Por Marcelo Eduardo Bigal*
A despeito da dor e da perda ocasionadas por essa epidemia, o que se nos apresenta é de decisão simples. Podemos proceder racionalmente e valorizar a vida, ou persistir em rota genocida, brigando por cloroquina, cânfora, ozônio intrarretal
A desconstrução da ciência se faz no Brasil de maneira tão brutal e articulada, que somos acometidos por um sentimento de desalento, de estarmos vivendo uma epidemia de cegueira, como escrevi recentemente neste site. Essa semana, ao ser perguntado ainda mais uma vez sobre a minha opinião sobre a cloroquina no tratamento do COVID-19, tive a impressão de viver em um universo paralelo, onde a voz da ciência não encontra ouvidos. Decidi, portanto, abster-me de argumentos científicos e decidi mostrar, por imagens, a surreal brutalidade da tragédia brasileira onde três epidemias se entrelaçam: a da COVID-19, da desinformação e, por fim, da ignorância, e falta de empatia/desprezo.
Visão Geral
Iniciando pelo básico. A população brasileira, atualmente estimada em 212,559,000 pessoas, responde por 2.7% da população mundial. Deveríamos, portanto, esperar que respondêssemos por 2.7% do número de casos e de mortes, e que, com eficiência e nos aproveitando do privilégio de termos um sistema único de saúde, estaríamos melhor que a média. Mas respondemos, no entanto, por 15.2% dos casos mundiais (5.6 vezes mais que a média mundial) e 13.8% das mortes (5.1 vezes maior que a média mundial).
A severidade da crise fica ainda mais evidente quando nos comparamos com os demais países da América do Sul, aonde somos o país mais importante economicamente. Respondemos por ao redor de 49% da população sul-americana, mas 63,8% dos casos e 63.7% das mortes (30% maior do que o esperado pela população apenas para esses dois parâmetros). Notemos que a América do Sul é uma das regiões mais acometidas, com 4 países entre os 10 mais afetados (Brasil, Peru, Chile e Colômbia) e, ainda assim, nossa performance é bem abaixo da média.
A mesma tendência é feita quando comparamos o Brasil, 9ª economia mundial, com países semelhantes, como França (7ª), Itália (8ª), Canadá (10ª) e Rússia (11ª). Respondemos por 41% da população, mas 67% dos casos (63% acréscimo) e 53% dos óbitos (29% mais que o esperado).
Testes
Em epidemias, por vezes todos os melhores esforços são ainda insuficientes. Mas o Brasil falha no mais básico. Uma das melhores métricas de eficiência para o controle de uma epidemia foca no número de testes por caso diagnosticado (que mostra o esforço em se identificar contactantes). Os demais países com PIB semelhante (e também com serviço de saúde público, como o Brasil), fazem entre 5 vezes (França) a 7 vezes mais teste (Canadá) por pessoa diagnosticada que o Brasil.
E a situação é semelhante quando comparamos o Brasil com os 20 países com maiores números de casos. Em número de testes por casos confirmados ficamos abaixo, além dos óbvios países desenvolvidos, também de países como o Paquistão (69% a mais), Bangladesh (11% a mais), Peru (25% a mais). O gráfico a seguir mostra a proporção de testes por diagnóstico que cada um desses países fez em relação ao Brasil. Apenas dois fizeram menos, Argentina e México. A maioria fez muito mais. Alguns sequer cabem no gráfico, como a Inglaterra, que faz 1206% mais testes que o Brasil por caso diagnosticado.
Evolução da Epidemia
Os dois gráficos abaixo são emblemáticos. O Brasil acaba de atingir 3 milhões de casos. Foram necessários 112 dias para atingir o primeiro milhão, 30 dias para atingir o segundo milhão, e 23 dias para atingirmos o terceiro.
Parece ter se criado no Brasil o conceito de que a epidemia irá diminuir de intensidade naturalmente. Isso se baseia no fato de que outros países achataram a curva. Mas achataram por agirem. O que vemos no Brasil é o anti-achatamento da curva. Estamos adicionando casos com velocidade crescente, não decrescente. E também mortos. Aonde se vê melhora? Foram necessários 66 dias para que os primeiros 25 mil óbitos acontecessem, e desde então outros 25,000 acontecem cada 25 dias. A despeito da subnotificação, os dados oficiais mostram que no Brasil morre uma pessoa a cada 86 segundos pelo COVID.
