Por RONALD ROCHA*
O centro tático da resistência oposicionista se condensa na linha de fortalecer a frente ampla democrática e mobilizar grandes massas populares, para barrar o processo de autogolpe
O Brasil – a passos largos – se aproxima das eleições municipais que ocorrerão em menos de quatro meses e cujas campanhas já começaram na prática. Dispensável gastar muitos caracteres para demonstrar o quão importante serão. Em vez de fatos pontuais e dispersos em cada paróquia, como sugerem a impressão do senso comum e a letra fria das leis, os pleitos consubstanciam um processo político abrangente, que vai da recomposição nos parlamentos e governos dos entes municipais, típicos da forma estatal federativa brasileira, passando pela sua existência e repercussão no território nacional todo, até a sua interferência na correlação de forças entre os vários sujeitos em disputa.
Outrossim, abrem a chance de que o protofascismo se afirme nas sociedades políticas locais, cujo establishment ainda lhe parece tão indispensável quanto indigno de confiança. Por fim, dar-se-ão na conjuntura em que o plano autogolpista persiste, mas sem conseguir, até agora, uma força bruta suficiente. O regime democrático sobrevive pela soma da opinião pública e da militância oposicionista com a resistência em setores da sociedade política e de órgãos estatais, inclusive do Congresso e o STF, além de certa inapetência de frações monopolista-financeiras e das Forças Armadas em assumirem o putsch para restaurar um regime similar ao de 1964, mas personificado no chefete miliciano.
Nesse quadro complicado e pleno de contradições ainda irresolutas, que apresenta vários cenários possíveis e de alta instabilidade, ao ponto de ninguém, a não ser por charlatanismo, poder adivinhar o que acontecerá nos próximos dois anos e muito menos em que momento, as urnas de novembro representam um termômetro e um movimento no tabuleiro do xadrez político, que devem ser levados muito a sério como importantes oportunidades para o combate à extrema-direita e a ocupação de posições institucionais. Alheios às chances que se descortinam e aos perigos que a todos vêm ameaçando, mantêm-se dois procedimentos prejudiciais à resistência democrática, nacional e progressista.
Um é o abstencionismo que, na sua variante aberta, pública e confessa, torna qualquer descrição caracterizante um truísmo. Todavia, figura também como desdém perante os embates por cima, caso em que assume uma estampa vestalina em face de ações compreendidas como intrinsecamente “sujas”: entendimentos, compromissos, acordos, alianças, consensos e concessões, jamais! Não importariam condições concretas, responsabilidades ou finalidades. São discursos nem sempre apensos à teoria revolucionárias, mas geradores de asfixia e passividade no ambiente sem oxigênio dos guetos anarquistas ou “esquerdistas”, conforme o diagnóstico de Lênin sobre a “doença infantil”.
Outro é o “semiabstencionismo” nomeado por Gramsci – cf. Cadernos do Cárcere, vol. 3 –, que vem aprisionando certas correntes à esquerda. Frequentemente, o viés aparece como intenção de usar os processos eleitorais para meras demarcações agitativas ou propagandísticas, em pueril reducionismo político. Entretanto, manifesta-se também, seja como tentativas circulares de manter ou aumentar, solitariamente, os sufrágios antes amealhados pelas siglas, seja pela cedência em agregar um pouco mais na molecular e tacanha coligação dos mesmos, limitando a frente às legendas com identidade “ideológica” de um socialismo autoproclamado, que não raro cisca em torno do social-liberalismo.
Os clássicos e o sufrágio
Em face do protofascismo acampado no Governo Central e cercanias – cujos adeptos locais já operam e se apresentam como alternativas eleitorais que não podem ser ignoradas nem subestimadas –, semelhantes abordagens, além de inapropriadas na conjuntura, revelam-se incompatíveis com as experiências históricas do movimento e da luta operária. Eis porque o presente artigo se inicia com a providência de reconstituir as referencias e as elaborações marxistas que as registraram por escrito em vários períodos, ao longo dos séculos XIX e XX, assim como alcançaram excelência em matéria de acuidade metodológica, concretude analítica, comprometimento ideológico e vinculação prática.
