Celso de Mello, o decano

Imagem_Oto Vale
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MARJORIE C. MARONA*

Celso de Mello é este decano: o de um Supremo que se arriscou em um protagonismo exercido, muitas vezes, à custa da legitimidade do sistema político, e que agora se soma à coalizão de resistência democrática em face de um governo que foi gestado pela crise política que ajudou a construir

Celso de Mello se aposenta em novembro próximo depois de mais 30 anos atuando como ministro do Supremo Tribunal Federal. A história do ministro Celso de Mello no STF caminha junto com a da Constituição de 1988, não apenas pela quase coincidência de datas entre sua nomeação e a promulgação da carta que inaugurou o mais recente período democrático no Brasil, mas também por uma atuação marcada pela defesa – qualificada de intransigente, por alguns – das liberdades individuais.

O seu decanato, contudo, transcorreu nos anos em que nem tanto o exercício da jurisdição constitucional, mas, sobretudo, o da competência penal do STF caracterizou o protagonismo do tribunal. Celso de Mello tornou-se decano do STF em 2007; o membro mais antigo da Corte, no ano em que se iniciava o julgamento da Ação Penal 470 – o mensalão. A compreensão da atuação de um ministro para além de suas decisões e votos, particularmente a atuação institucional de Celso de Mello, enquanto decano do STF, não é tarefa simples. Em primeiro lugar porque uma análise deste cariz não se deixa facilmente capturar pelos modelos explicativos disponíveis, fundados em certas premissas sobre a motivação dos ministros e sobre as restrições aos seus comportamentos, que não são necessariamente verificáveis para o contexto brasileiro porque foram forjados em outro – o estadunidense.

Ademais, a motivação dos ministros é concebida em termos de preferências políticas – observáveis fundamentalmente em seus votos; e as restrições a seus comportamentos são mais bem percebidas em termos de regras do jogo (no campo da institucionalidade formal). Como resultado, os estudos sobre comportamento judicial privilegiam a compreensão da atuação dos ministros nos autos e jogam luz sobre mecanismos institucionais formais que constrangem/oportunizam sua atuação.

São conhecidos os valiosos trabalhos que atentam para os poderes individuais dos ministros do STF, concentrados na definição da agenda, na sinalização de preferências e, especialmente, na tomada de decisões. Mas eles pouco ou nada nos dizem acerca da atuação institucional do decano do Supremo. Isso porque a posição institucional expressa pelo decanato agrega poucas prerrogativas – diferentemente do que acontece com o presidente da Corte ou das turmas, por exemplo – de modo que a compreensão da atuação institucional do decano do STF demanda uma abordagem relacional, que incorpore a dimensão informal das negociações, das relações interpessoais e políticas, pressupondo o reconhecimento de uma espécie de autoridade arendtiana – o reconhecimento recíproco de sua legitimidade.

Celso de Mello é reconhecido por seus pares como uma liderança, o que não é tarefa comezinha em um tribunal no qual cada ministro tem poderes excepcionais, que podem ser exercidos sem muito controle mútuo ou externo. Inúmeras são as manifestações dos colegas a reconhecê-lo como uma espécie de “reserva moral” do STF – a referência em momentos difíceis, fonte de aconselhamentos. O decano, portanto, não apenas encabeça a fila dos ministros no momento em que entram no Plenário – uma das prerrogativas ditadas pela antiguidade -, ou desfruta do conforto de ouvir os argumentos dos colegas antes de proferir seu voto. Celso de Mello tem sido ativo na condução do STF à condição de ator político fundamental na história recente do país.

E esta história que não pode ser contada sem consideração ao exercício da competência penal do Supremo como elemento constitutivo de uma específica estratégia de combate à corrupção que teve seu ponto alto de institucionalização com a Lava Jato. Pois bem, o decanato chegou para Celso de Mello quando estava em curso o “big bang” do Supremo Tribunal Federal: o julgamento do mensalão, quando o tribunal enquadrou, de forma inédita, grupos e atores políticos, afastando-os das ações de varejo que caracterizavam a dinâmica institucional de combate à corrupção até o início dos governos do Partido dos Trabalhadores, em 2003.

