Drones militares

Imagem: Merlin Lightpainting
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Por MÁRCIO JOSÉ MENDONÇA*

A necropolítica e suas técnicas de matar no mundo contemporâneo baseadas em drones com métodos de biopolítica que operam por algoritmos de distinção racial

1.

Em vez de drones gigantes, que inicialmente funcionavam como bombardeiros avançados, há uma tendência de miniaturização desses equipamentos no campo de batalha. Observa-se que drones menores, especialmente os drones kamikazes descartáveis, embora pequenos e muito leves, podem transportar granadas antitanques, sendo capazes de nocautear blindados pesados de muitas toneladas. Estes, sim, estão fazendo a diferença e mudando a realidade do campo de batalha na Ucrânia nos últimos meses da guerra.

Há, todavia, algo que deve ser ressalvado: drones pequenos, praticamente invisíveis aos radares e até mesmo aos soldados no terreno, embora extremamente eficientes, ainda não são completamente automatizados, tampouco são controlados por sistemas de inteligência artificial; sua operação no campo de batalha é conduzida basicamente pela cooperação entre duas equipes.

Nessa função, um operador é responsável por observar o terreno e identificar potenciais alvos, usando para essa missão drones leves e discretos, muitos deles aparelhos comerciais empregados para a localização e marcação de alvos em mapas digitais. Essa equipe de observação é incumbida de transmitir para a equipe de ataque os dados necessários. E é com base nas informações recebidas que será definido o tipo de drone mais adequado para a missão.

Dessa forma, em uma situação de conflito real, conforme se desenvolve na Ucrânia, se a equipe de observação identificou um elevado número de veículos e blindados, a equipe de ataque, provavelmente, optará pelo uso de drones armados com explosivos com granadas RPG; se, porém, a equipe de observação marcou apenas a presença de soldados de infantaria ou depósito de munições no terreno, a equipe de ataque talvez prefira, nessa situação, empregar drones kamikazes, armados com pequenas granadas, ou então drones adaptados para o lançamento de múltiplas granadas antipessoais.

Todavia, para ataques em maior profundidade ou em áreas mais dinâmicas da linha de frente o convencional é utilizar drones repetidores de sinal e com autonomia de voo maior, responsáveis por repetir e reforçar o sinal de comunicação entre o operador e o drone de observação ou ataque. Drones com repetidores de sinal, pequenos drones domésticos, de uso comercial, podem ser operados a até 10 km de distância de sua base de operação. Quanto aos drones maiores e mais caros, seu alcance pode chegar a perto de 20 km de distância do ponto de lançamento e controle.

Percebe-se que, embora os drones sejam eficientes e muito ágeis, um fator a fazer a diferença na guerra, seu emprego no campo de batalha não é tão simples; seu uso demanda um efetivo significativo de soldados e operadores. Por isso, um dos principais desafios no momento no que tange ao desenvolvimento de missões com drones é automatizar ao máximo os procedimentos envolvidos na execução das operações.

Como vimos até aqui, o processo de emprego de drones pequenos e com pequena autonomia é todo manual; por isso, um elevado número de soldados é necessário para a execução das missões. Assim, para reduzir o contingente e tornar as missões mais eficientes, estão sendo estudadas formas de automatizar alguns de seus procedimentos, que incluem ataques contra alvos humanos.

2.

Atualmente qualquer celular é capaz de identificar o contorno de um ser humano e de mapear as feições do rosto de uma pessoa. Portanto, em teoria, essa tecnologia pode ser facilmente aplicada aos drones militares. Uma das ideias nesse campo é a marcação de alvos por um operador humano, que será responsável por identificar a figura humana como um alvo; a partir daí o drone de ataque ficará responsável pela execução da operação, agindo de forma autônoma na perseguição do alvo identificado até a conclusão da operação, com a eliminação do inimigo.

Com a implementação dessa tecnologia é possível reduzir significativamente o número de soldados empregados nas equipes de ataque, já que a maior parte do trabalho será realizada somente pela equipe de observação.

Outra técnica, ainda mais avançada e com potencial de ser implementada no futuro, consiste no lançamento de drones totalmente autônomos, capazes de identificar figuras humanas de forma independente e atacá-las assim que forem detectadas.

Nesse cenário, o procedimento ocorre sem intervenção humana direta, cabendo ao operador apenas marcar, em um mapa digital, uma área do campo de batalha onde estão localizados os inimigos, lançando em seguida os drones programados para identificá-los e abatê-los naquela região específica. Neste último caso, as equipes de ataque não estão incluídas, e as de observação são reduzidas ao mínimo do contingente. Além da redução de pessoal e economia de tempo, outra vantagem é que esses drones possivelmente não serão afetados pelas defesas eletrônicas, já que não haverá link de dados para controlá-los.

Como vimos, o uso de drones automatizados para fins militares já é uma realidade, e alguns drones domésticos já operam com essa tecnologia. No entanto, em vez de serem utilizados para finalidades civis e pacíficas, como fotografar casamentos, por exemplo, eles serão programados para identificar figuras humanas e perseguir seus alvos com o objetivo de eliminá-los. Para o seu azar, quando esses sistemas estiverem em uso, soldados em terreno ficarão ainda mais expostos.

Operando por algoritmos para identificar alvos potenciais, drones totalmente autônomos, ao serem introduzidos no campo de batalha, provavelmente irão reduzir algumas falhas operacionais em ataques contra alvos humanos, ao removerem as complicações emocionais do combate, a que soldados e operadores estão sujeitos.