Em 1848, o Manifesto do Partido Comunista, redigido por Marx e Engels, frisou que “para elevar os proletários à condição de classe dominante” se faz necessário “ganhar a batalha da democracia”. Referia-se à luta interior ao “regime representativo”, constituído no “moderno Poder do Estado” – P. I, § 12. Após a onda revolucionária que varreu a Europa nos anos seguintes, o Comitê Central da Liga dos Comunistas, em sua célebre Mensagem de 1850, lavrada pelos mesmos autores, insistiu em que “a nenhuma parcela operária seja sonegado o direito ao voto” para o legislativo nacional, “sob qualquer pretexto, nem mesmo por algum artifício de autoridades locais ou comissários governamentais”.
Em janeiro do ano anterior, quando as candidaturas proletárias haviam sido proibidas pela contrarrevolução, Marx insistira em participar das eleições, apoiando aliados. Perante a incompreensão de setores ligados à firme Associação Operária de Colônia, respondeu-lhes que se tratava não de proclamar princípios, mas sim de fortalecer a oposição ao governo prussiano, títere do então regime absolutista. Disse, ademais, que tal política pode ser aplicada pelos democratas e liberais, para concluir, conforme narra Claudin em seu Marx e a Revolução de 1848: “é necessário considerar os fatos como são” e se unir “aos demais partidos, igualmente de oposição, para impedir a vitória do inimigo comum”.
Engels insistiu no mesmo assunto, incansavelmente. Em 1894, escrevendo a Turati sobre a situação da Itália, nomeou a sua esperança de que a luta de classes, mesmo sem o protagonismo e a direção do proletariado, então numericamente ainda reduzido, pudesse resultar em um “ministério de republicanos ‘convertidos’ ”, o que “nos daria o sufrágio universal e maior liberdade de movimento […], novas armas que não devem ser desprezadas”. Por fim, asseverou: a “república burguesa […] ampliaria ainda mais a liberdade e o nosso campo de ação, pelo menos neste momento. Marx disse que a república burguesa é a única forma política em que pode resolver-se a luta entre proletariado e burguesia”.
Um ano após, Engels – Introdução a Lutas de Classes na França de 1848 a 1850 – frisou a lição dos operários alemães aos trabalhadores do mundo inteiro, “mostrando-lhes como se utiliza o sufrágio universal”. Lembrou que “o Manifesto Comunista proclamara o combate pelo direito de voto, […] uma das primeiras e mais importantes tarefas do proletariado militante”, que lhe fornece “um instrumento ímpar para entrar em contato com as massas populares”, além “de obrigar os partidos adversários” a exporem as “suas concepções e ações”. Por fim, citou “as palavras do programa marxista francês”: transformar o direito ao sufrágio, “de meio fraudulento, como foi até agora, em meio de emancipação”.
Assim, continua, abriu-se aos representantes socialistas “uma tribuna no Reichstag” – Congresso alemão –, “de onde podiam dirigir-se aos adversários no parlamento e às massas externas, com uma autoridade e uma liberdade completamente diversa das que se tem na imprensa e nos comícios”. Prossegue: “com a utilização vitoriosa do sufrágio universal, entra em ação para o proletariado um modo de pugnar totalmente novo”; as “instituições estatais […] oferecem mais possibilidades para que a classe operária possa combatê-las”. Justifica-se a verve de sua menção aos “partidos da ordem” que, desesperados, repetem “as palavras de Odilon Barrot: la légalité nous tue, a legalidade nos mata”.
Sabe-se que a II Internacional, cujas principais figuras deturparam os trechos acima citados para convertê-los em inocente profissão de fé possibilista e adaptacionista, por fim desaguou no ministerialismo e no cretinismo parlamentar. Nem de longe, porém, a capitulação foi um pretexto para que os revolucionários caíssem no autoisolamento. A experiência russa o comprova: em 1909, mesmo durante a reação stolypiniana, o periódico bolchevique Proletari afastou a fração otsovista – “retiradista” –, que sob a fraseologia pseudo-revolucionária defendia o abstencionismo. Seus membros queriam sair do foro legislativo – no caso, a III Duma Estatal – e rejeitavam quaisquer formas legais de atuação.
Em abril-maio de 1920, aproximando-se o II Congresso da Internacional Comunista (IC), Lênin sustentou – Esquerdismo, doença infantil do comunismo – a conduta clássica: “Os comunistas ‘de esquerda’, alemães”, falam, “com o maior desdém e a maior leviandade”, em “rejeitar do modo mais categórico todo retorno aos métodos parlamentares de luta, que já teriam caducado histórica e politicamente”. A inculpação de “‘Retorno’ ao parlamentarismo!”, além de criticada pelo “tom ridiculamente presunçoso” e por sua “evidente falsidade”, acaba sendo refutada em três perguntas: “Já existe, por acaso, uma república soviética na Alemanha? Então, como se pode falar em ‘retorno’? Não é uma frase vazia?”