O mensalão inseriu o tribunal no centro do debate público. A partir do mensalão o STF se consolidou como “um vórtice em torno do qual giravam os conflitos da vida institucional do país”, (Recondo, Weber, 2019). E mais, o julgamento da Ação Penal 470 é um evento fundamental para a compreensão dos processos de mudança institucional pelos quais o STF passou para tornar-se o tribunal que é hoje. Neste sentido, a Lava Jato pode ser considerada, na trajetória da Corte, em linha de continuidade com o julgamento do mensalão. E Celso de Mello, como decano, somou esforços, particularmente com os presidentes e relatores que se sucederam nos julgamentos criminais por corrupção que o STF passou a acolher, para pavimentar o caminho do Supremo na afirmação de sua competência criminal.

Como decano, teve atuação fundamental em momentos de profunda crise interna pelas quais o STF passou, particularmente como pacificador dos conflitos entre o relator e o revisor da Ação Penal 470 – os ministros Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski. Na Lava Jato, atuou afinado com o primeiro relator, ministro Teori Zawaski, com quem mantinha reuniões reservadas sobre o caso; oferecendo, por mais de uma vez, sua chancela para decisões-chave. Em público, manifestou-se enfaticamente a favor da operação. Esteve diretamente envolvido nas negociações internas ao STF – e da Corte com a PGR – que resultaram na ampliação do perímetro de ação da maior manobra de combate à corrupção do país, inaugurando um novo momento na correlação de forças em Brasília.

Em novembro de 2015, Zavascki determinou a prisão cautelar do então senador Delcídio do Amaral, líder do governo Dilma, mas não sem antes negociar o apoio dos colegas, para que a intermediação do decano foi fundamental. A prisão de um parlamentar naquelas circunstâncias impunha uma operação de criativa hermenêutica constitucional que se justificava pela suposta necessidade de uma viragem na ordem institucional do país. Celso de Mello não ignorava as controvérsias envolvidas. Na sessão de julgamento em que se referendou a decisão, lançou mão de sua posição institucional para acomodar os pontos de vista dos demais ministros e tornar a decisão inteligível ao público – com recurso a frases de efeito e a uma linguagem de compreensão mais imediata.

Celso de Mello foi procurado novamente por Zavascki, em busca do apoio necessário para conduzir o afastamento de Eduardo Cunha do mandato e da presidência da Câmara, o que se apresentava como uma oportunidade de replicar, em maior escala, a solução Delcídio do Amaral. Não desapontou. A posição de decano também o ajudaria na construção de soluções diante dos momentos de crise que a morte de Zavascki inaugurou no STF da Lava Jato: Celso de Mello se faz uma voz de autoridade diante das teorias, manobras e leituras enviesadas do regimento a fim de encontrar a melhor saída para a substituição da relatoria.

Àquela altura a pauta criminal já havia se tornado uma enorme fonte de desgaste entre o Supremo e o mundo político e pode-se dizer que o decano foi ativo ao longo do processo, embora nem sempre tenha tido êxito. Talvez o caso mais expressivo seja aquele que envolve a execução de pena antes do trânsito em julgado, politizado em razão da situação do ex-presidente Lula. Celso de Mello fez uma intervenção importante visando a evitar o desgaste que o iminente embate entre o ministro Marco Aurélio Mello e a então presidente Carmem Lúcia em torno da pauta de julgamento imporia à imagem pública do STF.

O decano sugeriu uma reunião informal para a negociação doméstica de uma solução em face da negativa da presidente de pautar duas Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) que recolocavam a questão sobre a constitucionalidade da prisão em segunda instância, provavelmente alterando o entendimento recente da Corte. A rebeldia de Carmen Lúcia resultou, alternativamente, no julgamento de um habeas corpus interposto pela defesa de Lula. O julgamento do caso concreto, considerando o peso político de Lula, pressionou a Corte a manter sua recente posição pela constitucionalidade da prisão antes do trânsito em julgado da decisão condenatória. Lula seguiu preso e o episódio, de fato, desgastou a imagem pública do tribunal.

