Por Henrique Martins*
Sem tática ou estratégias precisas, o mundo se pinta como infinitos momentos sucessivos. Importa apenas aproveitar o momento e “lacrar”
Apesar de o título indicar a existência própria de uma forma de racionalidade identificada como lacradora, expressão essa popularmente empregada para designar comportamentos políticos chamativos e pouco eficazes, o texto efetivamente vai por outra direção. Não sei se existe propriamente tal forma de racionalidade sistematizada para que se pudesse exercer devidamente uma crítica profunda e abrangente contra ela. Apesar disso, quem tem contato com o movimento de esquerda hodierno no Brasil, principalmente mas não só o estudantil, deve reconhecer que há inúmeras práticas e concepções problemáticas. Dentre essas, escolhi algumas que me parecem ter algum tipo de nexo entre si, podendo possivelmente ser manifestações particulares de um fenômeno mais geral, aqui jocosamente intitulado como a tal Razão Lacradora.
Entender a atual ofensiva do Capital não é tarefa que se execute com reducionismo, buscando uma causa única. Existe o fator objetivo, que radica do próprio aprofundamento da crise estrutural do capital, que impõe um ritmo e qualidade de reprodução muito mais agressivo para o sócio-metabolismo humano. Existem os fatores subjetivos, tanto dos setores pró-capital, quanto dos pró-trabalho. Queremos aqui ensaiar uma análise sobre um aspecto particular e bem determinado, longe de totalizante, sobre grandes setores da esquerda brasileira contemporânea – sua forma “lacradora” de pensar e de agir. Por tanto, nos referimos a um crescente predomínio de uma racionalidade com foco nas aparências, na manifestação, repercussão dos fatos, do que efetivamente na capacidade ou não destes produzirem inflexões substantivas na realidade. É evidente que na maior parte, isso não opera de forma plenamente consciente, uma vez que o bê-á-bá da esquerda é justamente que não é a consciência que determina a realidade, mas ao contrário. De fato, na política nem sempre é algo fácil conseguir definir a composição correta dentre vários fatores a serem levados em conta ao definir uma posição. Ora se é pragmático demais e perde-se programaticamente, ora se é mais cauteloso com os princípios e perde-se em efetividade no momento, para ilustrar apenas um dos diversos possíveis “dipolos” (por falta de palavra melhor). Se, por exemplo, em um período da história do movimento comunista prevaleceu o pragmatismo em nome da Realpolitik, pode ser que hoje o ethos de parte do movimento esteja pendendo para uma das extremidades de algum desses “dipolos”.
Relacionado a isso vem o estreitamento teórico e prático do conceito de política. Ela afasta-se da expressão da positividade da sociabilidade humana, como atividade que medeia o ser humano individual com o restante da sociedade a fim de organizá-la/transformá-la e toma dimensões cada vez mais restritivas e impotentes a nível global. A seguir vejamos os aspectos selecionados para ilustrar a problemática da assim chamada “Razão Lacradora”. Antes, cabe alertar que esse foi um texto bastante espinhoso para a escrever na medida em que tudo que descrevo e critico não são necessariamente predominantes na prática militante ou fruto de concepções claras e conscientes. Fosse esse o caso, a crítica poderia ser feita sistematicamente. Como não é, sou obrigado a lidar com descrições de situações ou processos aparentemente irrelevantes, na expectativa que quem me lê consiga relacioná-los com o que presencia na sua experiência política. Assim, é importante ler o texto tomando muito do que digo como hipóteses para suscitar reflexões ao invés de necessariamente descrições finais de problemáticas complexas. Sem mais,
Militância Endógena
A menos que estejamos numa situação revolucionária, lutar contra o sistema (subentenda-se sistema capitalista de reprodução social, historicamente determinado) é uma posição minoritária na sociedade. Como é bem sabido, a ideologia dominante em uma sociedade é a ideologia das classes dominantes, que controlam os meios de produção e reprodução ideológica, assim como seus meios de difusão, devido à sua força econômica e política. Mais ainda, as próprias relações sociais engendradas pelo capital, em seus ciclos, têm influência decisiva para a manutenção de sua ideologia. Pois a vida que brota dessas relações é uma vida no interior do capitalismo, é uma vida que concretamente está voltada para a reprodução da ordem. Portanto, a vida cotidiana, se não acompanhada de um esforço consciente e constante para o rompimento dessas relações, leva ao amoldamento à ordem. É bom anotar, ainda que brevemente, que a ideologia dominante nem sempre assume a forma de um único sistema filosófico. Hoje, tanto o neo-positivismo com sua recusa à ontologia em favor da mera epistemologia, quanto a fragmentação do “pensamento pós-moderno” e sua rejeição às meta-narrativas, são respectivamente apologias direta e indireta à manutenção da ordem social do Capital, e portanto, ambas devem ser evitadas e combatidas pelos que tem pretensões de profundas transformações sociais.
