O modelo Uber

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Por Aaron Benanav*

O Uber e o Lyft, em grande parte, existem como apostas em automação financiadas por Wall Street, que se mostraram infrutíferas

Após ameaçarem deixar a Califórnia, as empresas Uber e Lyft obtiveram recentemente um indulto temporário da ordem para que reconheçam seus motoristas como empregados em vez de colaboradores independentes. As empresas argumentaram que não conseguiriam cumprir a ordem da noite para o dia, embora mais de dois anos tenham se passado desde que a Suprema Corte da Califórnia ordenou que mudassem suas práticas. A lei trabalhista californiana AB5 supostamente poria um ponto final no descumprimento.

Pode-se supor que tratar incorretamente os motoristas como colaboradores independentes garantiria lucros exorbitantes às empresas de transporte por aplicativos, como o Uber. A realidade é muito mais estranha. Na verdade, o Uber e o Lyft não estão tendo lucro nenhum. Ao contrário, as empresas perdem dinheiro há anos, cobrando pouco dos usuários pelas viagens em uma tentativa de expandir agressivamente sua participação no mercado mundial. Achatar os rendimentos dos motoristas não é sua principal estratégia para se tornar lucrativo. Isso apenas diminui a velocidade com que as empresas queimam dinheiro.

A verdade é que o Uber e o Lyft, em grande parte, existem como apostas em automação financiadas por Wall Street, que se mostraram infrutíferas. Essas empresas estão tentando sobreviver a desafios legais impostos às suas práticas ilegais de contratação enquanto esperam pelo aprimoramento das tecnologias de carros autônomos, que não precisam de motorista. O advento do carro autônomo permitiria que o Uber e o Lyft dispensassem seus motoristas. Tendo conquistado o domínio do mercado de corridas compartilhadas, essas empresas colheriam lucros em um mercado monopolizado. Nos planos de negócios de longo prazo da Uber e Lyft simplesmente não há espaço para o pagamento de salários decentes aos motoristas.

Só em um mundo carente de oportunidades mais lucrativas de investimento essa aposta selvagem em tecnologias futurísticas remotas poderiam se tornar grandes empresas multinacionais. Corporações e indivíduos ricos acumularam enormes somas de dinheiro e não sabem onde colocá-lo porque os retornos dos investimentos são extremamente baixos. O outro lado da queda nas taxas de investimento empresarial é uma desaceleração do ritmo de crescimento econômico, que os economistas chamaram de “estagnação secular“. Foi essa desaceleração das últimas décadas que gerou a força de trabalho insegura com a qual contam Uber e Lyft.

Em economias com crescimento lento, os mercados de trabalho ficam enfraquecidos. Trabalhadores mais velhos que perdem o emprego têm dificuldade em encontrar trabalhos equivalentes. Enquanto isso, os jovens que começam a trabalhar precisam enviar centenas de currículos e acabam trabalhando no comércio, em postos sem muita perspectiva. Empresas de compartilhamento de viagens, como Uber e Lyft, alimentam-se da insegurança onipresente na economia moderna. Quando a alternativa é trabalhar em turnos irregulares em cafeterias, por exemplo, dirigir para estas empresas fazendo o próprio horário pode parecer um sonho. O gerenciamento por algoritmo também parece utópico em comparação com chefes desagradáveis. Nos primeiros anos de operação, as empresas de transporte por aplicativos até ofereciam taxas de remuneração boas em relação às alternativas disponíveis.

O Uber e o Lyft provavelmente imaginavam que a essa altura já teriam dispensado esses trabalhadores, substituídos por robôs. Mas, como muitas promessas de automação, os carros sem motorista ainda estão longe de se tornar realidade. O Uber e o Lyft começaram a achatar a renda desses trabalhadores para estancar a sangria de suas próprias reservas. Foi quando os motoristas começaram a reagir.

