Por FLAVIO AGUIAR*
Nossa percepção do tempo vem se alterando desde a invasão dos telefones celulares; tudo tem de ser muito rápido, imediato
Atravessamos um tempo em que, para se almejar algum sucesso à direita, é necessário, além de ser reacionário, primar pela mediocridade dos ideais, das ideias e da linguagem. Foi-se, e faz muito, o tempo em que ser do campo “conservador” exigia algum estilo. Carlos Lacerda podia ser “o Corvo” para as esquerdas; mas era um intelectual de certo porte e um orador brilhante. O católico Gustavo Corção era reacionaríssimo; ao mesmo tempo, seus artigos detestáveis eram aulas de bom português. Hoje ambos foram substituídos por uma corja de assassinos da língua portuguesa e das boas maneiras, como Weintraub e Olavo de Carvalho.
Médici comandou um dos governos mais violentos da história do Brasil: entretanto, não dava chiliques ridículos como Augusto Heleno. Eugênio Gudin, Delfim Netto, Mário Henrique Simonsen, Roberto Campos e outros se notabilizaram pela liderança reacionária; perto deles, Paulo Guedes é rasteiro, tosco, medíocre. Juracy Magalhães, como embaixador em Washington, disse que o que era bom para os Estados Unidos era bom para o Brasil; Ernesto Araújo lidera um Itamaraty para cuja diplomacia o que é bom para o Brasil é apenas o que medra numa ala do Partido Republicano daquele país, a mais tosca, chefiada por Trump, que é poderoso, mas também é de uma mediocridade espantosa.
Revirando-se todos os quadrantes do governo Bolsonaro, não se encontra, praticamente, uma única ideia que preste ou que sequer se sustente de pé. Encontram-se obsessões e vilanias. Há pouquíssimas exceções. Uma delas, pasme-se, se encontra na ministra da Agricultura, apelidada de “a Musa do Veneno”, pois pelo menos parece que ela entende do que está falando e diz coisa com coisa. Uma ou outra frase do general Mourão faz sentido; não que se concorde com ele, mas estas umas ou outras frases são inteligíveis, pelo menos. Pois todo o resto é um assalto cavernoso contra a inteligência. E ninguém me diga que Bolsonaro e um gênio político. Não é. Pode ser esperto, com seu clã familiar e miliciano; de resto, prima pela burrice primária de suas ideias e falas.
A “coisa” não se limita ao governo federal. Como a última praga do Egito, o anjo da mediocridade invade tudo: a república de Curitiba, vastos setores do Ministério Público, várias declarações de ministros do Supremo. Invade também as ruas, as manifestações dos fanáticos bolsonaristas, dos empresários que mais ou menos a gosto ou a contragosto sustentam o governo, os e as jornalistas que abriram o caminho para a subida do pior governante de nossa história, incluindo aí as capitanias hereditárias, e que agora agem como se nada tivessem a ver com o estado deplorável que ajudaram a construir para a nação. Pastores como Malafaias e Macedos, cortesãos da Cloroquina como Alexandre Garcia, alucinadas como Sara Winter, generais com ou sem pijama só conseguem articular a própria estupidez.
A mediocridade é uma exclusividade brasileira? De jeito nenhum. Procure-se alguma ideia interessante do ponto de vista de sua consistência no governo Trump seus defensores: o deserto é espantosamente espantoso e redundante. Steve Bannon? Não passa de um espertalhão manipulador de algoritmos. Muito eficaz, mas não passa disto. Prossiga-se na lista: Orban na Hungria, Duda na Polônia, Salvini na Itália, Lukashenko na Bielorrússia, o cardeal Raymond Burke na Igreja Católica, Duterte nas Filipinas, Shinzo Abe no Japão… mesmo Gert Wilders na Holanda, Marine Le Pen na França, os líderes do AfD na Alemanha não primam pelo brilhantismo de alguma ideia, mas sim pela manipulação de chavões rasteiros da xenofobia ao nacionalismo excludente, do fantasma da criminalidade à criminalização de adversários. Netanyahu precisa de um constante clima de guerra para martelar suas ideias agressivas, destituídas de qualquer lampejo de inteligência.
Coloco a conservadora Angela Merkel num nicho à parte. Tem porte e estofo de estadista; não é medíocre; nem de extrema-direita; mas se destaca, conservadora, por fazer o arroz com feijão (ou chucrute com salsicha) da política, e por chupar ideias de adversários, desarticulando sua argumentação, como fez com o fechamento programado das usinas nucleares em relação aos Verdes e com o salário mínimo nacional em relação ao SPD.
Olhando-se para o outro lado do “Muro”, nada há a destacar tampouco. Putin e Xi Jin Ping são excelentes jogadores de poker. Ao contrário de Trump, não blefam. E não precisam, no momento, de climas beligerantes dentro ou fora de seu país. Mas é só.
A pergunta permanece: por que a mediocridade ganhou tanto espaço e tem tanto sucesso à direita? O ataque à ciência ajuda a entender, mas certamente não explica tudo. Um certo exibicionismo patológico e contagiante também ajuda o entendimento. Assisti a cena patética da jornalista argentina Viviana Canosa, no Canal Nueva, tomando um gole de dióxido de cloro para combater a Covid-19; havia um quê de voayeurismo ao contrário, do exibir-se como corajosa e desafiante. O mesmo vale para estes paspalhos que andam sem máscaras, desafiam fiscais, insultam office boys e se envolvem em outras atitudes destrambelhadas e que misturam desafio com covardia.
Há uma outra componente na busca de explicações grosseiramente simples para fatos e situações de extrema complexidade. Em termos de Europa, é mais fácil culpar o “estrangeiro invasor” ou o “refugiado” pelas precariedades da vida do que os “salutares planos de austeridade financeira”, que punem o contribuinte comum e salvaguardam as finanças. Em termos de Brasil e de Estados Unidos, culpe-se o ou a “diferente interno”: esquerdista, feminista, LGBTI, quilombola, índio, favelado, etc.
Penso que ainda há algo mais, algo que chamo a “sofreguidão pelo momento”, pelo “pouco tempo”. Nossa percepção do tempo vem se alterando desde a invasão dos telefones celulares; tudo tem de ser muito rápido, imediato. Pensar, amadurecer ideias, equivale a “perder tempo”. É necessário cultivar, mais, cultuar a resposta imediata, a reação ready-made em lugar do pensamento próprio: assim o caminho para as mediocridades exultantes está aberto, com o ar de ser o “único possível”, seja em mateira de economia, sociabilidade, religião, etc. Esse culto do imediato e da sensação de se pertencer a uma manda que pateia na direção certa é parte do cimento da mediocridade.
*Flávio Aguiar é escritor, professor aposentado de literatura brasileira na USP e autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo).