Por LEONARDO AVRITZER*
Os dois riscos enfrentados pelo PT em 2020
O Brasil não é para principiantes. A frase de Antônio Carlos Jobim expressa bem os dilemas da esquerda e do PT em 2020. O PT enfrentou dois riscos nesta conjuntura de crise: um primeiro do qual ele se saiu relativamente bem foram os ataques que ele sofreu da Operação Lava Jato e da mídia entre 2014 e 2018. A operação Lava Jato foi transformada de uma operação contra a corrupção em um facciosismo político que teve como objetivo derrubar o governo Dilma Rousseff e inviabilizar a candidatura do ex-presidente Lula a presidência.
Esta associação que conseguiu criar uma campanha mais forte do que aquela que derrubou Vargas em 1954 teve um impacto inicial sobre o PT: a porcentagem de identificação dos brasileiros com o PT que havia chegado a quase 30% na primeira década do século XXI, caiu para 9% no auge da crise econômica e da operação Lava Jato. O PT sofreu as suas duas principais derrotas em 2016: o impeachment e a derrota eleitoral generalizada nas eleições municipais. 2018 não foi melhor, ainda que o crescimento de Fernando Haddad no segundo turno e a marca de 44% dos votos estancou este processo, em particular quando miramos a derrocada dos partidos de centro na mesma eleição.
Desde 2018 o PT vem se recuperando por alguns motivos: o primeiro deles, evidentemente, é que agora vemos a capacidade ou a incapacidade da direita brasileira de governar. O governo Bolsonaro é uma síntese das incapacidades da direita brasileira com uma pitada de ingovernabilidade produzida pelo próprio presidente. Ele ajuda a desfazer aqueles fatos relativamente óbvios tal como o mito da eficiência das Forças Armadas, um Exército não testado, que não se envolve em conflitos militares, mas que defende a ideia da sua eficiência.
Eu não chegaria tão longe quanto o ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, em acusar o exército brasileiro de genocídio. Creio que ele é apenas uma organização completamente ineficiente e incompetente, pautada unicamente pelo corporativismo da sua alta oficialidade e que opera apenas tendo em vista o saldo da sua conta bancária recheado de benefícios pagos pelo cidadão brasileiro.
Vale a pena ressaltar que saldo da conta bancária e eficiência não tem qualquer relação no caso das Forças Armadas no Brasil. É isso que explica a sua incapacidade operativa completa durante a pandemia. Alia-se ao desempenho pífio do Exército, os maus hábitos dos membros da corporação judicial que insistem em benefícios para si mesmo e acreditam que a cidadania é uma categoria pejorativa, tal como nos lembrou recentemente eo desembargador de Santos.
Por fim, completa-se o quadro da direita brasileira com empresários orgulhosos da sonegação de impostos ou que defendem abertamente nas redes sociais que o sacrifício de vidas (claro que não a deles ou dos seus entes queridos, apenas a da massa de trabalhadores pobres e indefesos). Assim, a chamada volta da direita ao poder no Brasil já é um fiasco absoluto e permite uma recuperação do PT e da esquerda no país. Mas é exatamente neste momento que se coloca o segundo risco, o dos projetos pessoais ou partidários prevalecerem em relação a necessidade de impor uma derrota eleitoral acachapante às forças conservadoras em 2020.
Vale a pena para entender este segundo ponto tecer algumas considerações sobre a relação entre o PT e esquerda brasileira. O Partido dos Trabalhadores adquiriu a hegemonia completa do campo de esquerda no Brasil com resultado de erros históricos das demais forças de esquerda em particular do antigo PCB, quanto ele se recusou a aderir a uma agenda de um partido popular e quando ele negou a necessidade de uma central sindical independente.
Apesar de relativamente bem posicionado para a transição democrática, o PCB perdeu a hegemonia do campo de esquerda e as bases da esquerda brasileira aderiram ao projeto do PT. A hegemonia do PT na esquerda tornou-se ainda maior com a eleição do ex-presidente Lula e assim continuou até 2010. No entanto, três erros históricos do PT fizeram com que esta hegemonia se esgarçasse e prejudicam sua estratégia eleitoral este ano: em primeiro lugar, a reação pífia do governo Dilma Rousseff à demanda por mudança política feita nas ruas em 2013. A incapacidade de realizar a reforma política, a insistência em concorrer coligado com o PMDB em um momento onde a liderança do partido já estava na mão de Eduardo Cunha, expressa a sobreposição da lógica política por uma lógica eleitoral, senão pessoal por parte da ex-presidente.
Em segundo lugar, a realização de um ajuste econômico que optou por um piloto automático ao penalizar os setores populares em detrimento dos grupos financeiros historicamente beneficiários das políticas econômicas. Em terceiro lugar, o governo Dilma não foi capaz de colocar limites aos impulsos antirrepublicanos da Operação Lava Jato se abstendo de realizar os controles que caberiam as agencias do governo federal em relação ao uso político da Polícia Federal pela Lava Jato e pela PGR.
Assim, se é verdade que a crise 2014-2020 envolveu um ataque das forças conservadores ao PT em relação ao qual o PT recebeu o apoio e a solidariedades das forças de esquerda em especial do PSol e do PSB, é verdade também que a crise do seu projeto político esteve ligada à maneira com o governo Dilma Rousseff e o PT como um todo deixaram de lado agenda que são caras à esquerda. Assim, não é difícil de perceber que apesar do Partido dos Trabalhadores ter sido atacado pela direita, a crise foi agravada por agendas contenciosas com o campo de esquerda que voltam à tona neste momento.
