A última viagem de Ulisses

Feres Lourenço Khoury (Jornal de Resenhas)
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Por FLAVIO AGUIAR*

Tradução e comentário sobre o discurso de Ulisses no Canto XXVI do Inferno de Dante. Com PS sobre Bolsonaro.

Dante chega ao oitavo círculo do Inferno, onde estão os fraudulentos, mentirosos, sedutores, trapaceiros, conselheiros de má fé, etc. Num dos abismos por lá, depara com condenados que estão presos dentro de chamas que os queimam. Numa delas há dois personagens: Ulisses e Diomedes, remanescentes da Guerra de Tróia, onde praticaram diversos feitos fraudulentos, entre eles o do célebre Cavalo. Mas não será este o foco principal do poeta viajor, guiado por Virgílio.

Dante quer saber por que estão ali. Virgílio, que sabe grego antigo, desestimula Dante a falar, porque os prisioneiros em seu interior poderiam aborrecer a fala “estranha” do poeta florentino, e interroga ele mesmo a chama. Ulisses responde, esclarecendo seu destino final. Dante toma uma liberdade poética, pois nega que Ulisses tenha retornado à Ítaca, ao contrário do que fixara a tradição antiga. Ao invés, no poema, Ulisses reúne seus companheiros restantes e ruma para o Ocidente, querendo conhecer o que jaz além das colunas de Hércules, um tema medievo. Sua viagem é fadada de antemão ao fracasso.

Alegoricamente, ele é condenado porque decide empreitar a aventura do conhecimento apenas com a razão, sem o concurso da fé. Esta é a diferença entre ele e Dante. Ulisses vai pela superfície do mar, enquanto o poeta vai pelo subterrâneo do Mal (o Inferno), conhecendo-lhe a diversa natureza, portanto. Ambos chegarão ao mesmo destino: o sopé da montanha do Purgatório. Dante empreenderá a subida que o levará ao Paraíso e dali ao Céu até a visão da Divina Luz. Ao contrário, Ulisses sucumbe, arrastando seus companheiros de viagem, e mergulha nas profundas do reino de Lúcifer, o anjo decaído e descaído.

Ao chegar ao fundo do Poço, Dante deve descer pelo corpo de Lúcifer Tricéfalo para chegar à rocha do outro lado, o que lhe possibilitará encontrar a saída. Nesta perigosa travessia descendente, Virgílio e Dante devem se agarrar aos pelos de Lúcifer, cujas três cabeças mascam, separadamente, três grandes traidores da humanidade: Brutus e Cássio, assassinos de César, e Judas, que traiu a Cristo. Lúcifer está preso na rocha. Só se movem suas mandíbulas para castigar aquele trio, e suas asas, gerando um vento gelado que produz o gelo do Cocito, o lago congelado do último círculo infernal. Ele, o Demônio, é a imagem do “movimento que não se movimenta”, metáfora do segredo último do Inferno: a impossibilidade do passo transcendente e redentor. As almas infernais estão para sempre retidas em suas identidades terrenas, condenadas a serem eternamente o que foram em vida. Assim o sedutor e trapaceiro Ulisses será para todo sempre o sedutor e trapaceiro Ulisses, ou seja, Ulisses consumido eternamente por Ulisses, o presente e o futuro eternamente presos ao passado. O inferno não são os outros, o inferno és tu mesmo, para sempre.

No poema de Dante há, no entanto, mais liberdade do que apenas a poética. Esta envolve igualmente uma liberdade teológica. Quando o poeta começou a escrever sua Comédia, no começo do século XIV, já se consolidara a versão canônica do Inferno, consagrada por Tomás de Aquino, que ainda não recebera o título de santo, quando Dante ainda era um menino: aquele morreu quando este completava onze anos de idade. Nesta versão da ortodoxia cristã, o Inferno era um lugar de escuridão absoluta e silêncio eterno. Para Tomás de Aquino a única luz no Inferno provinha do fogo que queimava os condenados por dentro e fazia seus olhos brilharem, enquanto choravam um pranto sem lágrimas e soluçavam soluços sem som. Também por dentro, roía-lhes as entranhas o verme do remorso.

Escrevesse Dante um tratado teológico, ele provavelmente seria proibido, pois não só ele e Virgílio dialogam de viva voz com os condenados, como o florentino promete que, quando voltar ao mundo dos vivos, contará a eles o que ouviu daqueles. Mas como Dante era um poeta, podia dar-se a liberdades que em outros gêneros de escrita seriam interditas. Entre as liberdades, a da língua: Dante escreveu seu longo poema – considerado épico – em dialeto toscano, ao invés de em latim, como seria mais apropriado. E ao “dar voz” aos condenados do Inferno Dante deu-lhes também, em muitos casos, uma majestosa e solene dignidade. Foi o caso de Ulisses.

