Yupuri – um intelectual orgânico do alto rio Negro

Imagem: Sergio Souza
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Por SAMUEL KILSZTAJN*

Yupuri está empenhado em preservar a cultura e a autoestima dos povos indígenas e lutar por seus direitos e sobrevivência

Em 1951, a Unesco financiou um projeto sobre relações raciais no Brasil, com o propósito de utilizar a “democracia racial brasileira” como material de propaganda para a superação do racismo a nível internacional. O sociólogo brasileiro Luiz Aguiar da Costa Pinto, que participou do Projeto Unesco, em resposta a uma crítica a seu trabalho por parte de intelectuais negros, declarou no periódico carioca O Jornal de 10 de julho de 1954 que micróbios não deveriam escrever sandices a respeito de um estudo no qual participaram apenas como material de laboratório.

Na introdução da dissertação Wai-Mahsã: peixes e humanos, um ensaio de Antropologia Indígena, João Paulo Lima Barreto conta que, antes de ingressar no mestrado em Antropologia Social, perguntou a seu futuro orientador se poderia “estudar os brancos”.

Em 2022, a Capes escolheu Kumuã na kahtiroti-ukuse: uma “teoria” sobre o corpo e o conhecimento prático dos especialistas indígenas do Alto Rio Negro a melhor tese de doutorado do país em Antropologia e Arqueologia de 2021. Defendida na Universidade Federal do Amazonas – UFAM, sua tese foi publicada pela Editora Mil Folhas com o título O mundo em mim, uma teoria indígena e os cuidados sobre o corpo no Alto Rio Negro.

Yupuri-ʉremiri-sararo-buberaporã, indígena Yepamahsã (Tukano), nascido e criado na Corredeira do Rouxinol, filósofo com mestrado e doutorado em Antropologia Social, é professor e pesquisador da UFAM. Yupuri, que consegue traduzir o mundo indígena para o mundo branco e vice-versa, sobreviveu aos brancos arrogantes sem perder a sua integridade. E foi a partir de sua força de caráter que pôde defender e afirmar a cultura indígena em meio à cultura ocidental dominante.

Em entrevista, declarou que a diferença fundamental entre os indígenas e os brancos é que os indígenas são o povo da oralidade, o povo da palavra; e os brancos são o povo da escrita. Para os indígenas a palavra é sagrada; para os brancos o papel é que fala. Para os indígenas a palavra é concreta e tem o poder de construir, destruir, transformar, organizar, desorganizar, curar ou matar. Eu diria que os indígenas são autênticos, íntegros, e que a verdade do branco é o seu dom de iludir. O branco, além de conversador e dissimulado, é traiçoeiro. Está sempre buscando algo, está sempre inquieto e não conhece o repouso. Começa querendo aniquilar os animais, as plantas, os rios, a terra, os outros povos, seus vizinhos, seus parentes, para acabar brigando com a própria sombra.

Na introdução da tese, o antropólogo apresenta sua trajetória, da comunidade indígena à universidade, porque sua produção acadêmica se confunde com a sua história de vida. Passou a infância imerso na cultura de seu povo, orientado principalmente pelo seu avô paterno, que era um renomado especialista em Medicina Indígena. Aos sete anos começou a frequentar a escolinha, a catequese e os cultos da igreja católica. Aos onze anos foi transferido para o colégio salesiano, em regime de internato, onde era proibido de falar sua língua materna. “O padre ameaçava colocar uma placa com a frase ‘sou burro’ em nosso pescoço se descobrisse que alguém estava se comunicando em sua língua materna.”

João Paulo Lima Barreto saiu de sua comunidade pela primeira vez aos 16 anos de idade, para cursar o ensino médio em Manaus, onde enfrentou dificuldades linguísticas e discriminação, só escapando do desespero e da loucura devido às orientações e às ervas que seu pai, especialista em Medicina Indígena, lhe repassara antes da viagem. Depois de concluir o ensino médio, por três anos, atuou como professor do internato em sua comunidade.