Achatamento da Curva
O Brasil não passou de ano no curso “Economia dos Micróbios”. A desconstrução da informação levou ao conceito de que devemos retomar a atividade econômica a qualquer custo. Mas para retomarmos a atividade econômica (e isso se aplica também a volta as escolas e a normalidade em um sentido mais amplo), primeiro precisa-se debelar a epidemia. No gráfico abaixo apresento a experiência de Nova Iorque, Itália e Canadá, dois deles brutalmente afetados (Nova Iorque e Itália). Note-se que, a despeito do enorme sucesso, esses locais continuam tomando todas as precauções. Nova Iorque não reabriu teatros e muitas outras atividades. O Canadá não terá aulas presenciais plenas e tem suas fronteiras fechadas.
Mas o que acontece quando adicionamos o Brasil ao gráfico (abaixo, em verde)? Nada pode ser mais elucidativo. Esse, para mim, é o gráfico que melhor ilustra a mediocridade do nosso pensamento atual. Para se voltar a um mínimo de normalidade (comércio, escolas), há que primeiro controlar-se a epidemia. Podemos lutar contra isso até o fim dos tempos, e tomarmos todas as cloroquinas existentes no mundo (que, a propósito, se funcionassem, teriam melhorado as nossas curvas de mortalidade). Enquanto não agirmos com seriedade e decência, não existirá normalidade no nosso horizonte.
Liderança
Vale a pena refletir sobre a nossa própria culpa nessa situação. Trivializamos a dor, relativizamos a importância do conhecimento. Alguns exemplos para reflexão.
O Ministério da Saúde no Canadá é liderado por Dr. Theresa Tam, especialista em doenças infecciosas infantis. Nascida na China, foi co-líder de estudo em 2006 que focava nas preparações necessárias para se prevenir contra epidemias, após o SARS. Segundo a OMS, ela previu a epidemia do COVID com extraordinária precisão. Antes disso havia liderado esforços no Canadá para conter a epidemia de uso de narcóticos. Liderou a resposta contra o SARS, H1N1, Ebola, e representa o país na OMS. Alerta contra os riscos de se confiar na eficácia das vacinas em desenvolvimento, em detrimento de atuações mais óbvias.
Os EUA, que tem atuação tão desastrosa como o Brasil, só não está em situação pior graças a atuação do Dr Anthony Fauci, que tem coragem e credenciais para se opor a Donald Trump. É diretor da agência de Saúde desde 1984. Liderou a ação contra as epidemias de Ebola e Zika. Aconselhou seis presidentes e foi o principal arquiteto do plano de emergência para o combate a AIDS, que salvou milhões de vidas, e pela qual é considerado uma lenda pelos pacientes e organizações de suporte.
A coordenação de saúde brasileira é liderada pelo General Pazuello. De acordo com Wikipedia, o general atuou na coordenação das tropas do Exército nos Jogos Olímpicos de 2016 e, desde fevereiro de 2018, coordenou a Operação Acolhida, que cuida de refugiados da Venezuela em Roraima, além de servir previamente como Secretário da Fazenda no Governo do Estado de Roraima no período da intervenção federal. Em 8 de janeiro de 2020, deixou a coordenação da operação para comandar a 12ª Região Militar, em Manaus. Dotado de experiência logística e operacional, possui extenso treinamento militar e extensa inexperiência em saúde.
A despeito da dor e da perda ocasionadas por essa epidemia, o que se nos apresenta é de decisão simples. Podemos proceder racionalmente, a exemplo de vários países, e valorizar a vida, seja por humanismo ou por interesse econômico. Ou persistir em rota genocida, brigando por cloroquina, cânfora, ozônio intrarretal. Disputando o óbvio. Falando da gripinha. Não usando máscaras. Não fazendo um isolamento coordenado. E, paradoxalmente, esperando por uma vacina, um grande avanço da ciência. Que ainda não sabemos se funcionará bem e prolongadamente. Mas essa é outra história. Sempre dá para cloroquinizar uma vacina!
*Marcelo Eduardo Bigal é médico neurologista e pesquisador, com doutorado em neurociências pela USP. Possui 320 artigos publicados em revistas científicas internacionais, e publicou cinco livros médicos. É CEO de uma companhia de biotecnologia, com sede em Boston, dedicada ao desenvolvimento médico na área de imunologia.