Assim, a maior parte da população, em geral apática politicamente, expressa a posição de reprodução do sistema, sem falar na parcela deliberadamente apologética, defensora da manutenção da ordem. Dessa forma, encontrar outras pessoas que também se opõem de alguma forma ao sistema, mesmo com toda a diversidade conflituosa que isso pode abarcar, pode ainda ser acalentador para o coração contestador. E não apenas isso, a articulação coletiva é uma necessidade objetiva, dado que não há luta política significativa que se trave sozinho. Entretanto, remetendo à máxima “quem faz a revolução não é o partido, mas a classe”, cabe refletir um pouco na tendência bastante comum na esquerda hoje de discutir majoritariamente apenas entre si. É evidente que, sendo partidário da tradição de organização política marxista-leninista, defendo a importância de criar um forte coesionamento político entre as lideranças a fim de que elas possam dirigir o movimento de forma resoluta e servir de polo de unificação. Em diferentes graus, essa necessidade se aplica tanto para a organização partidária como para organizações representativas de categorias. E por mais importante que seja essa articulação entre quem é de esquerda, ela não é finalidade, mas sempre meio para atingir o objetivo que é dirigir as massas, no rumo da elevação dos seus níveis de consciência e de organização. Chamo aqui de militância endógena quando tais meios vão progressivamente tomando o lugar das finalidades e assim todos os esforços militantes vão se voltando para conversar e articular somente com os setores que já possuem alguma predisposição política ou abertura ideológica. Destarte, o universo político em disputa reduz-se substantivamente. Reduz-se para nós, mas não para o outro lado, pois não há vácuo na política. A recusa em estabelecer contato com quem não comunga dos mesmos princípios é um estreitamento da capacidade e potencialidade transformadora da política.
Próximo disso, e também relacionado com os demais tópicos a seguir, está uma séria confusão em conhecer o variado espectro de posições dentro da direita. Quando nos acostumamos a conversar somente com pessoas de esquerda, interagir com pessoas “de centro”, ou “inacionárias” pode levar a um choque e considerá-las incorrigivelmente de direita. Isso é bem ilustrado quando ocorrem espaços (verdadeiramente) de massa onde pessoas de variadas posições políticas são levadas ao mesmo recinto e manifestações moderadamente conservadoras, ou mesmo autenticamente conservadoras, são tachadas e constrangidas como se fossem o seu extremo: fascista, racista, etc. É fundamental que saibamos separar e reagir adequadamente ao que são manifestações conservadoras dentro do limite da razoabilidade e o que são colocações extremistas, encharcadas de ódio e que buscam retroceder de marcos civilizatórios. Garantir espaços de discussão racional e democrático exige uma ferrenha intolerância contra a intolerância, mas somente contra ela. Defender segurança no campus universitário via PM não implica defender o genocídio da população pobre nas periferias; questionar (dependendo dos argumentos) a efetividade das cotas não torna ninguém racista; defender a criação de uma Empresa-Júnior não torna ninguém Anarco-Capitalista, etc. Esses e tantos outros exemplos são posições que historicamente a esquerda se opõe e temos totais condições de travar um debate franco e determinado sem apelar para a desqualificação e coerção de massas. Diferente é a situação quando se vê indivíduos explicitamente ofendendo trabalhadores grevistas como vagabundos, mulheres como vitimistas, exaltando violações de direitos humanos e daí pra baixo. Nesses casos a coerção e escorraçamento, a fim de isolar e constranger tais posições inequivocamente absurdas, é cabível e necessária. Não notar o grande gradiente existente entre essas posições conservadoras e querer isolar indistintamente a quem pensa diferente de nós pode levar, ao contrário, ao nosso próprio isolamento.