Contudo, como argumenta Jamie Allinson (2015), o risco de ausência de responsabilidade humana por qualquer procedimento de algoritmo na condução de drones assassinos representa um perigo ainda maior. Inspirado no debate de Achille Mbembe (2018) sobre a necropolítica e suas técnicas de matar no mundo contemporâneo, Jamie Allinson destaca a criação da uma necropolítica dos drones, com o desenvolvimento de métodos de biopolítica que operam por algoritmos de distinção racial. Esses meios já estão sendo implantados e fazem parte de uma lógica mais ampla de racismo com uso de aparato tecnológico de distinção racial.

Jamie Allinson observa que todo um aparato tecnológico disponível com o objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e criar aquilo que Achille Mbembe chamou de necropoder, uma forma específica de terror, amparado em tecnologias e várias modalidades de armas de fogo, está sendo empregado a partir de variáveis de diferença racial, aplicadas agora aos drones e aos tipos de uso no campo de batalha.

Em certo sentido, a configuração de determinadas populações como elementos perigosos é acompanhada da implementação de meios de definir aqueles que serão eliminados ou descartados como parte do excedente populacional. Para o sistema capitalista, não caberia mais a lógica de vigiar e controlar como ação disciplinar. Neste ponto, Jamie Allinson está de acordo com Gregóire Chamayou (2015), quando ambos observam a transformação do inimigo em um objeto a ser destruído, em uma matriz abstrata cujo alvos são algoritmos de pessoas desumanizadas selecionadas para a morte.

Certamente não se trata de tornar os copos dóceis, como Michel Foucault (2013) verificou em sua instigante análise em termos econômicos e submissão de obediência política, mas sim de destruí-los, ou seja, eliminar elementos ou algumas frações do excedente populacional vistos como perigosos ou rebeldes. 

Assim, a questão da dronificação da guerra assume uma importante distinção, na medida em que, na perspectiva do Norte global, de países capitalistas hegemônicos como Estados Unidos, Reino Unido, França ou do peculiar caso de Israel, o problema fundamental consiste naquilo que o Estado e o capital privado protagonizam tendo como justificativa a chamada “Guerra ao Terror”.

3.

Outra é a realidade do Brasil e da América Latina, por exemplo, em que o combate se centra na criminalidade violenta ordinária. Dessa maneira, no primeiro caso, a expressão dimensiona fundamentalmente o contexto das fronteiras nacionais, combate a grupos terroristas e controle de minorias por motivos políticos, além de questões étnicas e xenófobas, enquanto no Sul global o alvo são as populações que vivem em territórios precários e espaços segregados, marcados e estigmatizados por profunda exclusão e insegurança social, vistos essencialmente como espaços caóticos e perigosos.

Por isso, a questão da dronificação da violência praticada pelo Estado nacional ou por grupos ilegais deve ser vista sob diferentes ângulos. No Brasil, por exemplo, a militarização da questão urbana[i] e agora a dronificação dos meios militares envolve sentimentos difusos e cada vez mais eivados de medo e insegurança, reverberados e retroalimentados pela mídia e pelo sistema político-eleitoral, cujo foco é a repressão interna contra o próprio povo, de fundo racista, em que heranças do período escravocrata são incorporadas ao contexto de exploração de classe e de racismo “hereditário”.

Assim, ao analisar o problema da dronificação violenta como uma tecnologia de distinção racial, com foco na política de “Guerras às Drogas”, como questão chave, deve-se considerar também a questão da violência racial contra grupos e espaços identificados como “caóticos” ou “perigosos”.

Nessa conversão de ambientes “caóticos” e “perigosos”, incluindo as pessoas que ali residem, em territórios inimigos, temos parte de uma narrativa que justifica intervenções violentas em favelas e bairros populares, onde reside a maior parte da população afrodescendente, que constitui as frações mais pobres da população brasileira. Por essa concepção, define-se, então, uma política de criminalização da pobreza e ação violenta contra o território das classes populares, do proletariado brasileiro, em outros termos.

Agora imagine a aplicação desse método em uma grande metrópole do Sul global, composta por bairros repletos de becos e vielas, onde drones caçam suspeitos de crimes pelas ruas e invadem casas de forma sorrateira para capturá-los, enquanto esquadrões de drones policiais, a partir do alto, monitoram as atividades da população excedente, descartada pelo sistema, em favelas e áreas segregadas.

Sem dúvida, trata-se de uma visão apocalíptica do avanço tecnológico capitalista, em que os drones se tornaram parte essencial da segurança nacional, conectando campos de batalha no exterior (antigas colônias) a zonas fronteiriças e espaços urbanos nas megacidades do Norte e do Sul global, onde, aparentemente, o proletariado não será poupado.

*Márcio José Mendonça é doutor em geografia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Autor, entre outros livros, de Guerra dos drones: análise e perspectiva do campo de batalha (Editora Dialética).

Referências

ALLINSON, Jamie. The necropolitics of drones. International Political Sociology, v. 9, p. 113-127, 2015.

CHAMAYOU, Grégoire. Teoria do drone. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2013.

MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: N-1 edições, 2018.

MENDONÇA, Márcio José. Espaço de batalha e urbicídio na cidade do Rio de Janeiro. São Paulo: Dialética, 2022.

SOUZA, Marcelo Lopes de. Fobópole: o medo generalizado e a militarização da questão urbana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.

Nota


[i] Sobre a militarização das cidades no Brasil a partir da disseminação de uma política que reforça o discurso do medo e se baseia em ações de intervenção violenta em favelas e espaços segregados, ver Souza (2008) e Mendonça (2022).

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