Guerra do Golfo, o mundo vislumbrava e festejava novos tempos de paz e harmonia universal. Nelson Mandela saiu da prisão para a presidência da África do Sul. Quanta ironia estarmos hoje sentindo saudades dos tempos da Guerra Fria!

Na passagem dos séculos XX para o XXI, o tradicional Império Chinês, que havia sido dominado pelo ocidente durante as Guerras do Ópio em meados do século XIX, reergueu-se para se transformar em uma grande potência mundial, utilizando-se das próprias armas do ocidente, o mundo da mercadoria e o progresso. O acirramento aberto das relações comerciais entre os Estados Unidos e a China teve início durante a administração de Donald Trump em 2017 e a China é o atual inimigo nº 1 dos Estados Unidos.

Neste segundo mandato, Donald Trump está determinado a apaziguar o conflito entre a Europa e a Rússia, de forma a distanciar os russos dos chineses, o mesmo expediente utilizado há 60 anos, com poderes e alianças invertidos. E, ao que tudo indica, a presente desarticulação entre os Estados Unidos e a Europa favorece a China, se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.

O fantasma russo – passo a passo

A reação da aristocracia da Europa Continental levou Napoleão Bonaparte a exportar a Revolução Francesa e, durante a Era Napoleônica, o ideário da revolução invadiu o continente. Mas, em 1812, Alexandre I derrotou a Grande Armée de Napoleão, mantendo o Império Russo refratário às conquistas liberais que dominaram a Europa Continental.

Em Guerra e paz, Léon Tolstoy reconstruiu a historiografia da Campanha Russa e do acaso que governou a obstinada resistência do povo e do exército russos (os ocidentais, contudo, atribuem a vitória ao General Frost, o rigoroso inverno russo). A Rússia derrotou Napoleão em 1812 e teve que esperar mais um século para abolir a sua monarquia absolutista.

Após a Revolução Russa de 1917, a guerra civil tomou conta do antigo Império. Ao lado da Ucrânia e da Bielorrússia, a Polônia fazia parte do Império Czarista. Os bolcheviques entendiam que o socialismo restrito à arcaica Rússia era inviável e queriam alcançar Varsóvia para se juntarem ao movimento revolucionário alemão (a Polônia ficava estrategicamente entre a União Soviética e a Alemanha). O objetivo de Vladímir Lênin era alcançar Berlim, Paris e Londres.

E a Europa, alinhada, se empenhou em erguer um “cordão sanitário” para deter o avanço soviético sobre a Polônia. Charles De Gaulle participou da Missão Militar Francesa na Polônia e ganhou a mais alta condecoração militar polonesa, o Virtuti Militari. Os bolcheviques não conseguiram atravessar a Polônia para alcançar Berlim; e a Alemanha se encarregou de reprimir seus socialistas, eliminando os líderes Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht em 1919.

Após a morte de Vladímir Lênin, Joseph Stalin encabeçou a doutrina do “socialismo em um país só” e o internacionalista Léon Trotsky foi afastado do Partido Comunista. Em 1939, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, a Alemanha nazista passou a contemplar a Polônia. Para conter as aspirações alemãs, Londres, Paris e Moscou ensaiaram, mas não conseguiram chegar a um acordo, porque a Polônia se recusava a permitir a entrada das tropas soviéticas em seu território.

Por fim, em 23 de agosto de 1939, a Alemanha nazista e a União Soviética acabaram assinando um Pacto de não-agressão, com protocolos secretos determinando a repartição da Polônia. Assim, depois de duas décadas de independência, a Polônia voltou a ser partilhada entre a Rússia e a antiga Prússia e Áustria, então unificadas como III Reich.

Depois de ocupar a Europa Continental, em junho de 1941, a Alemanha nazista resolveu invadir a União Soviética. A sangrenta Batalha de Stalingrado, na qual mais de um milhão de russos pereceram, é considerada o ponto de inflexão do Terceiro Reich, projetado para durar um milênio. E os poloneses tiveram que contar com o seu inimigo nº 1 para libertá-los da ocupação alemã. Em 1945, depois da Segunda Guerra Mundial, a Imperial Rússia Soviética, vitoriosa (mais uma vez, o General Frost, do ponto de vista dos ocidentais), ocupou todos os países do Leste Europeu e metade da Alemanha, assentou os comunistas no poder à sua imagem, transformou todos os seus territórios em estados satélites e constituiu o Pacto de Varsóvia.

Com a iminência da dissolução do Pacto de Varsóvia, a OTAN e a URSS acordaram em manter neutros os países-membros do Pacto. Entretanto, todos os antigos membros do Pacto de Varsóvia foram incorporados à OTAN porque, segundo a mesma, o acordo fora firmado com a URSS, dissolvida em 1991. Foi então acordado entre a OTAN e a Rússia que a Bielorrússia e a Ucrânia constituiriam a nova região neutra. Na Crise da Criméia de 2014, a Ucrânia e a Rússia entraram em conflito e o embate segue na guerra da Ucrânia em curso.

As autoridades europeias se surpreenderam com a política norte-americana anunciada por Donald Trump. O fantasma russo corre solto e parece bater à porta de Napoleão em 1812. Assim como os bolcheviques em 1917 e Stalin em 1945, mais uma vez, os russos estão chegando. Volodymyr Zelensky, a princípio, ficou revoltado; Emmanuel Macron, por sua vez, ficou em pânico com a ameaça russa à França e à Europa e disponibilizou o seu arsenal nuclear.

A Europa segue se debatendo com o fantasma russo que derrotou Napoleão e nunca aderiu à Revolução Francesa e à democracia ocidental. A organização e as instituições políticas da Rússia constituem um mistério e um desafio para a Europa, desde o império dos czares, passando pelos bolcheviques e, agora, com Putin no poder. Vale a pena ler o bem humorado desabafo que o sociólogo marxista russo Boris Kagarlitsky, editor-chefe da revista online Rabkor.ur, enviou da prisão, onde atualmente cumpre pena de cinco anos.

*Samuel Kilsztajn é professor titular em economia política da PUC-SP. Autor, entre outros livros, de Do socialismo científico ao socialismo utópico [amz.run/7C8V].

Referências


Os russos estão chegando! Os russos estão chegando! [https://www.youtube.com/watch?v=0ACDoxjj9WQ] é uma comédia dirigida por Norman Jewison, lançada em 1966, no auge da Guerra Fria. Um submarino soviético encalha em uma ilha em Massachusetts. A tripulação do submarino desembarca para solicitar ajuda, mas os moradores locais entram em pânico, acreditando que estão sendo invadidos pela União Soviética. O filme foi mencionado no Congresso dos Estados Unidos e exibido no Kremlin. Vale a pena conferir, é hilariante (devo registrar, contudo, que, em 1967, eu simplesmente odiei o filme – estávamos em plena Ditadura Militar, tinha 15 anos de idade, estava me preparando para a militância política e não achei nada engraçado).


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