Saber perder para poder voltar a ganhar
A esquerda e o povo brasileiro como um todo vêm sofrendo sucessivas derrotas, em intensidade em geral crescente, pelo menos desde 2013. Em todo esse período o movimento pró-capital e antipovo não deixou de enfrentar alguma resistência, de forma que foi um processo aberto a disputa entre as forças políticas e sociais. Esse movimento da direita radical de caráter cada vez mais golpista culmina na eleição de 2018 que dá a vitória para a fração mais servil e agressiva do bloco dominante no Brasil, na figura de Jair Bolsonaro. Essas eleições, marcadas pela prisão injusta de Lula e manipulação massiva por fake news, podem ser reiteradamente denunciadas, mas no final do dia temos que aceitar claramente que nela fomos derrotados. Celebrar que a maior bancada da Câmara é do PT (sendo que ela nunca antes esteve tão pequena), desdenhar que Paulo Guedes não sabe como funciona a máquina pública, que Bolsonaro não sabe se portar presidencialmente, etc., por vezes pode ser uma forma de querer diminuir o impacto da vitória de nossos inimigos. E nessa situação reside um grande problema. É certo que um exército depende não só de sua força, como do moral dos soldados, e nesse sentido a dura realidade das derrotas impostas pode ser cruel para o ânimo das lideranças populares. Entretanto, contornar essa situação com maus juízos sobre a realidade não é remédio de verdade. Conhecer a realidade é pressuposto para enfrentá-la, e superdimensionar nossas capacidades, bem como subestimar a força do inimigo, fatalmente levará ao nosso fracasso. Vejamos uma reflexão de Gramsci nessa direção:
A tendência a diminuir o adversário – Essa tendência é, por si só, um documento da inferioridade de quem é possuído por ela. Na verdade, tende-se a diminuir raivosamente o adversário para poder acreditar na segurança da vitória. Essa tendência traz, obscuramente, em si um julgamento da própria incapacidade e debilidade (que quer tomar coragem) e se pode também reconhecer nela um início de autocrítica (que se envergonha de si própria, que tem medo de se manifestar explicitamente e com coerência sistemática). Acredita-se na “vontade de crer” como condição da vitória, o que não seria errado se não fosse concebido mecanicamente e não se transformasse em autoengano (quando contém uma confusão indevida entre massa e chefes e abaixa a função do chefe ao plano do mais atrasado e desorganizado dos seguidores: no momento da ação, o chefe pode tentar infundir em seus partidários a persuasão de que o adversário será certamente vencido, mas ele próprio deve fazer um julgamento exato e calcular todas as possibilidades, mesmo as mais pessimistas).
Um elemento dessa tendência é de natureza opiácea: é, na verdade, próprio dos débeis abandonar-se à fantasia, sonhar de olhos abertos que os próprios desejos são realidade, que tudo se desenvolve segundo os seus desejos. Por isso, se vê, de um lado, a incapacidade, a estupidez, a barbárie, a covardia etc. e, de outro, os mais altos dotes do caráter e da inteligência: a luta não pode ser dúbia e a vitória já parece estar nas mãos. No entanto, a luta continua um sonho e vencida em sonhos. Um outro aspecto dessa tendência é ver as coisas oleograficamente, nos momentos culminantes e altamente épicos. Na realidade, não importa de onde se começa, as dificuldades tornam-se subitamente graves porque nunca se pensou concretamente nelas e, como é sempre necessário começar pelas pequenas coisas (além do mais, as grandes coisas são um conjunto de pequenas coisas), a “pequena coisa” é desdenhada; é melhor continuar a sonhar e adiar a ação para o momento da “grande coisa”. A função de sentinela é pesada, entediante, fatigante; por que “desperdiçar” assim a personalidade humana e não a conservar para a grande hora do heroísmo? E assim por diante. Não se pensa que, se o adversário te domina e tu o diminuis, reconheces que foste dominado por alguém que consideras inferior; mas, então, como será que conseguiu te dominar? Como será que te venceu e foi superior a ti mesmo naquele instante decisivo que devia dar a medida da tua superioridade e da inferioridade dele? Mas é claro que o diabo “deu uma mãozinha”. Ora, aprende então a trazer a mãozinha do diabo para o teu lado.[i](grifos meus)
Relacionado proximamente a essa questão está a ausência ou inexpressividade da discussão sobre o poder nos círculos da esquerda. No afã de obter narrativas de vitória para aqueles que lhe escutam, é comum apegar-se a elementos pouco relevantes da conjuntura mas que supostamente demonstram alguma fragilidade do governo. É possível que em muitos casos busque-se meios de desmoralizar e descredibilizar as figuras do governo frente à população, especialmente sua base. Nisso podemos colocar as denúncias da formação acadêmica de Weintraub, o rechaço a Eduardo Bolsonaro como embaixador, celebrações à bolsa caindo e dólar subindo como sinal de incompetência de Guedes, etc. Nesse sentido apresentado, são denúncias justas que fazem sentido taticamente, mas por outro lado pouco significam em relação a disputa do poder político real. É preciso ter clareza de quais são os reais sustentáculos da dominação capitalista no Brasil e de suas expressões políticas em particular. As hoje combalidas forças populares não possuem o luxo de serem direcionadas para alvos que não serão capazes de produzir inflexões sensíveis e é tarefa da mais alta prioridade para nós apontar o melhor caminho.