Celso de Mello lamentou o que qualificou como politização da agenda da Corte e reagiu às informações repercutidas na imprensa, de que haveria pressionado a então presidente Carmen Lúcia a pôr em pauta o assunto da prisão dos condenados em segunda instância, supostamente para favorecer Lula. De fato, ainda que o julgamento em tese (ADCs) pudesse beneficiar o ex-presidente, por descolar os debates de sua situação particular, a trajetória de Celso de Mello definitivamente não autorizava a crítica de parcialidade em favor de Lula. Descartadas as conjecturas acerca das suas preferências políticas a atuação do decano parece indicar, na verdade, esforços persistentes de ampliação do papel institucional da Corte (quando o contexto assim permitiu) e de defesa de seu lugar institucional (quando a conjuntura passou a exigir).

Atualmente, quando já se poderia esperar que preparasse seus últimos atos diante da iminência de sua aposentadoria, Celso de Mello vem reafirmando sua condição institucional de decano, particularmente na defesa do STF em face dos sucessivos ataques externos à instituição e seus ministros. Diante da inércia de Dias Toffoli, presidente da Corte, foi dele a iniciativa de reagir à manifestação pública de intimidação do general Villas Bôas, ainda em 2018. Em sessão plenária, classificou o pronunciamento de inadmissível, estranho e lesivo à ortodoxia constitucional; uma prática típica de um “pretorianismo que cumpre repelir”. Noutro episódio, quando um militar da reserva ofendeu nas redes sociais a ministra Rosa Weber, então-presidente do TSE, Celso de Mello novamente foi a público, repelindo os ataques, que classificou de imundos, sórdidos e repugnantes. Induziu, com isso, uma rede de solidariedade entre os colegas, que decidiram remeter o caso à Procuradoria-Geral da República.

Em face dos ataques virulentos que se acumularam ao longo da campanha de Jair Bolsonaro à presidência da República – e, mais uma vez, desafiado pelo silêncio da presidência da Corte – Celso de Mello novamente reagiu. Desta vez recorreu à imprensa – o que não é de seu feitio – para classificar a declaração de Eduardo Bolsonaro sobre as possibilidades de fechamento do Supremo, “de inconsequente e golpista”. Diante da nomeação do general Fernando Azevedo para a assessoria do gabinete do presidente da Corte, Dias Toffoli, o decano se mostrou crítico, embora a maioria dos ministros não tenha visto nenhum problema na novidade — um militar dentro do STF.

Dias Toffoli antecipava a vitória de Bolsonaro e dava indicações de uma dinâmica conciliatória, de diálogo, entre a Corte e o Palácio do Planalto, mas o decano, opondo-se, passou a afirmar a sua liderança interna contra possíveis retrocessos. O fez somando à autoridade de decano as prerrogativas de relator no caso que envolvia a criminalização da homofobia. Pautar esse processo ia contra os planos de paz política recém anunciados por Toffoli, mas, como dizem alguns ministros do tribunal, não se recusa um pedido de Celso de Mello – e o decano o fez formalmente. Celso de Mello então liderou o STF na garantia de apoio à criminalização, por via judicial, da homofobia, marcando posição em face de um novo Congresso, mais conservador, mas, sobretudo, da agenda de costumes extremamente conservadora, do governo Bolsonaro.

À frente de processos que tramitam no STF e colocam o governo Bolsonaro sob suspeição, Celso de Mello vem ampliando uma frente de resistência aos desmandos do Palácio do Planalto. Fato curioso é que um destes processos – precisamente aquele que opõe Sérgio Moro a Jair Bolsonaro, tem sido apontado por especialistas com uma “armadilha” para o Supremo Tribunal Federal, na medida em que reverbera o javalatismo que capturou a agenda de moralização da política no Brasil; que, na jurisprudência da Corte, se fez criminalização da política; e que esteve na base de apoio do próprio governo Bolsonaro.

Celso de Mello é este decano: o de um Supremo que se arriscou em um protagonismo exercido, muitas vezes, à custa da legitimidade do sistema político, e que agora se soma à coalizão de resistência democrática em face de um governo que foi gestado pela crise política que ajudou a construir.