Continua: “O parlamentarismo ‘caducou historicamente’. Isso está certo como propaganda. Mas ninguém ignora que daí a superá-lo na prática existe uma enorme distância. Há muitas décadas já se podia dizer, com toda razão, que o capitalismo havia ‘caducado historicamente’; mas isso nem mesmo impede que sejamos obrigados a sustentar uma luta extremamente prolongada e tenaz no terreno do capitalismo. […]. Na história universal, porém, o tempo é contado por décadas […], dez ou vinte anos a mais ou a menos não têm importância; […] é impossível aquilatar seu valor. Assim, utilizar o critério da história universal para uma questão político-prática constitui o mais gritante erro teórico”.
Nos congressos da Terceira Internacional
Gramsci, em Cadernos do Cárcere, ao refletir sobre a passagem da “guerra de posição” à “guerra de movimento”, refere-se às observações de Lênin para explanar sobre uma transformação fundamental com enorme incidência tática. Escreve também com base em dois anos de observação direta como deputado pelo Vêneto, uma região do nordeste italiano, vez que seu mandato fora interrompido pela prisão em 1926. Notou então que, de modo mais pronunciado na sociedade hodierna, o Estado, além de aparelho material, encontra-se amparado em cadeia por inúmeras trincheiras na sociedade civil e na sociedade política, fincadas nas condições nacionais em que transcorre a luta de classes.
Assim, a revolução socialista é algo muito mais complexo do que atos politicistas ou transbordamentos espontâneos da economia, pois exige a objetividade, a estratégia, o sujeito e as táticas pertinentes. A propósito, conforme o filósofo, jornalista e político sardo – Cadernos do Cárcere, vol. 3 –, nas eleições também “as ideias e opiniões” jamais “nascem” naturalmente “no cérebro de cada indivíduo”, pois “tiveram um centro de formação, de irradiação, de difusão, de persuasão”, que “as elaborou e apresentou na forma política”. O voto é, pois, “a manifestação terminal de um longo processo” que forma consensos e dissensos, interferindo na “vontade nacional” por meio do embate contra-hegemônico.
Não é por acaso que os sete conclaves realizados pela IC, nos seus 24 anos de vida, pautaram e discutiram várias vezes, com acesos debates, a linha que deveria ser aplicada pelos partidos-membros em face da questão eleitoral-parlamentar. Em 1920, o II Congresso refutou severamente “o ‘antiparlamentarismo’ de principio, concebido como rechaço absoluto e categórico à participação nas eleições e na ação parlamentar revolucionaria”. Na sequência, reverberando a posição da bancada soviética, o qualificou duramente como “doutrina infantil e ingênua, que não resiste à crítica”. O documento final é firmado pelos membros das representações nacionais presentes – Lênin entre os delegados.
Continua: “Reconhecendo […], em regra geral, a necessidade de participar nas eleições parlamentares e municipais, e de trabalhar nos parlamentos e nas municipalidades, o Partido Comunista deve resolver o problema conforme o caso concreto, inspirando-se nas particularidades específicas da situação”. Para concluir: “os boicotes às eleições ou ao parlamento […] são, mormente, admissíveis na presença de condições que permitam a transição imediata à luta armada pela conquista do poder”, ou seja, quando se configuram uma situação revolucionária e também os elementos subjetivos indispensáveis à passagem, como Lênin estudou cuidadosamente no ensaio A falência da II Internacional.
O IV Congresso, realizado em 1922, apenas um mês após a Marcha sobre Roma e a nomeação de Mussolini como chefe do Governo Italiano pelo encurralado rei Vitor Emanuel III, portanto, já se deparando com a tarefa de “organizar a resistência” urgente à extrema-direita em ascensão e promover a “tática da frente única”, lembrou que “o delírio fascista”, denominado metaforicamente como “a dominação aberta dos guardas brancos”, se dirige “de maneira geral contra as bases mesmas da democracia burguesa”. Em outra passagem, valoriza, “na Suécia, o resultado das últimas eleições parlamentares”, permitindo que “um partido comunista numericamente débil desempenhe um papel importante”.