Se tomarmos a passagem simplesmente ao pé da letra, estaremos matando a poesia do poema, que é a de colocar em contraponto o vigor ainda dominante do arcabouço medieval europeu, mas que já se inclina para o seu outono (hoje podemos perceber), e o novo rigor da racionalidade emergente, ainda submersa, mas já impulsionando uma viagem sem retorno. E uma viagem em vários sentidos.

Em 1291 dois mercadores genoveses, os irmãos Vandino e Ugolino de Vivaldi, encetaram uma viagem com dois navios, atravessando as Colunas de Hércules ou Estreito de Gibraltar, nome derivado da expressão árabe, Jabal-al-Tariq, Montanha de Táriq, em homenagem ao comandante berbere que ali desembarcou em 711 D. C. para começar a conquista da Península Ibérica. Os irmãos Vivaldi rumaram para o sul, em busca de um caminho marítimo para chegar às Índias.

A viagem tinha propósitos comerciais, lado a lado com religiosos, pois dois frades iam a bordo para evangelizar os gentios. Tem-se notícia de sua empreitada até que atingiram o ponto que os portugueses, século e meio mais tarde, viriam a batizar como “Cabo Não”, no sul do Marrocos. Daí, desapareceram. Algumas expedições foram organizadas no século seguinte para encontrar seus traços, sem sucesso, embora provocassem muita especulação sobre o quão longe eles teriam chegado e sobre seu destino. Há versões que dizem terem eles chegado até o rio Senegal, entre o país deste nome e a Mauritânia ao norte, sendo aprisionados por governantes locais. Teria a expedição dos Vivaldi inspirado Dante? Não sou exegeta de sua obra para afirmar ou negar. Deixo a pergunta.

Outras viagens estavam em curso. Uma delas, como já observado, foi a do próprio Dante, escrevendo um “Poema Maior”, cuja classificação é de gênero poético, não de valor estético, em sua língua nativa. O toque se materializa no diálogo que antecede a fala de Ulisses, quando Virgílio pede a Dante para deixa-lo falar em língua clássica com a chama, pois o guerreiro grego poderia não entender ou se recusar a responder àquela “língua que lhe era estranha”, o “bárbaro” toscano.

A beleza maior desta passagem e do poema emana do fato de que Dante preserva a arquitetura mental do medievo que começa a entardecer junto às arestas do pensamento que irá implodi-lo, sem destruir seus alicerces, ao contrário, renovando-os.

O discurso que Ulisses faz para animar seus companheiros de viagem é um libelo revolucionário. O arcabouço medieval punha a Terra no centro do universo e o Homem no centro da Criação. Porém Ulisses põe a razão humana no centro de tudo: a razão anima a humanidade do homem e o mundo o espreita, ou seja, o e a espera, o homem e sua razão, diz ele a seus companheiros, incitando-os a arrostar o desconhecido, apesar da idade. Acho que nem eu resistiria a tal chamado incandescente.

Seguindo o estro das identidades como condenação, Ulisses nunca foi tão Ulisses quanto neste momento em que evoca seu discurso, até mais do que na instância em que o pronunciou, segundo sua narrativa. Pois nesta evocação já vive sua pena, e assim mesmo o renova, com toda a grandiosa coragem humana que ele encerra e ao mesmo tempo desvela. Lembra a interpretação da tragédia de Sófocles em que Édipo diz que, fosse qual fosse a pergunta da Esfinge, sua resposta seria “o Homem”, porque a resposta do Homem perante os Deuses é sempre o próprio Homem. Prometeu não faria melhor.

Uma última ousadia libertária. Confrontei-me com várias traduções da passagem de Ulisses. Refiro-me às poéticas, deixando aquelas em prosa de lado. Afinal, Dante não é Balzac. Todas com seus méritos, mas nenhuma me satisfez. Por quê? Porque eram todas muito preocupadas em preservar a inigualável erudição do texto de Dante, que procura aliar a comunicabilidade do toscano seu contemporâneo com os volteios do mundo clássico antigo. Muito meritório. Entretanto o resultado final costuma ser pouco poético em nossa língua. Falta-lhes embalo. Submetem a língua portuguesa a verdadeiros torcicolos sintáticos e semânticos. Então, como Ulisses, mal comparando, decidi empreitar a travessia, esperando não naufragar, embora a tal me arriscando. Ainda que reconheça que na minha versão é possível que eu tenha sido mais fiel ao espírito do guerreiro grego do que ao do poeta que o evocou.

