Minha análise com Freud

Susan Hiller, Museu Freud, 1991–6
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Por MARIAN ÁVILA DE LIMA DIAS*

Comentário sobre o livro de Abram Kardiner

1.

Quando nos propomos a rememorar o que foi dito e silenciado no processo psicanalítico de modo sistemático por meio da escrita abre-se uma renovada perspectiva pois os leitores também se sentem convidados a um exame de intimidades que podem sair do nível da particularidade em direção a uma compreensão compartilhada das vicissitudes humanas.

É o que realiza Abram Kardiner (1891-1981), médico formado pela Universidade de Cornell, nos Estados Unidos, e um dos fundadores do Instituto Psicanalítico de Nova York, que, já tendo publicado diversos livros – alguns deles traduzidos para o português como Eles estudaram o homem (1964) – traz a público as reminiscências da sua análise com Freud.

A despeito do voyeurismo envolvido no convite ao leitor a espiar o que se passou na intimidade das sessões com a figura central da psicanálise, o relato extrai diversas consequências da análise em diferentes camadas da vida do autor e, justamente por isso, nos convida a explorar nossa capacidade de elaboração ao perceber que, mesmo depois de decorridos tantos anos, novas formulações são possíveis.

Dividido em oito seções, o livro retorna uma e outra vez aos sonhos e às interpretações do outono de 1921. Minuciosamente descrito, o consagrado gabinete e a coleção de estatuetas são incorporados à arquitetura da casa, seus fluxos e ocupantes, o que aprofunda a compreensão de que estar em análise com Freud era também partilhar da intimidade e da arquitetura de seu lar.

A leitura traz também curiosidades como: honorários e horários; está tudo ali emoldurando o relato dos sonhos e das lembranças da infância de Abram Kardiner. A carta em que é aceito para análise nos permite constatar o domínio do inglês de Freud. Mesmo assim, entre objetivo e afetuoso, ele termina a mensagem informando que a compreensão da língua alemã será de grande ajuda “para nossa análise”. Vê-se aí que, ao menos da parte de Freud, o processo já estava em andamento.

A segunda parte, “Minha análise”, traz um paciente profundamente envolvido em extrair o máximo de suas impressões e lembranças de infância, buscando com diligência seguir à risca aquilo que dele se esperava. Medos, sintomas, sonhos, como um bom psicanalista em formação (ou filho obediente?), Abram Kardiner fez uma dupla oferta: não apenas Freud, mas agora também os leitores podem escavar suas intimidades.

2.

A terceira seção, “Freud como analista”, surpreende ao trazer o tema do fim da análise tendo como pano de fundo o grupo dos outros pacientes estrangeiros – também psicanalistas – com suas comparações e curiosidades a respeito da conduta de Freud nas consultas.

Essa parte dialoga mais diretamente com a sexta, “Minha análise revisitada em 1976”, na qual o autor reafirma sua admiração pelo trabalho analítico empreendido, com destaque para a perspicácia de Freud no manejo da interpretação dos sonhos. Entretanto, o tempo decorrido entre a experiência de análise e a escrita do livro também permitiu ao autor identificar alguns pontos cegos.

A figura central de Freud estava inescapavelmente presente no setting, o que deveria ser levado em conta na relação transferencial. A leitura da revisitada proposta nessa parte nos indica que a sua rememoração foi capaz de iluminar não apenas os avanços obtidos na sua compreensão sobre si e pelo alívio de certos sofrimentos, como também aquilo que à época já era evidente – a esmagadora presença de um analista emblemático – mas que permaneceu silenciado.

As seções “Freud e o movimento psicanalítico” e “Viena longe do divã” retratam aspectos da história da cidade, da relação desta com a psicanálise e com os pacientes estrangeiros atraídos por seu fundador, trazendo ao livro a riqueza de um olhar fresco e disponível do jovem Abram Kardiner. O livro se encerra com “Regresso a Nova York” e “Cinquenta e cinco anos com a psicanálise” nos quais ele revisita sua carreira. Ele se detém nas suas publicações culturalistas e expõe mais explicitamente algumas das suas posições em que manifesta uma compreensão funcionalista da clínica.