Em 1928, a IC, mesmo reconhecendo a presença do perigo fascista e mantendo a política de frente, recomendou acordos exclusivos por baixo, retribuindo com moeda parecida o antissovietismo da socialdemocracia. Mas o Relatório Dimitrov ao VII Congresso, de 1935, recompôs o eixo tático: “hoje, os milhões de trabalhadores que vivem sob o capitalismo são compelidos a decidir sua atitude sobre as formas que vestem o domínio burguês. Não somos anarquistas e indiferentes ao tipo de regime político existente: uma ditadura burguesa na forma de uma democracia burguesa, mesmo com direitos e liberdades democráticos muito limitados, ou uma ditadura burguesa em forma aberta e fascista”.
Para repetir, com agudo senso de urgência em face da reação em marcha veloz: “Agora a contrarrevolução fascista ataca a democracia burguesa em um esforço para estabelecer o regime mais bárbaro de exploração e supressão das massas laboriosas. Agora as massas trabalhadoras em muitos países capitalistas se veem na obrigação de fazer uma escolha definitiva, e fazê-la hoje, não entre a ditadura do proletariado e a democracia burguesa, mas entre a democracia burguesa e o fascismo.” Eis o que, na sociedade capitalista, impele os trabalhadores a defenderem o regime democrático, quando a fração mais reacionária da burguesia o ataca em um período ferozmente contrarrevolucionário.
Mais claro não poderia ser. A prática dos comunistas foi coerente por completo e de modo radical, nas vésperas e logo após a II Guerra Mundial. Sobre a Guerra Civil espanhola – desfechada pelo golpe de Franco, apoiado maciçamente pelas Forças Armadas nazifascistas enviadas por Hitler, Mussolini e Salazar –, Dimitrov comentou no texto A Frente Popular, 1936: “os combatentes do exército republicano, que lutam nas muralhas de Madri, na Catalunha, nas montanhas das Astúrias, em toda a Península, estão dando suas vidas para defender não apenas a liberdade e a independência da Espanha republicana, mas também as conquistas democráticas de todas as nações e a causa da paz”.
Retornando à Bulgária, em 1946, o dirigente que venceu as masmorras e os tribunais nazistas, bem como exerceu a função de secretário-geral da Comissão Executiva da IC durante um dos períodos mais duros de sua história foi eleito parlamentar e ocupou a função de Primeiro-Ministro. Mesmo após a vitória sobre as tropas nazistas e com a presença das forças militares soviéticas desde 1944, o Partido Comunista Búlgaro continuou executando a política de alianças traçada em 1935 e prevalecente no curso da II Guerra Mundial. Conseguiu, assim, manter a mesma composição firmada na época da resistência, pois era necessária para derrotar os colaboracionistas e criar uma nova hegemonia.
As eleições brasileiras nos primeiros 50 anos
A II Guerra Mundial termina com a recomposição geopolítica mundial e o ingresso do capitalismo – como imperialismo amadurecido – na Fase A da IV Onda Longa, conforme a periodização de Kontradieff. O campo socialista e a Golden Age ambientavam o sufrágio em que os marxistas entravam com experiência considerável. No Brasil posterior ao Estado Novo e com seus primeiros 23 anos de vida, o Partido Comunista do Brasil (PCB) reunira certo acúmulo e atuava em um regime democrático reconstruído. Fundado em 1922 e logo proscrito, havia recuperado a legalidade em 1927. A formação do Bloco Operário mostrou que a recém-criada sigla se preparara para participar do processo eleitoral.
A frente, mesmo restrita, conseguiu fazer um deputado federal, mas o Partido foi novamente banido. Em outubro, já como Bloco Operário Camponês (BOC), elegeu dois vereadores no Rio de Janeiro. Em 1929, lançou Minervino de Oliveira para presidente, obtendo pequena votação. Em seguida, colocou-se à margem na Revolução de 1930, ignorando as questões políticas em jogo. Tal postura, inspirada no VI Congresso da IC, sofreu algumas revisões críticas na transição tática encerrada pelo Relatório Dimitrov, em 1935. Dissolveu-se o BOC; porém, as mudanças foram lentas. Prestes, que procurara em vão aproximar-se do PCB, só entrou em 1934, por cima, três anos após se radicar na URSS.
