Prendam os automóveis de sempre

Imagem: Agência Brasil/ Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom
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Por EUGÊNIO BUCCI*

Enquanto idosos penam, os verdadeiros astros da fraude do INSS brilham nos pátios da PF – de Ferrari a Porsche, o elenco de luxo da corrupção

1.

No rescaldo da fraude do INSS, as personagens mais interessantes não são os abutres que desviaram 6,3 bilhões de reais da Previdência, não é o ministro que caiu fazendo poses macambúzias, não é tampouco o ministro que entrou, adornado por um sorriso lívido. Todos esses aí são tipos inócuos; do respeitável público só merecem a indiferença.

Dentro da mais nova cloaca de corrupção, as únicas figuras com algum carisma não vestem paletó e gravata, não pigarreiam, não caminham sobre duas pernas e sequer respiram. Os verdadeiros astros do imbróglio, dignos da curiosidade popular, são os veículos automotivos apreendidos. Naquelas fuselagens constrangidas e lustrosas ainda mora um resquício de dramaticidade. Sobre aqueles pneus ociosos, pulsa uma nesga de sentimento trágico.

Os “carros de luxo” são o saldo mais vistoso das buscas policiais nos endereços dos acusados. Um ou outro valem milhões de reais e, somados, já batem os 34 milhões. Vê-los assim, rendidos, dá na gente um desânimo sem fim. Nas imagens da imprensa, os modelos reluzem como espelhos ondulados, em superfícies aerodinamicamente sinuosas.

Nas latarias que ondulam em planos ora côncavos, ora convexos, como na canção de Roberto Carlos, os contornos líquidos avançam em polimento impecável. Mas o fausto suntuoso sobre quatro rodas não encanta, só deprime: foi arrancado de idosos indefesos a golpes de velhacaria.

A descrição apressada no parágrafo anterior vale mais para alguns dos detidos – sim, detidos, pois a polícia os carrega para os pátios da lei. Não vale para todos eles. De fato, os exemplares da Porsche parecem gotas de viscosidade mutante, como bolas de árvore de Natal artificialmente esticadas. Também os contornos das Ferrari se liquefizeram, perdendo um pouco das quinas. Mas alguns dos carrões retidos não seguem o mesmo estilo.

As Lamborghini, por exemplo, guardam uma conformação díspar, com um jeitão de cunha afiada ceifando o ar em seus deslocamentos na Rodovia Ayrton Senna, ruma ao Vale do Paraíba. Bem sei que, ao que consta, nenhuma Lamborghini foi conduzida ao xilindró nas diligências da fraude do INSS, mas a marca italiana é assídua nessas ocorrências.

Faz uns três anos, uma dessas roubou a cena (e não vai aqui nenhuma ironia no verbo “roubar”): virou assunto porque acumulava uma dívida portentosa de IPVA e pertencia ao ex-presidente Fernando Collor de Mello, atualmente às voltas com uma tornozeleira. Há ainda as ocasiões em que os possantes importados atropelam gente inocente e depois se deixam fotografar com um arranhão no para-choques ou com um retrovisor a menos. Em formatos angulosos ou arredondados, o filme se repete sem descanso.

Voltando à frota dos ladrões do INSS, as estrelas velozes foram clicadas pelos fotojornalistas em humilhantes poses estacionárias. Não foram vistas em disparada. Quando muito, apenas se arrastaram em marcha lenta e fila comportada sob a escolta dos agentes de óculos escuros. Nessas cenas, as máquinas parecem ter passado por um tipo estranho de emasculação: não poderão mais rasgar a noite com seu zumbido inconveniente e estúpido.

2.

Pausa para a literatura. Num conto de Bernardo Ajzenberg, um ronco de escapamento entra no enredo infernizando a madrugada, para irritação do protagonista insone. “Veio de novo o estrondo do motor daquele carro tipo esportivo – Porsche, Ferrari, Lamborghini – cujo motorista conduz com espalhafato dia sim dia não nessa mesma hora pelas avenidas próximas.” O homem se corrói em paixões baixas. “Não é do carro que tem inveja, é do barulho que ele produz rasgando o silêncio da cidade”. O nome do conto diz tudo: “Inveja”.

Os ladrões do INSS não leem nada, não leem nem intimação judicial, mas também se moem de inveja – não dos carros, mas das celebridades que rimam convexo e sexo, como na canção de Robexo, digo, Roberto. Tomam dinheiro das velhinhas para depois gastá-lo em todos aqueles cavalos comprimidos sob o capô.

Corruptos são viciados nesse tipo de consumo. Nunca se ouviu dizer de um que investisse o butim para arrematar um livro raro ou para ouvir uma sinfonia em Viena. Bem se sabe que há fãs de música clássica que são mafiosos, mas não se conhece quem tungue aposentadorias para comprar ingressos do Musikverein. Isso, não. Bandidos compram lanchas, colares de brilhante, charutos, deputados, conhaque engarrafado em vasilhames de cristal, ilhas que ficam pra lá do Rio de Janeiro e, claro, Porsches. Na desolação de sua miséria d’alma, impera impiedoso o sol fake da mercadoria.

No mais, os criminosos custam a ser presos. Seus conversíveis vão antes. É como se, a cada nova bandalheira, o Capitão Renault do filme Casablanca ressuscitasse e, em vez de dizer “prendam os suspeitos de sempre”, dissesse “prendam os automóveis de sempre”.

Pepe Mujica, o ex-presidente do Uruguai que morreu anteontem, aos 89 anos, tinha um Fusca azul. Não cobiçava nada mais. Meu pai também foi dono de um Fusca azul. Foi feliz naquele volante. Hoje, na eternidade em que se encontra, é dono do mesmo Fusca Azul. Nenhum espertalhão poderá roubá-lo.

*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Incerteza, um ensaio: como pensamos a ideia que nos desorienta (e oriente o mundo digital) (Autêntica). [https://amzn.to/3SytDKl]

Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.


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