Maniqueísmo e padronização
Vivêssemos na época da escravidão, a existência conflituosa de classes sociais seria explícita, pois a exploração econômica é evidente quando o próprio trabalhador é uma mercadoria. A sociedade capitalista funda-se num modo de produção onde a exploração é velada (refiro-me especificamente à descoberta marxiana do mais-valor), e ainda por cima tanto Estado quanto sociedade civil atingem o ápice da complexificação até então, sendo compostos por uma miríade de instituições e setores sociais distintos. Entendo que os comunistas devem ser a parcela mais resoluta do proletariado, mas certamente não o único segmento social e político que dispõe antagonismo com a ordem vigente. Inclusive, é próprio das mais ricas formulações comunistas a necessidade da conformação de um amplo bloco histórico, ou seja, um bloco de todas as forças que se opõem ao bloco de poder dominante, sob a hegemonia do proletariado. A constituição desse bloco para os comunistas é conditio sine qua non para a tomada do poder político e consequente implementação de mudanças estruturais. Tão complexa é essa tarefa que em absoluto não depende somente da vontade e dos esforços do grupo mais resoluto que for. A realidade social é objetiva e se move com inúmeras cadeias causais heterogêneas, pouquíssimas dessas sob a influência dos grupos organizados, mesmo indiretamente. O caminho para a construção desse bloco é longo, escarpado e sinuoso, mas sabemos que passa pelo esforço prático e teórico de enfrentamento contra o bloco dominante, estabelecendo progressivamente a articulação política entre vários segmentos sociais que possuem interesses antagônicos aos monopólios, latifúndios e ao imperialismo.
Para nós, as táticas são o desdobramento particular de nossa estratégia em função da conjuntura. Em terminologia militar, a tática é o emprego das forças armadas em função de uma batalha, sendo a estratégia o emprego das batalhas em função da guerra. Isso pode levar à reflexão de que em geral para cada situação existe apenas uma tática adequada possível. Dessa forma, aqueles que adotam outra tática em relação à nossa (que julgamos ser a correta) dizemos estar indo na direção errada. Esse pode muito bem ser o caso em muitas situações, mas o cenário da grande política brasileira hoje é diferente de uma guerra onde em geral em cada fronte enfrentam-se duas forças cada uma com seu comando unificado. Na política, por mais que tenhamos duas forças opositoras principais, principalmente no nosso campo seu comando não é atualmente unificado – mais que isso, é fragmentado. Esta é uma condição adversa, cuja superação é indispensável, mas ainda assim indiscutivelmente real. Enquanto possuímos nossas posições, outros setores podem adotar táticas que jamais poderíamos cogitar empregar sem que isso faça delas necessariamente antagônicas.
Para ilustrar, lembremos do ocorrido no início do governo Bolsonaro onde o congresso apreciava a nova lei antiterrorismo (à época, PL10431/18), que abria mais brecha para a criminalização dos movimentos sociais. Frente a isso, poder-se-ia refletir que terrorismo no Brasil é algo com praticamente nenhum precedente real e que uma legislação sobre tanto seria por natureza um engodo para, em essência, visar a repressão dos movimentos sociais, devendo, portanto, ser rechaçado na íntegra, sem negociação. Essa foi a postura adotada por PT e PSOL, e os movimentos populares em geral. Entretanto, PSB, PCdoB e PDT, partidos à esquerda no espectro político do parlamento, mas que no passado recente foram vacilantes em alguns aspectos, adotaram outra tática. Sentaram para negociar e articular com as lideranças partidárias e conseguiram costurar um acordo para excluir expressamente movimentos sociais do escopo da lei. Essa tática, que a primeira vista poderia ser tachada de pelega, ou de cretinismo parlamentar por muitos, acabou logrando um resultado mais efetivo do que a mera denúncia feita pelos setores mais à esquerda. Evidentemente, este movimento poderia muito bem ter terminado em derrota e, além de não termos a contenção/exclusão de danos, possivelmente não teríamos nem algum saldo político que a tática mais a esquerda de denúncia (em tese) propicia.