Os comunistas, igualmente alheios à guerra civil de 1932, lançaram candidatos à Constituinte um ano depois, em nome da União Operária e Camponesa, sem conseguir romper o isolamento. Em 1935, quando avançava o nazifascismo e o sinônimo integralista, surgiu a célebre Aliança Nacional Libertadora, não por acaso compatível com a nova linha da IC, aprovada no VII Congresso. Prestes retornou ao Brasil em abril e logo depois a frente antifascista foi proibida. Sem opção eleitoral, prevaleceu a insurreição de novembro, afinal derrotada. Com a forte repressão, institucionalizada em 1937, o Partido só pôde reorganizar-se após 1941, mediante a Comissão Nacional de Organização Provisória.
Em 1943, com a participação do Brasil na guerra e no clima de aliança mundial contra o eixo, a Conferência da Mantiqueira elegeu Prestes como secretário-geral e propôs a união nacional com Vargas. Em 1945, os dirigentes partidários, então anistiados, integraram-se ao movimento pela Constituinte. O PCB resgatou seu registro eleitoral, cresceu e no fim do ano disputou a Presidência com a candidatura do aliado Yedo Fiúza. Obteve 10% dos votos, elegendo 14 deputados federais e um Senador, Prestes, no Distrito Federal em que a vitória se repetiu nas eleições municipais, formando a maior bancada na Câmara dos Vereadores. Todavia, o espaço legal lhe seria vedado pela terceira vez.
O TSE cancelou, em 1947, o registro e depois os mandatos parlamentares do PCB, que respondeu pelo Manifesto de Agosto, em 1950, com exigências de cunho anti-imperialista e antilatifundiário, além de recomendar o voto em branco à Presidência, mas lançando candidatos a deputado em outras legendas. Na oposição, organizou campanhas pela paz e a nacionalização do petróleo. Em 1954, durante o IV Congresso, quando Vargas se suicidou, a tática teve que assumir a indignação popular. No ano seguinte, o voto em Kubitschek-Goulart foi justificado como ação em defesa do regime político democrático e de combate ao golpismo, porém, com sinais de ilusões nacional-desenvolvimentistas.
O XX Congresso do PCUS aguçou a crise interna, mas o Partido, ao defender a soberania nacional e as liberdades, crescia. De 1958 em diante, a participação eleitoral gerou bancadas progressistas e “nacionalistas” no ambiente marcado pela concentração monopolista-financeira do capital e por agudos conflitos sociais, somados à “guerra fria” e – com a revolução cubana e a emersão do polo chinês – à complexificação crescente no campo socialista. O V Congresso, de 1960, além de manter a tradicional doutrina política etapista – “a revolução brasileira é anti-imperialista e antifeudal, nacional e democrática” –, passou a conceber as reformas e a industrialização mediante um ângulo evolucionista.
O voto, então, adquiriu ares de um princípio abstrato e alimentou mais o cisionismo, especialmente com a decisão de mudar o nome do Partido para “Comunista Brasileiro”, 1961. Derrotado Lott – apoiado pelo PCB –, a renúncia de Jânio e a posse de Goulart, com a revogação do parlamentarismo em memorável mobilização democrática, por baixo e pelo topo, expressaram os conflitos sociais que também se refletiram nas eleições de 1962 e desaguaram no golpe de 1964. Parece que a direita se lembrou de Odilon Barrot. Após a separação de 1962, as duas vertentes se viram despreparadas: uma numerosa e com base de massas, mas surpresa e paralisada; outra, pelo avesso em cada palavra.
O PCB começou a se fragmentar e o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), que também sofrera perdas, recebia militantes inconformados. Nas eleições de 1965, para governador, os comunistas sufragaram conservadores descontentes com as consequências do golpe. Em 1966, com a suspensão do Congresso, a proscrição dos partidos legais pelo AI-2 e o fim da eleição direta para governador pelo o AI-3, o Comitê Estadual do PCB na Guanabara (CE-GB) decidiu apoiar nomes da oposição consentida e dissolver o Comitê Universitário, que apoiara o boicote. No início de 1967, os delegados eleitos nos coletivos de base, à conferência setorial, decidiram construir a Dissidência Comunista (DI-GB).