Mais tarde, foi para o Seminário Salesiano e cursou Filosofia Seminarística. Em 2000, desistiu da carreira de sacerdócio e voltou a estudar Filosofia na UFAM e Direito na Universidade do Estado do Amazonas. Neste percurso, reconheceu na filosofia grega os ensinamentos de seu avô, mas era reprimido quando tentava traçar algum paralelo entre as culturas grega e indígena, “os professores logo diziam que isso era mito”, não era filosofia. No curso de Direito perguntou ao professor por que os Direitos Indígenas estavam dentro do ordenamento jurídico do Direito Ambiental.

Pouco antes de se graduar em Filosofia na UFAM, a filha de doze anos do irmão de João Paulo foi picada por uma cobra venenosa e acabou sendo encaminhada para um hospital em Manaus, onde os médicos decidiram amputar o seu pé. A assistente social e a equipe médica pressionaram seu irmão a autorizar a amputação do pé da menina, dizendo que, caso contrário, ela morreria dentro de três dias. O pai e os tios de Yupuri, que eram todos especialistas em Medicina Indígena, garantiram que não era necessário amputar o pé da menina e que poderiam tratá-la de acordo com a Medicina Indígena.

Em reunião, o chefe da equipe médica do hospital, raivoso, arrogante e visivelmente irritado, disse a seu pai, esmurrando a mesa, “eu estudei oito anos para ter autoridade para decidir o que é melhor para um paciente, enquanto o senhor, com muito respeito, não frequentou um dia sequer a medicina”; e se retirou da sala levando consigo toda a equipe médica. O Ministério Público Federal e a mídia foram mobilizados e a menina conseguiu ser retirada do hospital. Tratada pelos especialistas em Medicina Indígena, a menina reagiu, o pé desinchou e ela teve alta.

Depois de se graduar em Filosofia, Yupuri trancou a matrícula em Direito, ingressou na pós-graduação em Antropologia Social e passou a integrar o Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena – NEAI, da UFAM, que conta com a participação de estudantes e pesquisadores indígenas. O NEAI dedica-se à produção de conhecimentos para a melhor compreensão dos conceitos nativos e da complexa realidade cultural da Amazônia. Em 2017, fundou o Centro de Medicina Indígena Bahserikowi, com sede em Manaus. A Medicina Indígena considera que o ser humano é constituído pelos elementos animal, vegetal (floresta), água, terra (mineral), ar e luz; o corpo humano é a síntese de todos esses elementos – o mundo em mim. É neste sentido que cuidar da natureza é cuidar do corpo humano.

A tese de doutorado foi desenvolvida em meio à sua atuação junto aos companheiros do NEAI e a partir da convivência e do acompanhamento diário da prática dos especialistas em Medicina Indígena que atuavam no Centro Bahserikowi, que lhe remetiam ao aprendizado de sua infância com o avô. Os especialistas em Medicina Indígena costumavam dizer que a cabeça de João Paulo “estava mais voltada para aprender coisas dos ‘brancos’”; ele não se formou para ser um especialista em Medicina Indígena, formou-se para ser antropólogo, um intelectual orgânico ou, nas palavras de Yupuri Lima Barreto, um antropólogo nativo. Na construção de uma Antropologia Indígena, busca “um diálogo mais simétrico entre os modelos de conhecimentos ocidental-científico, construídos pela via escrita, e os conhecimentos indígenas, baseados na oralidade.”

Ao lado de Ailton Krenak, Davi Kopenawa, Jaider Esbell, Raoni Metuktire e Sonia Guajajara, Yupuri está empenhado em preservar a cultura e a autoestima dos povos indígenas e lutar por seus direitos e sobrevivência.

*Samuel Kilsztajn é Samuel Kilsztajn é professor titular da PUC-SP. Autor, entre outros livros, de Shulem, Returnees e Yiddish (https://amzn.to/3ZkegH7).


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