O instrumento da discórdia

Imagem: Carlos Fajardo (Jornal de Resenhas)
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por DANIEL BRAZIL*

Sergio Ricardo repudiava a influência anglo-americana do rock e combatia o uso da guitarra na música brasileira

A morte do grande compositor Sérgio Ricardo (1932/2020), há poucos dias, provocou uma série de comentários sobre sua obra e também sua militância política. Homem de múltiplos talentos, diretor de cinema, compositor, músico, escritor, ator, pintor e produtor, ele também ficou conhecido pela posição intransigente em defesa de seus ideais, o que o fez perseguido pela ditadura, sofrendo censura e boicotes.

Mas Sérgio Ricardo, autor das trilhas sonoras dos filmes mais marcantes de Glauber Rocha, também foi intransigente na música. Defendia com afinco as raízes brasileiras, rurais, populares, mesmo tendo formação clássica (foi pianista no início de carreira, nos anos 1950, tendo até gravado como instrumentista) e composto suas primeiras canções sob influência da bossa nova. Repudiava a influência anglo-americana do rock e combatia o uso da guitarra na música brasileira.

No famoso Festival de Música Brasileira da Record, de 67, onde ficou imortalizada a imagem de SR quebrando o violão e jogando na plateia, a disputa ideológica acerca de como deveria soar a música brasileira chegou a ponto de provocar uma inusitada passeata, capitaneada por Elis Regina, “contra a guitarra elétrica”. Elis comandava um programa na emissora chamado Frente Única, que acabara de estrear, e vinha enfrentando os crescentes índices de audiência da Jovem Guarda, liderada por Roberto e Erasmo Carlos.

Em 17 de julho de 1967 subiu a avenida Brigadeiro Luiz Antônio, rumo ao teatro Paramount, uma passeata da qual participaram Elis, Gilberto Gil, Geraldo Vandré, Jair Rodrigues, Edu Lobo, Zé Keti, os rapazes do MPB-4 e outros, com uma faixa onde estava escrito “Frente Única – Música Popular Brasileira”. Outros artistas já estavam esperando no teatro, como Juca Chaves e Ataulfo Alves, conforme o registro minucioso de Zuza Homem de Mello, em “A Era dos Festivais, uma Parábola” (Editora 34, 2003). Sergio Ricardo estava no Rio, nas certamente era um dos apoiadores do movimento.

Por que a guitarra elétrica suscitava tanta polêmica? Surgida com os bluesmen americanos, era um instrumento ligado às classes populares, operárias. Ganhou o status de instrumento-símbolo de rebeldia da juventude americana nos anos 50, pelas mãos de Chuck Berry, com o nascente rock’nroll.  Granjeou tal popularidade que rapidamente foi assimilada pela “indústria cultural”, fazendo parte da trilha sonora das gerações seguintes, através de bandas como Beatles e Rolling Stones e mitos como Jimi Hendrix. Ironicamente, quebrar guitarras no palco passou até a fazer parte do show, em bandas como The Who e Clash.

Que motivos teriam os músicos brasileiros para repudiarem um instrumento surgido “negro”, pobre e rebelde? “Uma disputa de mercado” pode ser uma resposta simplista. O forte debate ideológico da época propiciava um discurso anti-imperialista, e a guitarra passou a ser um símbolo. Podemos detectar ecos ludistas no discurso de Sérgio Ricardo e seus companheiros de jornada?

Longe dos festivais, nos anos 1940, os baianos Dodô e Osmar já haviam eletrificado seus instrumentos de corda, de corpo maciço, e colocado o povo pra pular atrás do trio elétrico. Não à toa, Caetano e Gil, habituados com essa sonoridade, foram os introdutores da guitarra elétrica no histórico festival, acompanhados respectivamente pelos Beat Boys e pelos Mutantes. É notável a ambiguidade de Gil, que participou da passeata e dias depois se apresentou no palco do Paramount acompanhado pela guitarra do mutante Sérgio Dias. Casado à época com Nana Caymmi, Gil estava profundamente dividido esteticamente entre Luiz Gonzaga e os Beatles. Mas, como sabemos, pouco depois se rendeu aos encantos do instrumento maldito.

Sergio Ricardo não. Com alguns outros combatentes, cada vez mais isolados, defendeu o violão acústico, o piano acústico, a música que acreditava ser realmente “brasileira”. A antropofagia oswaldiana não lhe caía bem. Nem Ben, futuro Benjor, violão rítmico visionário que pouco depois aderiu à guitarra elétrica, fazia seu estilo. Discreto, participou de muitos atos pela democracia, ouviu e aconselhou vários artistas jovens, mantendo a coerência. O músico paulista Kiko Dinucci, em comentário recente sobre a morte do artista, disse que SR elogiou as canções de seu grupo MetáMetá, mas “só as que não tinham guitarras”.

É curioso imaginar qual o motivo de outros instrumentos, como o piano e o contrabaixo, não terem se tornado tão polêmicos quando foram eletrificados. Qualquer artista “puro” da MPB, inclusive Elis, logo percebeu a versatilidade do baixo elétrico. Até um sambista como Paulinho da Viola, durante muitos anos, gravou discos e se apresentou acompanhado pelo baixo elétrico de Dininho, filho do grande violonista Dino. Artistas como Egberto Gismonti gravaram discos inteiros com sintetizadores e teclados eletrônicos, sem serem menosprezados por isso. Baterias programadas são usadas ad nauseam, e só os instrumentos de sopro escaparam da polêmica porque, bem, dependem do fôlego humano.