A campanha “Vote Nulo contra a Ditadura”, na Guanabara, foi dirigida pelo bloco DI-GB, Ação Popular (AP) e Organização Revolucionária Marxista Política Operária (Polop). O PCdoB encaminhou a mesma posição. Castelo Branco, declarando que não toleraria candidaturas desafinadas com seu governo, afastou mais ainda Lacerda e Juscelino que, somados a Goulart, estavam criando a Frente Ampla, por fim lançada em outubro por meio de um manifesto em prol das liberdades políticas. Os comunistas optaram por “resolver o problema” não com princípios abstratos, mas “conforme o caso concreto, inspirando-se nas particularidades específicas da situação”, conforme o antigo critério da IC.
Do boicote à recuperação do sufrágio
Compelidas, “em supremo recurso, à revolta contra a tirania e a opressão” – Declaração Universal dos Direitos Humanos –, a esquerda boicotou a eleição de 1966, embora o anseio democrático fosse insuficiente à “imediata […] luta armada pela conquista do poder”. Foram 21% nulos e brancos, quase 40% se agregados aos absenteístas. Em 1970 somaram 30%, aproximando-se da metade com abstenções. Pela revista Veja, “quase 50% dos brasileiros habilitados se recusaram a escolher representantes”. Os dados ecoavam o auge do movimento estudantil, a repressão às greves de Contagem-Osasco, a posição de novos grupos egressos do PCB, a proibição da Frente Ampla e a edição do AI-5.
Em 1974, o PCdoB – submetido a um pesado cerco, porém organizado e ainda reforçado pelo recém-ingresso da APML –, resolveu manter o boicote. No entanto, concentrado na situação dramática em que o derradeiro destacamento guerrilheiro sobrevivia no Araguaia, limitara-se a panfletagens locais sem maior repercussão. Com as greves proletárias contidas, o movimento estudantil sem atividade, os partidos comunistas caçados e a última resistência militar prestes a ser aniquilada – portanto, sem outras opções oposicionistas visíveis na conjuntura em que a economia entrara em longa estagnação e o “milagre” falira – o convite ao voto nulo submergiu na maré montante que desaguou no MDB.
Entrementes, o PCB seguia uma trajetória diversa. Em dissenso interno, manteve contatos com a Frente Ampla. Em 1967, Marighella, que se demitira da Comissão Executiva, foi à reunião da Organização Latino-Americana de Solidariedade sem o aval do CC, que o expulsou em setembro com mais seis dirigentes nacionais. Tal medida foi ratificada em dezembro pela Sessão Nacional do VI Congresso. Em 1968, Prestes se disse favorável à opção armada, mas criticou a teoria do “foco guerrilheiro” – Régis Debray – como revisora do marxismo, exatamente como fizera o setor ligado à DI-GB que depois, na Conferência de 1968, se fundiria com a Maioria Revolucionária do PCB e a estrutura local do PCdoB.
Em 1970, o PCB insistiu no apoio a candidatos no MDB, afastando-se ainda mais da então inclinação popular pelo protesto. No ano seguinte, vários dirigentes foram enviados ao exterior, inclusive Prestes. As eleições de 1974 coincidiram com a razia repressiva que iria, nos dois primeiros anos do Governo Geisel, aprisionar ou assassinar centenas de militantes, inclusive 10 membros do CC – a metade –, causando a desorganização partidária. No mesmo período, a reação conseguiu atingir o CC do PCdoB em dezembro de 1976, cercando a reunião realizada na capital paulista. No “Massacre da Lapa” foram executados, por comando superior, Pedro Pomar, Ângelo Arroio e João Batista Drumond.
Assim agiu a transição “lenta, gradual e segura”. Em 1978, com a conexão nacional mantida por quadros sobreviventes, o PCdoB disputou mandatos mediante a “Tendência Popular do MDB”, alcançando êxitos. Em 1979 – após a Lei de Anistia –, enquanto retornavam os exilados, aguçavam-se os impasses do PCB e começava o longo cisma de Prestes, ocorria em Tirana a VII Conferência do PCdoB, que aprovou a convocação do VI Congresso. Logo após, em Paris, o CC a revogou e, já no Brasil, dissolveu alguns comitês intermediários. Por fim, afastou cinco membros, que se converteram na Esquerda do PCdoB e, mediante o Congresso de 1984, no Partido Revolucionário Comunista (PRC).