* Marjorie C. Marona é professora do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFMG. Pesquisadora do Instituto da Democracia e Democratização da Comunicação (INCT/IDDC)

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
João Paulo Ayub Fonseca Armando Boito Plínio de Arruda Sampaio Jr. José Raimundo Trindade Henry Burnett Rodrigo de Faria Mariarosaria Fabris Liszt Vieira Marjorie C. Marona Flávio Aguiar Salem Nasser José Geraldo Couto Slavoj Žižek Fernando Nogueira da Costa Antonino Infranca Eugênio Bucci Gilberto Lopes Ronaldo Tadeu de Souza Chico Whitaker Remy José Fontana Leonardo Sacramento Luiz Renato Martins Antônio Sales Rios Neto Alexandre de Freitas Barbosa Carla Teixeira André Márcio Neves Soares Francisco Fernandes Ladeira Ladislau Dowbor Vanderlei Tenório Matheus Silveira de Souza Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Paulo Capel Narvai Eleonora Albano Rafael R. Ioris Alexandre Aragão de Albuquerque Daniel Afonso da Silva Luiz Roberto Alves Eduardo Borges Fábio Konder Comparato José Micaelson Lacerda Morais Jean Pierre Chauvin Bruno Machado Otaviano Helene Gilberto Maringoni Jean Marc Von Der Weid Berenice Bento Claudio Katz Bernardo Ricupero Maria Rita Kehl Marilena Chauí Alysson Leandro Mascaro Boaventura de Sousa Santos Osvaldo Coggiola Valerio Arcary Luis Felipe Miguel Paulo Martins Eugênio Trivinho Rubens Pinto Lyra Valerio Arcary Antonio Martins Ronald León Núñez Ricardo Abramovay Luiz Eduardo Soares Francisco Pereira de Farias Leonardo Boff Luiz Marques Luiz Carlos Bresser-Pereira Ricardo Antunes Tales Ab'Sáber Dênis de Moraes Vladimir Safatle Ricardo Musse Chico Alencar Michael Löwy Renato Dagnino Milton Pinheiro Mário Maestri Samuel Kilsztajn José Costa Júnior Jorge Branco Manchetômetro João Sette Whitaker Ferreira Daniel Brazil Luciano Nascimento José Machado Moita Neto Lorenzo Vitral Annateresa Fabris João Adolfo Hansen Kátia Gerab Baggio Michael Roberts Ari Marcelo Solon Denilson Cordeiro Everaldo de Oliveira Andrade Luís Fernando Vitagliano Celso Frederico Marcelo Módolo Andrew Korybko Paulo Sérgio Pinheiro Vinício Carrilho Martinez Airton Paschoa Paulo Fernandes Silveira Gabriel Cohn Bento Prado Jr. Leda Maria Paulani João Carlos Loebens Marcos Silva Marcelo Guimarães Lima Luiz Werneck Vianna Afrânio Catani Daniel Costa Benicio Viero Schmidt Manuel Domingos Neto José Luís Fiori Dennis Oliveira Yuri Martins-Fontes Gerson Almeida Celso Favaretto Ricardo Fabbrini Lincoln Secco Marcus Ianoni Marcos Aurélio da Silva Tadeu Valadares Leonardo Avritzer Thomas Piketty Sandra Bitencourt Juarez Guimarães Luiz Bernardo Pericás João Carlos Salles Michel Goulart da Silva Julian Rodrigues Fernão Pessoa Ramos Francisco de Oliveira Barros Júnior Tarso Genro André Singer Igor Felippe Santos Carlos Tautz Atilio A. Boron Priscila Figueiredo Walnice Nogueira Galvão Paulo Nogueira Batista Jr Sergio Amadeu da Silveira Ronald Rocha João Lanari Bo Bruno Fabricio Alcebino da Silva Henri Acselrad João Feres Júnior Elias Jabbour Alexandre de Lima Castro Tranjan Jorge Luiz Souto Maior Caio Bugiato Lucas Fiaschetti Estevez Eleutério F. S. Prado Heraldo Campos Flávio R. Kothe Andrés del Río Érico Andrade José Dirceu Eliziário Andrade Marilia Pacheco Fiorillo Anselm Jappe

NOVAS PUBLICAÇÕES