Outro acontecimento que continua a pôr em evidência esta forma de pensar foi a fatídica viagem de Ciro Gomes a Paris durante o segundo turno das eleições em 2018. Longe de ser uma atitude elogiável, me chama a atenção o contorno que isso tomou. Assim que foi derrotado no primeiro turno, na noite daquele dia Ciro já foi categórico em dizer “Bolsonaro não” quando perguntado quem apoiaria no segundo turno. Seu partido, não tardou a lançar seu “apoio crítico” a Haddad. A mensagem para os seus 13 milhões de eleitores já estava evidente, mas é claro, todos esperam ver a palavra explícita da liderança. Aqui, nem vou entrar no mérito se a campanha de “vira-voto” no segundo turno tinha realmente alguma chance de sucesso ou foi apenas “otimismo da vontade” da esquerda. Mas é certo que para nós comunistas, o momento chamava ficar próximo das massas, buscando estabelecer o máximo de contato com elas. Ciro acabou não participando da campanha de Haddad e tampouco declarando seu apoio explícito. Ainda assim, Haddad recebeu cerca de 16 milhões de votos a mais no segundo turno (de onde poderiam ter vindo?) e em sua leitura (que também não entro no mérito aqui) que o antipetismo é uma força social que durará mais do que essas eleições, preservou seu nome para futuras eleições. Essa atitude de resguardar sua imagem no momento para preservar pretensões eleitorais no futuro seria absolutamente incabível para um comunista, que sabe que a chave para enfrentar o fascismo é a organização das massas populares. Mas Ciro não é, e nem nunca disse que é comunista ou quer comandar o povo a uma revolução, ou mesmo um militante antifascista. Uma coisa é fazermos uma crítica ao companheiro dizendo que seu papel de liderança popular poderia ter se fortalecido, tivesse ele tomado outra postura, mas seria injusto e um erro de análise esperar de alguém aquilo que ela nunca se propôs a ser. Ao fim e ao cabo, o não envolvimento direto de Ciro não logrou qualquer diferença substantiva na realidade, mas muitos continuam a denunciar sua “traição” como forma de anular qualquer contribuição que ele possa oferecer hoje para o campo progressista, e como forma de fugir do enfrentamento dos erros crassos cometidos pela própria esquerda.
Cabe pensar que as tarefas e respostas exigidas pela conjuntura variam para cada setor. A um grupo de militantes sem inserção parlamentar cabe mais organizar os setores que puder em torno das situações dadas, rumando para a elevação dos seus níveis de consciência. Concordar com uma postura adotada por outro setor, não significa dizer que deveríamos ter feito da mesma forma. Quando outras táticas são postas no campo da esquerda, combatê-las é necessário quando elas efetivamente apresentarem um retrocesso nos patamares de consciência e organização do povo. Não o sendo, é importante sabermos contemplar a multitude de pores teleológicos na realidade social e seguir firmes e determinados em nossa missão, mas não necessariamente empenhando forças em combater o que não precisa ser combatido. Novamente, querer isolar os outros desnecessariamente pode ser o feitiço voltando-se contra o feiticeiro.
Agitação e Análise
Por vezes podemos detectar em alguns militantes uma confusão entre dois aspectos igualmente importantes mas fundamentalmente diferentes da luta política: análise e agitação. Uma agitação carregada de análise, no pior dos casos, pode ser pouco eficiente naquilo que se propõe originalmente. Entretanto uma análise que traga elementos de agitação misturado pode mais enuviar do que esclarecer o objeto em estudo. Esse é frequentemente o caso, dado que por via de regra fazer agitação é algo mais fácil do que promover boas análises, e dessa forma essa primeira tarefa não só é mais comum para a esquerda como também costuma permear a segunda quando lhes é exigido. Filosoficamente, poderíamos pensar essa questão em termos da consagrada relação Sein-Sollen, isto é, ser e dever-ser. Não sou suficientemente versado na longa tradição filosófica ocidental para articular uma explicação perfeitamente precisa, então tomem o que falo cum grano salis. Simplificadamente, Sein é a categoria que descreve a realidade factual, seja pretérita, atual ou tendência futura; enquanto Sollen remete às orientações teleológicas que a humanidade projeta e normatiza para si mesma. Sobre a proximidade mas irrevogável diferenciação entre ser e dever-ser, podemos conferir o pensamento de David Hume, filósofo empirista escocês do século XVIII:
Em todo sistema de moral que até hoje encontrei, sempre notei que o autor segue durante algum tempo o modo comum de raciocinar, estabelecendo a existência de Deus, ou fazendo observações a respeito dos assuntos humanos, quando, de repente, surpreendo-me ao ver que, em vez das cópulas proposicionais usuais, como é e não é, não encontro uma só proposição que não esteja conectada a outra por um deve ou não deve. Essa mudança é imperceptível, porém da maior importância. Pois como esse deve ou não deve expressa uma nova relação ou afirmação, esta precisaria ser notada e explicada; ao mesmo tempo, seria preciso que se desse uma razão para algo que parece totalmente inconcebível, ou seja, como essa nova relação pode ser deduzida de outras inteiramente diferentes.[ii]
Nesse sentido, ainda que ambas categorias vivam em ligação, seria possível em nosso caso particular pensar que na atividade agitativa predomina o momento Sollen, expressando às massas uma ideia a ser construída; enquanto que na atividade analítica seria Sein o momento predominante, pois busca entender como as coisas efetivamente foram, são e tendem a ser. É claro que a boa análise abre espaço e inclusive é pré-condição para uma frutífera projeção programática e também podemos visualizar na “má agitação” uma eternização do ser imediato, aprisionando as tarefas políticas ao que está imediatamente posto, ignorando que não só o imediato como também o possível faz parte da realidade.