Esta luta pelos direitos dos trabalhadores baseia-se no reconhecimento crescente de que a expansão da economia digital não reflete apenas o triunfo de uma mudança tecnológica incontrolável. Por trás da retórica do Vale do Silício, muito do que parece ser inovação tecnológica não passa de um meio de contornar regulamentações, incluindo leis de salário mínimo. Ao classificar incorretamente seus funcionários, o Uber deixou de pagar centenas de milhões de dólares aos sistemas de seguro-desemprego dos EUA. Mesmo assim, durante a crise econômica decorrente do Covid-19, o Uber fez lobby para que o governo federal interviesse e pagasse o seguro-desemprego de seus motoristas.

Por que o Uber poderia ganhar duas vezes? Faz sentido exigir que as empresas ou contratem trabalhadores para empregos estáveis ou simplesmente não os contratem. Mas em um ambiente de fraco crescimento econômico, essa exigência não conseguirá garantir segurança econômica para todos. As economias capitalistas foram capazes de estender a segurança a cada vez mais de trabalhadores somente em períodos de rápido crescimento econômico, quando as baixas taxas de desemprego possibilitaram aos trabalhadores exigir melhores salários e melhores condições de trabalho. A era de crescimento econômico em alta velocidade terminou faz tempo e não vai voltar.

As altas taxas de crescimento econômico em meados do século 20 – o ponto de referência para qualquer política que busque restaurar o crescimento econômico no presente – tiveram como premissa um período historicamente excepcional. A restauração do comércio internacional estável, após duas guerras mundiais, possibilitou o maior crescimento da capacidade produtiva da história da humanidade, não apenas na Europa e nos Estados Unidos, mas em todo o mundo. Na década de 1970, a expansão rápida deu lugar ao agravamento do excesso de capacidade global, resultando em aumento da concorrência e queda das taxas de investimento em bens comercializados internacionalmente. As pessoas se viram disputando trabalhos no crescente setor de serviços, onde o potencial para o crescimento da produtividade do trabalho e, portanto, do crescimento econômico, é significativamente menor.

A incapacidade dos trabalhadores de encontrar um emprego estável não é, portanto, resultado dos avanços recentes das tecnologias de automação, que, assim como os carros sem motorista, quase nunca vingaram. Sua situação resulta de uma realidade cotidiana de baixa lucratividade em economias saturadas de capital, e com oportunidades insuficientes para seu reinvestimento, de modo que dividendos e recompras de ações se tornam cada vez mais a norma para os excedentes de caixa. Com as oportunidades de investimento encolhendo, enormes pools de capital foram direcionados a empresas altamente especulativas, como Uber e Lyft, com pouca capacidade de lucratividade comprovada.

Não é surpresa que os governos tenham feito vista grossa para o mau comportamento de Uber e Lyft por tanto tempo. Os governos são cúmplices aumentar a vulnerabilidade dos trabalhadores. Diante de um crescimento econômico persistentemente lento e de altas taxas de desemprego, os governos vêm há décadas tentando convencer as empresas a investir facilitando o corte de benefícios dos trabalhadores e as isenções fiscais. Mais uma vez, essa tentativa de restaurar as condições de rápido crescimento econômico foi um fracasso, assim como as soluções do lado da oferta e do trickle down, que não conseguiram generalizar a prosperidade econômica. A crise do Covid apenas tornou as perspectivas econômicas ainda menos favoráveis.

As pessoas precisam de segurança que não esteja vinculada ao emprego. A pandemia acentuou esse imperativo. Em um mundo tão rico quanto o nosso, e dadas as tecnologias que já produzimos – mesmo sem a realização dos sonhos da automação – todos deveriam ter acesso a alimentos, energia, moradia e saúde. Se as pessoas tivessem essa segurança, por que escolheriam trabalhar em empregos horríveis, por baixos salários? Os proprietários do Uber e do Lyft sabem que, para seus negócios, é imprescindível que eles possam tomar as decisões-chave que moldam nosso futuro, sem nossa voz. O mundo do trabalho terá que ser democratizado. Eles estão apenas adiando o que será inevitável.

*Aaron Benanav é pesquisador da Humboldt University (Berlin).

Tradução: Clarisse Meireles

Publicado originalmente no jornal The Guardian

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