A partir da aproximação com uma certa antropologia expressa em sua obra The Psychological Frontiers of Society (1945), Abram Kardiner apresenta suas inovações na teoria psicanalítica decorrentes do questionamento da teoria da libido e da necessidade de estudos sobre diversos grupos culturais.

O empirismo do autor busca se justificar na necessidade de mais investigações etnográficas afirmando que assim seria possível “estabelecer uma base controlada para correlações e previsões”, bem como permitiria à psicanálise “dar ao público diretivas confiáveis sobre como educar as crianças” (p. 108).

Isto denota não apenas uma postura reducionista acerca do papel da teoria psicanalítica, em uma compreensão equivocada de que sua finalidade deveria ser a de uma psicologia aplicada às demandas da sociedade, mas também revela uma concepção de que os parâmetros para o contato com grupos culturais distintos estão dados a partir de categorias preestabelecidas.

Por exemplo, o autor considera que as crianças do grupo étnico Alor[i] são negligenciadas explicando que isso ocorre porque as mulheres ficam o dia todo trabalhando distantes de seus filhos, o que acarretaria uma apatia emocional das crianças e que permaneceria como um traço de personalidade nos membros daquele grupo. Ora, tal conclusão negligencia o estado do capitalismo tardio, que leva homens e mulheres a trabalharem o dia todo, ficando igualmente distantes de suas crianças ao redor do mundo, tal como as da cultura alorense.

Ele pressupõe que o cuidado das crianças deve ser das mães e daí extrai que o modo de subjetivação de um grupo étnico minoritário é “apático”, usando uma categoria psicológica ocidental.

3.

A psicanálise experimentada por Abram Kardiner como paciente de Freud distancia-se daquela que ele passa a propor ao consolidar-se como psicanalista. Obviamente o processo analítico empreendido por Freud no caso do jovem Abram Kardiner não seria capaz de fornecer a formação necessária para que ele pudesse enfrentar os horrores do século XX, de modo a conseguir viver na e com a angústia.

Mas as transformações pelas quais ele modifica a teoria, abandonando a teoria da libido, assim como a compreensão da clínica como uma prática instrumentalizada capaz de fornecer “respostas confiáveis sobre a profilaxia” (p. 108), dão uma mostra das facetas opostas que a psicanálise vem assumindo ao longo de sua história.

Ela tem se tornado tanto geradora de uma tensão criativa refletindo sobre as produções da cultura, desvendando a economia libidinal existente nos vínculos e rupturas pelos quais a sociedade se constitui, quanto em momentos não tão fecundos, pode desembocar numa psicanálise adaptativa, voltada a uma psicologia aplicada, como a que o autor expõe.

Em suma, Minha análise com Freud oferece não apenas uma janela para observarmos mais de perto a experiência psicanalítica de Abram Kardiner, mas também um rico terreno para reflexões sobre o papel da psicanálise e as armadilhas de uma abordagem utilitarista. Coexistem em seu campo tanto as adaptações teóricas reducionistas que parecem colocá-la mais em sintonia com as demandas do mundo administrado, como a fonte para uma reflexão criativa, crítica sobre a incompletude humana.[ii]

*Marian Ávila de Lima Dias é professora do Departamento de Educação na Universidade Federal de São Paulo.

Referência


Abram Kardiner. Minha análise com Freud: Reminiscências. Tradução: Nina Schipper. São Paulo, Quina Editora, 2024, 126 págs. [https://amzn.to/40WMFxZ]

Notas


[i] Trata-se dos habitantes da pequena Ilha de Alor, localizada na Indonésia.

[ii] Texto originalmente publicado na Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 2024, volume 27, e24005r.


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