Duas vezes Sófocles

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Por PAULO BUTTI DE LIMA*

Comentário sobre as tragédias “Filoctetes” e “Aias”

Um guerreiro grego, o mais valente dentre todos, defraudado das armas a que tinha direito, procura se vingar de seus companheiros, mas, em lugar destes, sacrifica os animais do rebanho. Ao tomar consciência de seu ato ensandecido, suicida-se. Outro guerreiro, que fora gravemente mordido por uma serpente, é abandonado em uma ilha. Seus lamentos de dor e o cheiro nauseabundo da ferida impedem o contato com os homens e a relação com os deuses. Anos depois, em meio a tentativas de engano e violência, reluta entre a decisão de retornar, desonrado, à casa ou partir para o campo de batalha e dar a vitória àqueles que o relegaram.

Valentia, traição e lealdade, vingança e punição são os temas militares de Filoctetes e Aias. Dentre as poucas tragédias de Sófocles que conhecemos integralmente, estas são as únicas que tratam de acontecimentos da Guerra de Tróia. Nos dois casos, está em jogo a conquista das armas entre os comandantes gregos e a capacidade de dar a morte aos inimigos. Sófocles, que se tornou general ateniense, fala de experiências comuns a seus contemporâneos e aos heróis do passado. Oferece uma resposta concreta à questão que Platão mais tarde levantará: um cantor dos poemas homéricos pode assumir o comando militar graças aos seus conhecimentos poéticos sobre a arte da guerra?

A primeira dessas obras – segundo o tempo narrativo e a ordem de composição – foi Aias (ou Ájax, se seguirmos a tradição latina), mas não sabemos com precisão quando foi representada: aparentemente, vários anos antes de Sófocles ser eleito estratego pela primeira vez. Com a segunda, Filoctetes, ele venceu o concurso trágico, ao final de sua vida, após ter ocupado posições políticas importantes em uma Atenas abalada pela guerra e com suas instituições democráticas debilitadas.

Ao lado do ciclo de Tebas, ao qual se referem obras como Édipo Rei ou Antígone, os relatos sobre a guerra de Tróia constituíam uma das fontes da tragédia grega. Sófocles – em dramas dos quais conhecemos pouco mais que os títulos – recorre com frequência a este material comum, poético, da memória grega. As obras trágicas selecionam alguns eventos retirados de uma narração mais ampla. Pouco importa, dirá Aristóteles, que sejam ilógicos os fatos que não são representados, mas permanecem implícitos na trama, uma vez que se confere unidade e coerência à história selecionada.

Aias fora preterido a Odisseu na atribuição das armas de Aquiles. Em cena, o personagem se mostra no momento final de seu devaneio. Graças ao engano de Atena, ele sacrificou o rebanho e foi impedido de se vingar. É ela quem revela a Ulisses, e ao público, o ocorrido: guiada pelo preceito que “é doce rir dos inimigos”, interroga Aias ainda fora de si. O herói retoma consciência de si e de seus atos e este conhecimento vai conduzi-lo, inevitavelmente, à morte. Os comandantes militares devem decidir se honram o cadáver de quem se pôs contra eles ou se deixam sem sepultura o melhor guerreiro depois de Aquiles.

Já Filoctetes fora abandonado na ilha de Lemnos por Odisseu, segundo a ordem dos principais comandantes da expedição grega, antes de chegarem a Tróia. Ali permaneceu por vários anos, sofrendo as dores de uma ferida que o isolava dos homens, e sobrevivendo graças ao uso de um arco que pertencera a Héracles. Os gregos,no entanto, precisavam de sua ajuda para vencer os troianos. Aquiles morrera, e também Aias, sem conseguirem expugnar a cidadela inimiga.

Mais uma vez a disputa pelas armas entre combatentes aliados encontra-se na origem do drama. Um adivinho troiano revela aos gregos que Filoctetes, com seu arco, os levaria à vitória. Diz-se que mais tarde ele será responsável pela morte do príncipe troiano Páris. Em Sófocles, a cena trágica se desenrola na ilha deserta, entre a tentativa de engano do herói ferido e o desvelamento do ardil. O “reconhecimento” desta situação associa-se, no personagem, à consciência de sua dupla condição, fonte de desejo e de repulsa – requerido pelos demais, para obterem a vitória, e afastado de todos, objeto de aversão.

A honra do guerreiro se manifesta com a posse das armas e a morte dos inimigos. Por meio da herança de armas divinas se justifica a hierarquia entre os combatentes e a distribuição do poder na comunidade. Aias e Filoctetes participam da mesma sequência narrativa e respondem às mesmas condições dramáticas. Não por acaso o filho de Aquiles, herdeiro natural das armas do pai, pretendidas por Aias e apoderadas por Odisseu, dialoga com Filoctetes, tentando recuperar, para os gregos, o seu arco divino.

Junto à imposição da força conta também a astúcia, no campo de batalha e no interior do próprio acampamento. Nestas duas tragédias encontramos Odisseu como personagem. Nos dois casos ele participa dos eventos que estão na origem da tragédia e se mostra, ao mesmo tempo, superior a ela: o maior dentre os heróis, protegido por Atena, astuto e vencedor. Condição da ação dramática, ele sabe o que o herói trágico deve ainda “reconhecer”. Mas se o conhecimento de Aias ou Filoctetes os levam ao desespero ou à morte – também Filoctetes procura, em vão, o suicídio –, o conhecimento de Odisseu, tendo a deusa por cúmplice, mostra o caminho certeiro e superior da sorte humana, que se realiza no engano e na prepotência.

Em ambas as tragédias atravessam a cena, cantam, dialogam e dançam, grupos de quinze marinheiros. Participam também da ação outros personagens, alguns dos quais, diante do jogo bem medido, e cruel, de mentira e revelação, buscam introduzir a piedade nas relações entre os homens. Em Aias, temos Tecmessa, princesa bárbara escravizada, que tenta inutilmente evitar a morte do herói, e Teucro, meio irmão de Aias, que conquista, com a palavra, o direito de lhe dar sepultura. Em Filoctetes, encontramos Neoptólemo, o jovem filho de Aquiles, do qual Odisseu pretende, somente por um dia, que pratique a mentira e a deslealdade. Este, no entanto, apesar de sua devoção ao herói abatido e de sua sinceridade, não consegue impedir o desígnio dos deuses.

*Paulo Butti de Lima é professor na Universidade de Bari, Itália. Autor, entre outros livros, de Platão: Uma poética para a filosofia (Perspectiva).

Publicado originalmente no Jornal de Resenhas no. 3, julho de 2009.

 

Referências


Sófocles. Filoctetes. Tradução: Trajano Vieira. São Paulo, Editora 34, 216 págs.

Sófocles. Aias. Tradução: Flávio Ribeiro de Oliveira. São Paulo, Iluminuras, 160 págs.

 

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