Virgílio dirige-se à chama, e pergunta o que ela significa:

A ponta maior da chama antiga / Agitou-se, com uma voz ardente, / Como aquela que no vento vibra. / E como se fosse língua semovente / Articulando uma voz sem brida / Falou algo vindo de seu ventre: / “Quando de Circe me apartei em nova ida, / Depois de uma ano lá presente, / Antes que Eneas ali a ter viesse, Não me ative ao amor candente / Do Filho, do Pai, de quem houvesse, / Nem de Penélope, a mais amante. / Nada houve que em mim superasse / A indômita vontade do viajante, / De novo a romper o seu impasse, / A se largar pelo oceano adiante. / Assim me vi no lenho que singrasse / De novo o mar aberto e ondulante / Sem que ninguém da viagem desertasse / Dentre a fiel guarda acompanhante. / E nos fomos, passando pela ilha Sarda, / Depois ladeando a margem d’Espanha, / Frente a Marrocos, que o sol resguarda, /Até o mar que não se sabe o que banha. / Nós éramos aqueles em que o tempo tarda, / Velhos, em que a vida se acanha. / E chegamos ao estreito onde se alarga / A maldição de Hércules, que apanha / A proibição de ali passar, pois amarga, / Quem o fizer, a maldição antanha / Da morte, que ali aguarda. / Já passáramos Sevilha, à direita, / E à esquerda Ceuta nos mirava. / Foi quando tive esta fala escorreita: / “Irmãos, que viestes rompendo a trava / Da idade, não vos negueis a tal empreita: / Não sois brutos, a razão vos animava / Desde sempre, e o mundo vos espreita. / Com os segredos que este mar guardava”. / Assim a viagem ao ignoto foi aceita / Com a firme coragem que imperava / Nos corações da gente companheira. / Voltando nossa popa ao sol nascente / Deixando por detrás a larga esteira / Os remos tomaram o rumo do poente. / Quisemos devassar a rota aventureira / Do mundo que diziam não ter gente. / Passamos a ver as estrelas do austral / Enquanto as do norte caíam de repente. / Cinco vezes a lua mostrou-se no umbral / Seguindo nosso passo insistente. / Eis que surgiu um monte espectral, / Alto, como jamais se vira existente. / Felizes ficamos vendo terra, afinal, / Mas logo nos tomou pranto pungente / Do monte desceu terrível vendaval / E a nave golpeou de rijo pela frente; / Três vezes ela girou numa espiral. / Logo a popa deu um salto ascendente / Enquanto a proa, para o nosso mal, / Naquelas águas mergulhava para sempre.

A maior liberdade, confesso, que tomei, está nas rimas. Ao invés do esquema preferido de Dante, aba/bcb/cdc, etc.,  enveredei por um simplificado ab/ab com variações e rimas imperfeitas. Que fazer? É a vida.

Outra reflexão: esta empreitada é inseparável dos tempos que vivemos. O isolamento leva aos devaneios. Por outro lado, vivemos um tempo em que a defesa da razão se faz uma necessidade premente, revolucionária. Inclusive da razão medieval. Tenho lido acusações de que o pensamento do governo Bolsonaro é “medieval”. Que enorme disparate! Por exemplo: o planeta de Dante é esférico. Aliás, não só o planeta, mas todo o universo. Lúcifer caiu das esferas superiores (onde Dante quer chegar através de seu complicado caminho) e entrou nas entranhas da Terra, dizem alguns, pelo Mar Morto, dizem outros pelo que seria o Polo Sul. Isto explicaria, por exemplo, porque há maior concentração de terra no hemisfério norte.

A matéria do planeta, repulsando a presença do Mal, se afastou para longe e remodelou a Criação, concentrando terras no polo ou lado  oposto ao da chegada. Assim se explica também porque muitos mapas medievos põem o hemisfério sul para cima e o norte para baixo. Outro detalhe importante: no centro da Terra, hoje, em nosso imaginário real ocupado por uma fornalha, no mundo de Dante este centro era ocupado pelo púbis do Demônio. Interpretações são livres e bem-vindas: “livre pensar é só pensar”, dizia Millor. Só não me venham dizer que o mundo intelectual da Idade Média europeia era um mar de trevas.

A chegada de Dante ao fundo do Inferno me lembrou outro fundo (permitam-me a heresia): a da reunião ministerial de 22 de abril. Quem lê A Divina Comédia se dá conta de que, ao lado dos demônios originais, a criação deste espaço exigiu a presença de pequenos diabos funcionais, para manter o maquinário em ação: as fornalhas, os tridentes afiados, a tortura dos prisioneiros, estas coisas.  São diabinhos de segunda categoria, sem grandeza nenhuma, subservientes. Foi o que se viu lá: diabículos insolentes, vaidosos, mas capazes de fazer muito mal, registrando para a posteridade suas diabices devassas diante de seu líder tricéfalo, mascando em sua boca sulfurenta a Razão, o Decoro e ao centro o Povo Brasileiro.

Que o espírito de Ulisses e o de Dante, em conjunto, nos socorram.

*Flávio Aguiar é escritor, professor aposentado de literatura brasileira na USP e autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo).

Nota

A professora de Italiano da FFLCH/USP, Maria Cecília Casini, convidou-me gentilmente para participar de uma sessão de leituras de trechos de A Divina Comédia de Dante. A sessão é aberta para leituras do original e para traduções em várias línguas. Minha companheira Zinka Ziebell leu o episódio de Paolo e Francesca (Canto V do Inferno) numa tradução para o alemão. De meu lado, dirigi-me a uma das minhas passagens favoritas, também do Inferno, a do relato da última viagem de Ulisses.

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