O momento de recuperação da esquerda em 2020 parece também ser um momento de reorganização da hegemonia política adquirida pelo PT ainda nos 1990. Na verdade esta reorganização já vem ocorrendo desde as eleições de 2018. Eis algumas evidências: o campo dos governadores de esquerda é hoje mais diversificado e Flávio Dino tem um importante papel de liderança, liderança esta mais expressiva do que a de governadores petistas como Rui Costa e Wellington Dias.
O PT tem tido pouca visibilidade na oposição ao governo Bolsonaro na Câmara. Algumas dentre as principais agendas de oposição tem sido mais bem capitaneadas pelo Psol. Por último, o PT tem sido pouco ágil na pauta da judicialização que é uma das principais pautas da oposição. Aliás, isso já vinha ocorrendo no próprio governo Dilma Rousseff onde algumas pautas importantíssimas do impeachment acabaram sendo lideradas por Jandira Feghalli que foi que liderou a ação no STF para normatizar a votação do impeachment na comissão especial da câmara.
Vale ainda a pena lembrar que o PT tem tido pouca visibilidade nas pautas da pandemia. Por exemplo, poucos foram aqueles que lembraram no momento em que o auxílio emergencial é concedido através deste aplicativo miserável que não cruza quaisquer dados, que o Ministério do Desenvolvimento Social organizou na gestão do ex-ministro Patrus Ananias um cadastro muito superior em termos de cruzamentos de dados.
Por último, vale a pena lembrar que a agenda em torno dos desmandos da operação Lava Jato não deverá ser a agenda principal das eleições de 2020. Fui dos primeiros que critiquei a operação Lava Jato e estou absolutamente convencido que ela foi uma operação politizada que instrumentalizou o poder judiciário com vistas a atingir o ex-presidente Lula. Estou também absolutamente convencido que o juiz Sergio Moro se associou a Jair Bolsonaro muito antes de 2018 e tomou decisões judiciais com o intuito de apoiá-lo. Sou também a favor da punição de Deltan Dallagnoll por diversas das suas ações ilegais, entre elas a absurda conferência proferida secretamente na XP.
Mas, a pauta colocada pelo ex-presidente Lula e pelo PT centrando o jogo eleitoral em torno destas questões não tende a ter apoio. A agenda eleitoral da esquerda em 2020 deve ser diferente e centrar-se no impeachment de Bolsonaro, na recuperação da economia e em evitar que a pobreza e a desigualdade aumentem. Para isso, é preciso entender que ganhar eleições em cidades chaves é mais importante do que recuperar PT e que candidatos dos demais partidos de esquerda estão muito bem posicionados em algumas cidades importantes eleitoralmente.
Ofereço alguns exemplos, o principal deles na cidade de São Paulo. Guilherme Boulos cravou a marca de 11% das intenções de votos na cidade de São Paulo de acordo com pesquisa da Big Ideia, uma marca respeitável que torna possível uma vitória nas eleições. Em pesquisa divulgada neste final de semana aparece empatado com Tatto. Enquanto isso, Jilmar Tatto é um candidato da máquina com bases populares na zona sul da cidade e completa incapacidade de ampliar a sua candidatura para os setores de classe média da capital.
Em outras cidades, percebemos problemas semelhantes: a divisão da esquerda em Belo Horizonte onde a candidatura do atual prefeito Alexandre Khalil é muito forte pode fazer o PT desaparecer da câmara dos vereadores, ainda mais se o candidato Bruno Engler apoiado por Jair Bolsonaro conseguir polarizar com Khalil. Ao mesmo tempo, o PT tem candidatos fortes e competitivos em algumas cidades do Nordeste, como é o caso de Salvador e Recife.
Assim, duas questões se colocam para o PT: em primeiro lugar, perceber que houve um processo de relativização da sua força política em diversas capitais. Nos casos de São Paulo e Belo Horizonte, cidades que o PT já governou por mais de um mandato, a realidade é que hoje ele é menor que outros partidos de esquerda ou tem menos potencial de crescimento eleitoral, assim como o Psol é menor em capitais do Nordeste e outros partidos com o PC do B tem importância em alguns estados do Nordeste como o Maranhão. Ou seja, em todos estes casos, existe uma possibilidade da esquerda ganhar se ela se colocar unida na campanha, mas não existe se o PT assumir de saída que é a maior ou a única força relevante da esquerda.
O reconhecimento da sua força limitada no campo da esquerda hoje é o principal desafio enfrentado pelo PT e que irá determinar sua sobrevivência de longo prazo. O PT conseguiu sobreviver ao ataque da direita, o ataque mais bem orquestrado da história do Brasil contra uma força política e seus líderes, mas pode estar enfrentando um desafio ainda maior caso ele não consiga se adaptar a nova realidade das forças de esquerda no Brasil. Aí ele sofrerá acusações das forças de direita em relação às quais ele poderá sobreviver, mas sobreviverá isolado no campo político das forças de esquerda. Este é o maior risco que o PT enfrenta hoje. Revertê-lo enquanto é tempo contribuirá para a vitória da esquerda nas eleições municipais de 2020 que está no horizonte.
*Leonardo Avritzer é professor de ciência política na UFMG. Autor, entre outros livros, de O pêndulo da democracia (Todavia).