Ilustrativamente, pensemos na proposição já ouvida por todos “educação não é mercadoria”. Em sentido de agitação ela expressa a necessidade de que o serviço educacional não seja condicionado por relações mercantis; enquanto que, em sentido analítico, traz a tona a reflexão se a educação é ou não efetivamente uma mercadoria – na medida em que ela empiricamente é processo fruto do trabalho humano, condicionado por relações mercantis. Para exemplificar a relevância, saber se a educação é de fato uma mercadoria[iii] ou não, pode ser muito importante para entender o processo de reprodução do capital na sociedade vigente – e mesmo num processo de transição socialista onde ainda vigora a determinação do Valor e a direção da sociedade precisa saber quais são os setores econômicos vitais em sua produção. Se numa análise o Sollen predomina, o objetivo aparece como ponto de partida, é contrabandeado para o interior da análise como se fosse elemento da realidade imediata, e efetivamente nada se explica.
A separação entre agitação e análise pode não ser inclusive nada espaço-temporal. Se estamos numa manifestação de rua acirrada, os dirigentes precisam saber analisar entre si e logo agitar o povo. Se, por exemplo, estamos em um espaço como um comício, que é uma mistura entre manifestação e palestra, isso pode ficar ainda mais misturado. Ali há uma simbiose quase homogênea entre análise e agitação, pois, via de regra, busca-se empolgar e elucidar as massas ao mesmo tempo. O problema é quando, por exemplo, um locutor profere uma posição indigesta a parte do público presente. Sendo um espaço de agitação, o impulso é manifestar a contrariedade, mas também sendo um espaço de análise dever-se-ia saber escutar e ponderar.
Um exemplo extremamente ilustrativo foi o comício pró-Haddad no Ceará, no início da campanha do segundo turno de 2018, que viria a consagrar ingloriamente o jargão de Cid Gomes “O Lula tá preso, babaca!”. Por mais inadequada que possamos julgar tal colocação, os antecedentes imediatos dela são muito representativos de um modo que julgo muito comum de agir e pensar em setores da esquerda. Cid começa sua fala marcando posição de apoio e logo parte para a parte não protocolar, colocando que se algum companheiro do PT que lhe suceda na fala quiser dar um bom exemplo para o país, faria a mea culpa, uma autocrítica em relação aos erros e besteiras que seus governos fizeram. A quebra do protocolo do comício (cf. com a seção sobre padronização acima) coloca alguns dos presentes a gritar contra o orador, que com mais vigor insiste em apontar críticas (cuja justeza pode-se concordar ou não, mas trata-se de críticas de um aliado, não do inimigo) que julga que deveriam ser assimiladas pelo PT. Como reagem seus críticos interlocutores? Em coro gritam: “Luuulaaa!!” (sic). Para enfrentar um aliado que foge do discurso de apoio padronizado, a caterva impõe um poderoso grito de ordem. E, então sim, ouvimos do orador “Lula o quê? O Lula tá preso, babaca”. Pode-se arguir com certa razão do que muito do que se viu nesse episódio foi potencializado pelo jeito grosseiro de Cid de apresentar suas críticas, mas qualquer um que tenha convivido com muitos filiados petistas em espaços de massa no último período deve ser capaz de atestar que isso não foi determinante.
