Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE*
Atualidade e renovação do Manifesto Comunista: Um “trending topics” de 172 anos
Estamos em um momento da história na qual a comunicação social se tornou novamente o centro da disputa política. Quando em fevereiro de 1848 se publicou pela primeira vez um panfleto de 23 páginas, o que hoje chamaríamos de “textão”, pela primeira vez a esquerda socialista conseguia ao mesmo tempo expor uma visão crítica da sociedade capitalista, como contrapor uma agenda mínima de superação do sistema, isso com grande poder explicativo e de convencimento social. O breve texto que segue busca retomar o Manifesto Comunista como uma obra de leitura necessária para reconstrução do discurso social da esquerda brasileira, não pela atualidade programática em si, o que em parte, como se verá, ainda tem validade, mas pela perspectiva de encantamento da comunicabilidade e do vislumbre histórico que possibilita.
Aspecto notável refere-se ao público com quem devemos nos comunicar. Os autores daquele opúsculo, hoje a obra não religiosa mais traduzida e difundida no mundo, tinham claro que publico queriam atingir: as amplas massas “proletárias” que imbuídas da compreensão mínima da história e do seu sentido de futuro, alguns falariam teleologia, poderiam de algum modo vencer o enorme torpor que a construção ideológica e o cotidiano de exploração lhes impunha.
Há muito a percepção limitada de uma classe operária como agente histórico determinístico está ultrapassada. Não seria possível querer dos dois jovens autores que tinham acabado de romper com o hegelianismo e se apaixonado perdidamente pelos movimentos socialistas, que não vissem na jovem classe operária que se formava um agente histórico formidável. De fato nos próximos 150 anos após o Manifesto, essa classe operária organizada e, em grande medida, crescentemente fortalecida e expandida por todo o planeta, se tornaria o centro do “tour de force” com a classe dominante capitalista, chegando, em não poucos momentos e lugares na história a cumprir o papel que Marx e Engels tinham vislumbrado: o “proletariado passa por diferentes fases de desenvolvimento. Sua luta contra a burguesia começa com a sua existência”.
As alterações históricas colocadas nas últimas décadas colocam novos traços da disputa social, porém mantém a exploração do trabalho e a lógica do valor-trabalho, algo que Marx somente desenvolveria nos anos posteriores, nas páginas de O capital (1863), estabelecida na perspectiva de que toda riqueza social se estabelece desde a essência do conteúdo do trabalho alienado, cuja condição principal permanece sendo o trabalho assalariado.
Vale ressaltar que o trabalho assalariado se constitui em relação basilar do capitalismo, sendo o capital é a antítese cumulativa do trabalho alienado, a existência das relações de produção capitalista prende-se, fundamentalmente, a manutenção das relações de apropriação privada do trabalho social (trabalho abstrato), cujo mecanismo central de reprodução é o assalariamento. A comunicação social de convencimento da negação histórica e pela construção da ruptura radical com essa forma de exploração permanece como parte dos discursos e da construção do debate, mais do que nunca colocado em uma época de mutação no capitalismo que impõe as formas de exploração crescentemente informais e de exploração absoluta, a intensa espoliação na forma Uber, Wal-Mart ou superexploração modelo Brasil.
A forma de comunicação, como destacou Hosbsbawm (2011), seja pela “passionalidade” e “brevidade das frases”, nos parece algo ao estilo do que hoje são os duzentos e quarenta caracteres exigidos para “twittar”, porém, com uma força intelectual que o tornou um clássico da modernidade. Vale aqui aprofundar a condição da comunicação social contemporânea.
O Manifesto poderia ser tratado como um grande “trending topics” (sequencia integrada de twitts), cuja capacidade de interação possibilita vislumbrar os limites de um sistema em expansão (o capitalismo mundial) e as contradições que vão se criando ao longo de uma sequencia fantástica de fatos e imagens (a grande indústria, a formação das megacidades, o comércio mundial e, principalmente, os atores em conflito). Cada frase exulta a imaginação e excita sua replicação, algo que temos que reaprender a fazer para reconstruir a empolgada esperança em uma nova utopia.
Um segundo aspecto notável foi sua condição de fenomenologia histórica. Por mais que em tese circunstancial, tanto assim que seus autores nem sequer a assinaram já que em um primeiro momento consideravam que estavam respondendo a uma conjuntura que se ascenderia e passaria, porém o MC inaugurava uma percepção de “história gasosa”.
Muito antes da liquidez de Bauman (1999), Marx e Engels já percebiam a modernidade como uma forma gasosa, sem solidez e que se desfaz no ar. Como notou Berman (1999, p. 126) em seu belo ensaio “Tudo que é sólido desmancha no ar”, Marx antecipa antes de todos que a história moderna estabelece um moinho satânico de criação e recriação permanentes e que o “problema do capitalismo é que (…) ele destrói as possibilidades humanas que cria”.
A história é repleta de incertezas, sendo que os ensaios contidos no Manifesto não respondem boa parte das nossas atuais inquietações, porém nos conduzem a “insights” de como questionar o devir histórico. O MPC seria na percepção de um autor contemporâneo radical como Italo-Calvino (2004) um clássico pois “nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”. Muito mais apropriadamente podíamos considerar que o “como dizer” se tornou um ponto ainda mais forte para interpretar essa obra.