Mas a guitarra, ah, a guitarra… símbolo de uma cultura imperialista, universalista, opressora dos valores locais, atravessou o embate ilesa, pois a vitória era inexorável. Hoje podemos falar tranquilamente de uma guitarra africana, asiática, latina, e até lembrar de fraseados de canções brasileiras marcados pela sua sonoridade. A partir daquele histórico festival, sem esquecer da Jovem Guarda, os músicos foram assimilando, adaptando, incorporando definitivamente seus timbres à uma música em transformação permanente.

Dá pra imaginar uma canção tão marcante como “Ovelha Negra”, da Rita Lee, sem o famoso solo de guitarra? Ou “Anunciação”, de Alceu Valença, sem a luminosa guitarra de Paulo Rafael? “Magrelinha”, de Luiz Melodia? Gal duelando com a guitarra em “Meu Nome é Gal”? A própria obra de Caetano, Gil e movimento tropicalista não existiriam sem a guitarra. Os exemplos são muitos, o leitor pode acrescentar de memória um rol quase infinito. Tente imaginar a música paraense, com as famosas guitarradas, sem o instrumento-fetiche…

Militante de uma causa idealista e ilusória, musicalmente falando, Sérgio Ricardo tem a seu favor a própria obra, grande, honesta e plena de belezas. Sim, é possível compor sem guitarra. A rigor, até sem instrumento. Mas eleger a tecnologia como inimigo é um problema secular, que parece ainda não estar resolvido por completo.

*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Otaviano Helene Benicio Viero Schmidt João Adolfo Hansen Osvaldo Coggiola Ricardo Musse Flávio R. Kothe Gilberto Maringoni Luiz Carlos Bresser-Pereira Luiz Werneck Vianna Luiz Roberto Alves Rafael R. Ioris Remy José Fontana João Carlos Loebens Luiz Bernardo Pericás Fernão Pessoa Ramos Afrânio Catani Sergio Amadeu da Silveira Leda Maria Paulani Samuel Kilsztajn Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Fernando Nogueira da Costa Lorenzo Vitral Ladislau Dowbor Thomas Piketty Bento Prado Jr. Francisco Pereira de Farias Elias Jabbour Fábio Konder Comparato Eliziário Andrade Ricardo Abramovay Carlos Tautz Liszt Vieira José Dirceu Lincoln Secco Paulo Sérgio Pinheiro Paulo Capel Narvai Eleonora Albano Marilia Pacheco Fiorillo Luiz Marques Francisco Fernandes Ladeira Daniel Costa Everaldo de Oliveira Andrade Denilson Cordeiro Paulo Nogueira Batista Jr Rubens Pinto Lyra Alexandre Aragão de Albuquerque Manuel Domingos Neto José Geraldo Couto Tarso Genro Matheus Silveira de Souza Slavoj Žižek Atilio A. Boron Carla Teixeira Rodrigo de Faria Boaventura de Sousa Santos Francisco de Oliveira Barros Júnior Celso Frederico Jorge Luiz Souto Maior Mário Maestri Henri Acselrad Ricardo Antunes Leonardo Boff Daniel Afonso da Silva Airton Paschoa Luis Felipe Miguel João Carlos Salles Igor Felippe Santos Jean Pierre Chauvin Antonino Infranca Chico Alencar José Luís Fiori Eugênio Bucci Érico Andrade Lucas Fiaschetti Estevez Eduardo Borges Leonardo Avritzer Paulo Fernandes Silveira Paulo Martins Alexandre de Lima Castro Tranjan João Lanari Bo Mariarosaria Fabris Luiz Eduardo Soares Priscila Figueiredo Gerson Almeida Luiz Renato Martins Celso Favaretto André Márcio Neves Soares José Costa Júnior Jorge Branco Kátia Gerab Baggio Juarez Guimarães Flávio Aguiar Manchetômetro Eleutério F. S. Prado Marcos Aurélio da Silva Yuri Martins-Fontes Marilena Chauí Luciano Nascimento Salem Nasser Marjorie C. Marona Michel Goulart da Silva Anselm Jappe André Singer Vanderlei Tenório Heraldo Campos Tadeu Valadares Daniel Brazil Henry Burnett Leonardo Sacramento Michael Roberts Berenice Bento Dennis Oliveira João Paulo Ayub Fonseca Alexandre de Freitas Barbosa Gilberto Lopes José Raimundo Trindade Jean Marc Von Der Weid Marcelo Módolo José Micaelson Lacerda Morais Eugênio Trivinho Andrew Korybko Renato Dagnino Valerio Arcary Maria Rita Kehl Ronaldo Tadeu de Souza Bernardo Ricupero Marcus Ianoni Chico Whitaker Ronald León Núñez Bruno Fabricio Alcebino da Silva Julian Rodrigues João Feres Júnior Antônio Sales Rios Neto Andrés del Río Marcelo Guimarães Lima José Machado Moita Neto Sandra Bitencourt Walnice Nogueira Galvão Dênis de Moraes Vinício Carrilho Martinez Antonio Martins Marcos Silva Ari Marcelo Solon Plínio de Arruda Sampaio Jr. Armando Boito João Sette Whitaker Ferreira Bruno Machado Anderson Alves Esteves Claudio Katz Luís Fernando Vitagliano Milton Pinheiro Michael Löwy Gabriel Cohn Annateresa Fabris Caio Bugiato Alysson Leandro Mascaro Vladimir Safatle Ricardo Fabbrini Tales Ab'Sáber Ronald Rocha

NOVAS PUBLICAÇÕES