E, evidentemente, isso não se restringe aos companheiros petistas. A razão lacradora opera democraticamente por todo o espectro da esquerda. Que conclusão deveríamos tirar ao ver em assembleias uma disputa de posições opostas, expressas por falas eloquentes serem igualmente ovacionadas pelas mesmas pessoas? Ou, ao refazer uma votação, uma fala inflamada ser capaz de mudar o consenso de um lado para o outro? Será que o público realmente foi convencido de outra opinião ou só está reagindo como um termômetro da capacidade agitativa de quem, no momento, segura o microfone? É claro que algo tão complexo e diverso não admite conclusão unilateral, mas deve ficar claro que a agitação se sobrepondo a outros aspectos da política é, sim, um elemento real e danoso para as potencialidades de um movimento, atualmente.
Apoteose coletiva
Com o acirramento da conjuntura nos últimos anos aumentou-se a ocorrência de assembleias estudantis e outros espaços afins. A razão de existência das assembleias é garantir um espaço de discussão e deliberação mais abrangente do que a diretoria ou conselhos das entidades representativas. Entretanto, a experiência mostra que nem sempre é este o aspecto dominante de tal evento. Tomando o cuidado para não fazer generalizações incorretas, ainda é possível ver uma certa tendência em assembleias estudantis que aqui tentaremos reproduzir para analisar. O ambiente abarrotado de pessoas e uma conjuntura de inúmeros ataques são ingredientes perfeitos para mexer com as paixões dos presentes. Longe de afirmar que os aspectos emocionais são intrinsecamente prejudiciais à luta política, não podemos deixar de denunciar quando eles pontualmente o são – ou, pelo menos, são distrações irrelevantes. Refiro aqui aos gritos e palavras de ordem, que – diferentemente de espaços como atos de rua onde busca-se apresentar e difundir uma ideia à população, ou pressionar os governantes – num espaço deliberativo tem o poder apenas de transformar o espaço em briga de torcida ou, mais inocuamente ainda, numa apoteose coletiva.
Assembleias são espaços que por definição garantem a oportunidade de fala para cada presente (ainda que com limitação numérica) expressar e defender suas posições, diferentemente de uma manifestação na rua. Aqui não pretende-se, evidentemente, instituir um manual de boas maneiras para o participante da assembleia ditando quando e como deve se manifestar, apenas suscitar a reflexão sobre o quanto que gritar coletivamente em torno de uma posição durante a assembleia realmente serve para algo. Quando se trata de um grito que é basicamente consensual, como foi por exemplo um “Fora Temer”, parece que o único efeito obtido em gastar alguns segundos gritando isso é perder alguns segundos, dado que ali basicamente todos já pensam dessa forma. Quando o grito é em torno de uma posição não consensual, isso deixa de ser perda de tempo para se tornar realmente nocivo ao fluxo do debate. Ora, se se discute por exemplo a adesão de greve, ou a instalação de uma ocupação, que na sua essência nada mais são do que instrumentos táticos para alguma finalidade, um setor fustigar sonoramente o recinto com gritos de “greve” serve apenas para acuar aqueles que acreditam que aquele não é o momento para lançar mão de tal dispositivo tático. É evidente que pela natureza de uma assembleia, ela jamais deixará de ser um espaço de pressão. Quem lá fala deve estar preparado para ter suas ideias criticadas. Mas uma coisa é a crítica leal, mesmo que impiedosa feita por uma série de pessoas, e outra é a coerção coletiva à posições dissonantes. Se isso vira uma constante, vários grupos deverão diminuir tendencialmente sua participação nesses espaços, vendo que eles não fornecem o prometido local para debate de ideias, e nesse caso a representatividade (de onde radica a sua força política) das assembleias tende a diminuir.
Se por um lado imaginar uma assembleia estudantil na qual os gritos e ovações não irrompam ocasionalmente seria idealismo, por outro beira a futilidade quando os grupos e partidos se organizam especificamente para aplaudir, reagir intensamente e expressar reações afins a falas de pessoas de seu campo. Antes de entrar no jogo dos demais setores que empregam sistematicamente a agitação como forma de constrangimento coletivo, ou de ampliar artificialmente o apoio a sua posição, deveria-se fazer o contrário: intervir para desescalar a briga de torcidas e dar mais ênfase ao conteúdo político-programático do que se discute. A preocupação de obter visibilidade para a organização partidária durante as assembleias deve ser muito bem ponderada. Entre as organizações pode ser importante saber o que cada uma das co-disputantes pensa, mas para a maior parte dos presentes o que se vê é a sucessão de várias falas muito parecidas. Que tipo de pessoa que se busca aproximar de uma organização a partir de falas inflamadas que não seria também aproximada por seus textos distribuídos virtualmente ou fisicamente no recinto?
