Por ÉRICO ANDRADE*
Quando optam por condenar uma criança de dez anos os cristãos não apenas atiram a primeira pedra como reservam para si o monopólio da hipocrisia
Só há uma palavra para descrever a postura dos fundamentalistas evangélicos no ato de extrema direita realizado no hospital CISAM em Recife: violência. Gritar a plenos pulmões que uma criança brutalmente violentada durante anos é assassina por decidir interromper uma gravidez, que lhe foi violentamente imposta, é mais um sinal de que não há mais um solo comum entre as pessoas no Brasil.
E quem retirou esse solo foi o lado direito do cristianismo. Não apenas os protestantes. Os católicos vociferaram e praguejaram contra a menina. A crença de que a verdade cristã está acima de todos e, sobretudo, de todas governa essas pessoas para uma radicalidade que dilacera o Brasil.Trata-se de uma concepção da verdade que recusa a validade de qualquer contexto. Ela é, portanto, absoluta.
Desse caráter absoluto da verdade se segue uma estrutura argumentativa cuja estrutura é a falsa simetria. Nessa perspectiva, esse tipo de cristianismo sectário compreende que o feto teria o mesmo patamar de direito que a criança violentada; como se se tratassem de posições simétricas, iguais.Por conseguinte, a criança deveria ser obrigada, mesmo que corra risco de morte, a parir a materialidade da violência que sofreu. Essa postura por não admitir exceção não se conforma a um ambiente democrático porque não se dispõe a nenhuma negociação.
No entanto, a radicalidade dessa posição sectária não exime os moralistas, que a sustenta, de errarem. Aliás, a falibilidade é constituinte do ser humano, segundo o próprio cristianismo. Então, o erro irá acontecer. E, por isso, o perdão foi criado como uma categoria teológica fundamental para lidar com as nossas falhas, mas também para evitar que a condenação moral seja uma forma de discriminar as pessoas como se algumas delas fossem essencialmente más e, portanto, pudessem ser condenadas de modo definitivo com a morte por apedrejamento.
Quando optam por condenar uma criança de dez anos os cristãos não apenas atiram a primeira pedra como reservam para si o monopólio da hipocrisia porque longe de combaterem as clínicas particulares de aborto (que seguem sendo operadas por católicos) reservam para si o direito de destruir vidas fragilizadas pela violência – muitas vezes praticadas na própria Igreja –do estupro.
*Érico Andrade é professor de filosofia na Universidade Federal de Pernambuco.