O regime de 1964 cedia e o pluripartidarismo avançava com a esquerda obtendo registro legal: PDT, 1981; PT, 1982; PCB, 1985; PCdoB e PSB, 1988. Nas eleições de 1982, com voto vinculado por lei, o PCB e o PCdoB disputaram pelo PMDB, enquanto a Esquerda do PCdoB, além de atuar no sucedâneo da velha oposição, também o fez no PT. Na semiclandestinidade, vários comunistas foram eleitos aos parlamentos. Ato contínuo, a campanha das eleições diretas para presidente mobilizou milhões de brasileiros, leque amplo em que o PRC, então em processo fundacional, manteve o seu foco tático no combate ao regime ditatorial mediante palavra de ordem própria: Diretas, com Liberdade!
O Colégio Eleitoral preferiu Tancredo e Sarney, dando início ao governo civil no interior do regime castrense. Em 1986 o PCB já se registrara, mas os demais partidos comunistas bisaram sua tática e garantiram representantes que depois ganhariam poderes constituintes por emenda originada no Governo Central. Registre-se: a Carta Magna de 1988 logrou firmar uma constelação de conquistas – regime político democrático, mesmo que restritivo, e direitos fundamentais –, mas também cristalizou a ilusão liberal de que o Estado seria neutro: a sua ontologia se fundaria na vontade política expressa pelo sufrágio e posta nas mãos de governantes vistos e autoassumidos como titulares do “poder”.
Internacionalmente, o cerco do imperialismo à Europa Oriental, os impasses do campo socialista e o fim da URSS agravaram os problemas do movimento revolucionário. No Brasil, afetaram os partidos comunistas quase desmontados pelo terrorismo estatal e recém-emersos da vida clandestina. Em semelhante situação, já por si precária, uma onda liquidacionista invadiu as fileiras do PRC e do PCB, levando, respectivamente, seus III e X Congressos, de 1989 e 1992, a extingui-los. Tais organizações, reconhecendo-se tributárias de 1922, conseguiram: uma, restaurar em 1996 o seu registro; a outra, formar em 2005 a Refundação Comunista, para, com novos militantes, denominar-se PRC em 2018.
Ademais, o ciclo econômico adverso dos anos 1980, a busca das maiorias por compensações às privações, o ascenso dos embates democráticos e a retomada nas lutas proletárias, em uma passagem sob a hegemonia burguesa e sem outra opção viável, foram levando, pleito a pleito, a maioria da esquerda remanescente ou nascente – os setores de massa mais avançados, ativistas e dirigentes, pertencentes ao movimento popular em crescimento – às fileiras do PT. A jovem sigla chegara mais cedo à legalidade, aparecia como novidade, acolhia reclamos progressistas e se adaptava bem à ordem, assim como exprimia o senso comum social-liberal em matéria de organização e doutrina.
Diretrizes para o pleito municipal
O campo à esquerda, por cima das crescentes siglas e frações, tendeu às coligações com maior peso eleitoral. Os reveses nas disputas presidenciais – Collor, 1989; Fernando Henrique, 1994 e 1998 – tinham perfume de vitória, pois acumulavam sufrágios, postos nos parlamentos e contra-hegemonia. Os mandatos consecutivos de Lula e Dilma deixaram como saldo – em que pesem os limites objetivos e subjetivos de gestões possibilistas na sociedade capitalista – muitas mudanças econômico-sociais de cunho nacional, democrático e progressista, um dos motivos que aglutinaram os conservadores para destituírem a presidente em 2016, e a extrema-direita para dar início à reação bolsonariana.
Os caminhos da política para o pleito municipal devem considerar o maistream conformado na práxis, referenciados nos registros históricos, vez que as circunstâncias passadas sempre oferecem parâmetros e se prolongam no tempo, como herança. Mas o esforço de apropriação teórica sobre os processos reais nunca substitui os eventos concretos, que traduzem particularmente a luta de classes. Mesmo abarcando 170 anos de combates operários mundiais e 100 anos da história política brasileira, os fatos e textos pregressos nem de longe podem ser recursos de “autoridade”, que valeriam por mera declamação. Representam somente as experiências testadas e retidas como ensinamentos.
Eis por que são inúteis para substituir o presente, mais ainda para dominar o futuro, sob a pena de se tornarem uma farsa, como notou Marx em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, complementando a observação hegeliana. Portanto, a tática se apoia na realidade interna, atual e viva do País. A propósito, a pandemia transformou a estagnação – isto é, a recuperação débil, lenta e inconclusa do ciclo instaurado em 2014 – em mergulho recessivo abissal e os problemas crônicos em tragédia social, impulsionados pela omissão e sabotagem da extrema-direita. Sobre tal pano de fundo, a busca da “solução” autocrática pelo topo gerou novos impasses nas diferentes instâncias estatais e governamentais.