Militância e Redes Sociais
Não é algo tão próximo aos tópicos anteriores, mas creio que cabe uma breve reflexão aqui porque por ora não chega a ser um assunto que eu consiga dedicar um texto próprio. O advento das redes sociais na internet, reconhecidamente, vem mudando a forma como as pessoas interagem entre si. Nem tanto na pitoresca descrição de que os jovens não largam o celular para nada, mas sim na forma de acessar e transmitir informação.
Ao fornecer um espaço para se fazer política é plausível que elas possam também estar mudando alguns aspectos de como concebemos nossa própria atividade. A possibilidade de falar com milhares ou mesmo milhões de pessoas é encantadora para quem, como nós, não dispõe de monopólios midiáticos a seu dispor para veicular suas posições. A questão das redes como uma forma de termômetro da realidade possivelmente já foi em boa parte superada, sabendo que número de confirmações num evento, por exemplo, não significa grande coisa para o comparecimento real. Por outro lado, o advento do evento facebookiano parece ter marcado o movimento estudantil de tal forma que, em muitos casos, para os organizadores de uma atividade esta não fica devidamente confirmada enquanto não existir um evento no facebook.
Além disso, é possível vermos uma tendência das redes sociais evoluírem num sentido mais ou menos claro de enxugamento da capacidade de organizar e publicizar conteúdo também chama a atenção. As comunidades do Orkut com seu sistema de fóruns deu lugar ao Facebook com grupos menos organizados e um sistema de feed dinâmico, e hoje vemos cada vez mais o fortalecimento do twitter com sua limitação de caracteres e do Instagram que fornece menos espaço para discussão ainda, principalmente com o advento dos stories – alta expressão da efemeridade da comunicação. Se isso é uma tendência fortuita ou se possui uma etiologia social histórica por trás é difícil saber, mas acredito que, de toda forma, é válida a reflexão sobre como e quanto elas influenciam nossa forma de pensar politicamente, seja como indivíduos, seja como coletivo.
Conclusão
Encerro minhas reflexões com as palavras que tomo emprestadas de um camarada:
“Acredito que falte, para a esquerda brasileira, uma compreensão materialista da realidade, o que acaba culminando numa débil teoria do Estado e sua consequente confusão prática. O processo revolucionário é o trabalho de colocar um Estado (de tipo diferente) no lugar de outro. Esse processo começa antes da tomada efetiva do poder e admite a coexistência de legalidades diversas num mesmo território. Completa-se, porém, com a imposição efetiva de novas normas sociais que subvertem as formas de interação humana, mormente no âmbito econômico. Essa imposição pode ser mais ou menos violenta a depender dos aparatos ideológicos dominados e utilizados. De toda forma, em última instância, é a força que garante a “potência” do novo poder.
Muitos dos que hoje se dizem revolucionários têm legitimamente vontade de mudar o estado de coisas. Assumindo que essa vontade não seja momentânea – coisa que “dá e passa” – é de se pensar ainda qual estado de coisas essa pessoa analisa como atual, pois é isso que define o que ela julgará necessário pôr no lugar. O campo do idealismo é perigoso, pode formar imagens fantasiosas, tais como as que muitos direitistas pintam o Brasil e o cenário mundial. Com más análises e números imprecisos, pode-se incorrer em erros parecidos, ainda que dotados de boas intenções.
O fato é que sem tática ou estratégias precisas, o mundo se pinta como infinitos momentos sucessivos. Importa apenas aproveitar o momento e “lacrar”. Enunciar que se está certo no maior número de momentos possíveis. Assim, quem estiver certo mais vezes “ganha”, aglutina seus setores e combate os demais, mesmo aliados, principalmente os que potencialmente podem lhe retirar sua base. Pois claro, normalmente os destinatários da “lacração” são aqueles que comungarão da mesma iconografia e de frases curtas, da “cultura do nicho”.
*Henrique Martins é ativista do movimento comunista.
Notas
[i] “Gramsci – Poder, Política, partido”, org. Emir Sader, p.55
[ii] HUME, David. Tratado da Natureza Humana. Tradução de Débora Danowiski. Livro III, Parte I, Seção II. São Paulo, Editora UNESP, 2000, p. 509
[iii]Dilema ilustrativo, pois de fato ela não é, uma vez que para Marx mercadoria é uma coisa, um objeto externo.