O ensaio escrito em uma única tacada por Marx em janeiro/fevereiro de 1848 foi uma peça de comunicação social solicitada por um dos primeiros movimentos assumidamente comunista, tendo como objetivo principal, como ressaltado pelos autores em um dos prefácios posteriores ser um “programa detalhado, teórico e prático, do partido”.
A proposta programática estabelecida constitui até hoje um guia formidável, nas suas quatro partes não somente disseca a sociedade capitalista, mas estabelece uma proposta inovadora de sociedade: a primeira parte pode ser resumida em uma frase que nos dias que se passam a tornam mais presente do que nunca: “a sociedade burguesa moderna , que conjurou gigantescos meios de produção e de troca, assemelha-se ao feiticeiro que já não pode controlar os poderes infernais que invocou”. O que mais atual e eloquente para os dias de Covid-19 e de crises financeiras recorrentes.
A segunda parte propõe uma agenda de longo prazo, não somente compreendendo que as transformações sociais são uma “revolução permanente”, mas que o “capital não é um poder pessoal: é um poder social”, o que exige um enorme esforço de convencimento e de construção de uma proposta que não pode ser fruto de inteligências isoladas, somente esforço coletivo com o ingrediente permanente das contribuições individuais, de tal forma que “ao mudarem as relações de vida dos homens, as suas relações sociais, a sua existência social, mudam também as suas representações, as suas concepções e conceitos; numa palavra, muda sua consciência”.
É sintomático que ao analisarmos as dez propostas de uma agenda mínima expostas no Manifesto ao final da referida segunda seção, na sua grande maioria permaneçam atuais e em países como o Brasil mereçam fazer parte de qualquer programa partidário minimamente progressista. Vale aqui mencionar quatro desses itens e verificar seu grau de pertinência para o Brasil de 2020:
i) “Expropriação da propriedade fundiária e emprego da renda da terra para despesas do Estado”. A condição do poder reacionário do latifúndio no Brasil alcançou seus limites no atual padrão de acumulação, centrado no agronegócio e na exploração mineral, sendo urgente a reforma agrária e a estatização da grande empresa mineradora como parte de uma governabilidade que se oponha a destruição vil da natureza.
ii) “Imposto fortemente progressivo”. Numa sociedade fundada na regressividade, na qual na média dos últimos anos “o consumo representou 43,7% da tributação, seguido pela mão de obra com 37,5%”, sendo que a “tributação sobre o lucro nas empresas representou 10,7%, sobre o patrimônio 3,7% e sobre a intermediação financeira 1,8%” (Khair, 2013), parece que o programa mínimo pensado por Marx para a revolução democrática burguesa alemã de 1848 encontra-se mais atual do que nunca.
iii) “Centralização do crédito nas mãos do Estado por meio de um banco nacional com capital do Estado e com monopólio exclusivo”. O grande problema brasileiro chama-se mercado financeiro e o formato rentista e de controle exacerbado sobre a riqueza nacional.
Enquanto no último trimestre de crise pandêmica a população brasileira empobreceu, os dois maiores bancos privados brasileiros acumularam ganhos líquidos de 6,7 bilhões de reais (https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/08/06/lucro-liquido-dos-grandes-bancos-cai-40percent-no-segundo-trimestre-de-2020.ghtml). Não há como pensar um projeto nacional soberano brasileiro se não se estabelecer a estatização dos grandes bancos e uma ampla política de crédito voltada a produção.
iv) “Centralização de todos os meios de comunicação e transporte nas mãos do Estado”. A comunicação se tornou um dos elementos mais críticos da sociedade moderna, o controle privado seja das formas convencionais de mídia (televisões, rádios) quanto as atuais formas baseadas nas plataformas baseadas na internet, impossibilitam qualquer exercício de democracia mais efetiva.
A terceira parte do Manifesto reflete a perspectiva de construção histórica do movimento comunista. Parcela considerável daquela parte da obra está a muito ultrapassada, mas a visão de construção permanente de um pensamento em mudança constante permanece mais atual do que nunca. A humanidade é uma forma evolutiva permanente, rompendo a ideia de progresso positivista e de mito tecnológico ou divino, ser de esquerda é não ter mitos, por mais que haja medo; a história é não linear e essa não linearidade implica que tudo está por se construir permanentemente, mas sabendo que os limites alcançados devam ser celebrados na medida em que se expanda a igualdade social e econômica e a diferença antropomórfica se amplie, lutando permanentemente contra qualquer forma de retrocesso e perda de direitos sociais antes estabelecidos.
A última parte deste manual histórico de comunicação social é um exultante lembrete para todos nós, nesta conjuntura de esquerdas partidas e uma enorme dificuldade de escuta da sociedade que os “comunistas lutam pelos interesses objetivos imediatos da classe operária, mas, ao mesmo tempo, defendem e representam , no movimento atual, o futuro do movimento”.
Frente esta breve leitura do Manifesto Comunista, o que devemos estabelecer como proposições de futuro, como agenda breve de intervenção. A esquerda terá que estabelecer um projeto de superação do capitalismo, algo difícil, mas que interessa traçar elementos, mesmo que primários através de um debate coletivo e democrático sobre as contradições, limites e destrutividade do capitalismo, constituindo elementos para sua crítica sistêmica e construção de uma alternativa a barbárie agora visível.
*José Raimundo Trindade é professor do Programa de Pós-graduação em Economia da UFPA.
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
HOBSBAWM, Eric. Como mudar o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
MARX, Karl. O Capital, Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013 (1863).
MARX. Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 2010 (1848).