São contradições que se derramam nos demais entes. Como sempre, os constrangimentos sociais farão a campanha eleitoral prestar homenagem à realidade concreta em que ocorre. Os discursos e gestos – premidos pela forma estatal federativa e a repartição constitucional de competências, embutidas no senso comum – têm que dialogar com as classes populares na esfera particular, mormente sobre a composição dos governos e câmaras. Se não quiserem falar só para “iluminados”, as candidaturas devem abordar os temas pertinentes: vencer a face local da contrarrevolução, sustentar os direitos municipais de autonomia e defender os anseios das maiorias como se mostram em cada cidade.
No atual período, a reação bolsonariana – que oscila conforme a correlação de forças – precisa e continuará tentando combinar o controle do Governo Central e o ativismo falangista, já disponíveis, com novas bases fincadas nas 5.570 municipalidades, ainda intencionadas. Logo, a contradição principal vai colocando no confronto eleitoral, em que pese o terreno específico das pautas, os dois campos que desde agora desensarilham suas melhores armas, com sua visão em dois alvos: 2020 e 2022. Até lá, muita correnteza passará por baixo da ponte, com entulhos de toda sorte. Ninguém pode vaticinar quando e como acontecerá o fecho da crise institucional, sob a pena de ser tido como charlatão.
O centro tático da resistência oposicionista se condensa na linha de fortalecer a frente ampla democrática – no interior da qual os partidos à esquerda formem o polo mais dinâmico – e mobilizar grandes massas populares, para barrar o processo de autogolpe, salvar o regime político-constitucional e colocar um fim no Governo Bolsonaro. Entre as condutas indispensáveis para efetivá-lo estão as multilaterais iniciativas que isolem as hordas protofascistas encasteladas no Palácio do Planalto e detenham suas políticas ultraconservadoras. Eis o eixo da unidade, sem prejuízo às preferências específicas sobre os lemas e iniciativas, variantes conforme os territórios, setores, momentos e correntes.
Trata-se de agregar os fóruns e ações – na sociedade civil e na sociedade política –, somando segmentos que tenham contradições globais, parciais ou mesmo pontuais com as políticas oficiais, extensivamente a todos que as combatam em acordos limitados, assim como explorando as diferenças intestinas às hostes conservadoras por meio de consensos em cada embate. Para tanto, urge articular uma participação ativa nas campanhas eleitorais, seja mediante o apoio às candidaturas majoritárias com melhores possibilidades para unir o campo democrático e vencer a extrema-direita, seja elegendo vereadores avançados, comprometidos com as forças oposicionistas e os interesses populares.
Sobretudo nas capitais estaduais e outras médias ou grandes aglomerações urbanas, o patriotismo de partido, os projetos particularistas, os interesses pessoais, a hipervalorização das inconsonâncias e o olhar fixo no próprio umbigo devem ceder passagem ao desprendimento, diálogo, espírito coletivo, convergência e responsabilidade política. Os fatos históricos ilustram episódios em que os revolucionários foram expostos a derrotas evitáveis, por incompreensões da realidade, questões com somenos importância ou erros primários. Embora seja inelutável aprender com tropeços repetidos, em política não basta reconhecer os desastres post festum, pois o preço pode ser demasiadamente alto.
Torna-se necessário insistir, pela enésima vez – agora em um coro com mais vozes –, o chamado à unificação dos setores democráticos. Trata-se de construir os entendimentos e alianças majoritários, que sejam capazes de chegar muito além das organizações ou agremiações da esquerda, visando a derrotar pelo sufrágio, nos municípios, com destaque às cidades-polo, as forças da reação bolsonariana. Urge que as direções dos partidos identificados com tal finalidade deem o exemplo, pavimentem o caminho e afastem a cristalização de condutas sectárias. Chegou a hora de consolidar, em geral e caso a caso, a unidade, com metas, prazos, iniciativas e debates. Não há um minuto a perder.
*Ronald Rocha é sociólogo e ensaísta. Autor, entre outros livros, de Anatomia de um credo (o capital financeiro e o progressismo da produção)