Por MARILENA CHAUI*
Há no Brasil um mito poderoso, o da não violência, que oculta o autoritarismo social
Estamos acostumados a aceitar a definição liberal da democracia como “regime da lei e da ordem para a garantia das liberdades individuais”. Visto que o pensamento e a prática liberais identificam liberdade e competição, essa definição da democracia significa em primeiro lugar que a liberdade se reduz à competição econômica da chamada “livre iniciativa” e à competição política entre partidos que disputam eleições; em segundo, que a noção de regime da lei e da ordem indica que há uma redução da lei à potência judiciária para limitar o poder político, defendendo a sociedade contra a tirania, pois a lei garante os governos escolhidos pela vontade da maioria; em terceiro, significa que há uma identificação entre a ordem e a potência dos poderes executivo e judiciário para conter os conflitos sociais, impedindo, por meio da repressão e da censura, sua explicitação e desenvolvimento; e, em quarto lugar, que, embora a democracia apareça justificada como “valor” ou como “bem”, é encarada, de fato, pelo critério da eficácia, medida, no plano legislativo, pela ação dos representantes, entendidos como políticos profissionais, e, no plano do poder executivo, pela atividade de uma elite de técnicos competentes aos quais cabe a direção do Estado, ou a afirmação de que a democracia é o governo de muitos por poucos.
A democracia é, assim, reduzida a um regime político eficaz, baseado na ideia de cidadania organizada em partidos políticos, e se manifesta no processo eleitoral de escolha dos representantes, na rotatividade dos governantes e nas soluções técnicas para os problemas econômicos e sociais.
Ora, há, na prática democrática e nas ideias democráticas, uma profundidade e uma verdade muito maiores do que o liberalismo percebe e deixa perceber.
Que significam as eleições? Muito mais do que a mera rotatividade de governos ou a alternância no poder, elas simbolizam o essencial da democracia, ou seja, que o poder não se identifica com os ocupantes do governo, não lhes pertence, mas é sempre um lugar vazio que, periodicamente, os cidadãos preenchem com representantes, podendo revogar seus mandatos se não cumprirem o que lhes foi delegado para representar. Em outras palavras, a soberania é popular, como a própria palavra significa, pois, em grego, demos é o povo politicamente organizado e kratós, o poder; portanto, poder do povo.
Por isso mesmo é também característica da democracia que somente nela se torne claro o princípio republicano da separação entre o público e o privado. De fato, com a ideia e a prática de soberania popular, nela se distinguem o poder e o governo – o primeiro pertence aos cidadãos, que o exercem instituindo as leis e as instituições políticas ou o Estado; o segundo é uma delegação de poder, por meio de eleições, para que alguns (legislativo, executivo, judiciário) assumam a direção da coisa pública. Isso significa como indica a expressão latina res publica que nenhum governante pode identificar-se com o poder e apropriar-se privadamente dele.
Que significam as ideias de situação e oposição, maioria e minoria, cujas vontades devem ser respeitadas e garantidas pela lei? Elas vão muito além dessa aparência. Significam que a sociedade não é uma comunidade una e indivisa voltada para o bem comum obtido por consenso, mas, ao contrário, que está internamente dividida, que as divisões são legítimas e devem expressar-se publicamente.
Da mesma maneira, as ideias de igualdade e liberdade como direitos civis dos cidadãos vão muito além de sua regulamentação jurídica formal. Significam que os cidadãos são sujeitos de direitos e que, onde tais direitos não existam nem estejam garantidos, tem-se o direito de lutar por eles e exigi-los. É esse o cerne da democracia: a criação de direitos. E por isso mesmo, como criação de direitos, está necessariamente aberta aos conflitos e às disputas. Em outras palavras, a democracia é única forma política na qual o conflito é considerado legítimo.
O que é um direito? Um direito difere de uma necessidade ou carência e de um interesse. De fato, uma necessidade ou carência é algo particular e específico. Alguém pode ter necessidade de água, outro, de comida. Um grupo social pode ter carência de transportes, outro, de hospitais. Há tantas necessidades quantos indivíduos, tantas carências quanto grupos sociais. Um interesse também é algo particular e específico, dependendo do grupo ou da classe social. Necessidades ou carências, assim como interesses, tendem a ser conflitantes porque exprimem as especificidades de diferentes grupos e classes sociais. Um direito, porém, ao contrário de necessidades, carências e interesses, não é particular e específico, mas geral e universal, seja porque é válido para todos os indivíduos, grupos e classes sociais, seja porque é universalmente reconhecido como válido para um grupo social (como é caso das chamadas “minorias”). Ora, isso significa que sob carências, necessidades e interesses há algo que as explica e determina, isto é, o direito. Assim, por exemplo, a carência de água e de comida manifesta algo mais profundo: o direito à vida. A carência de moradia ou de transporte também manifesta algo mais profundo: o direito a condições de vida dignas. Da mesma maneira, o interesse, por exemplo, dos estudantes exprime algo mais profundo: o direito à educação e à informação. Em outras palavras, se tomarmos as diferentes carências e os diferentes interesses veremos que sob eles estão pressupostos direitos pelos quais se luta.
Justamente porque opera com o conflito e com a criação de direitos, a democracia não se confina a um setor específico da sociedade no qual a política se realizaria – o Estado –, mas determina a forma das relações sociais e de todas as instituições, ou seja, é o único regime político que é também a forma social da existência coletiva. Ela institui a sociedade democrática. Dizemos, então, que uma sociedade – e não um simples regime de governo – é democrática quando, além de eleições, partidos políticos, divisão dos três poderes da república, distinção entre o público e o privado, respeito à vontade da maioria e das minorias, institui algo mais profundo, que é condição do próprio regime político, ou seja, quando institui direitos e que essa instituição é uma criação social, de tal maneira que a atividade democrática social realiza-se como um poder social que determina, dirige, controla e modifica a ação estatal e o poder dos governantes.
Essa dimensão criadora torna-se visível quando consideramos os três grandes direitos que definiram a democracia desde sua origem, isto é, a igualdade, a liberdade e a participação nas decisões.
A igualdade declara que, perante as leis e os costumes da sociedade política, todos os cidadãos possuem os mesmos direitos e devem ser tratados da mesma maneira. Ora, a evidência histórica nos ensina que a mera declaração do direito à igualdade não faz existir os iguais. Seu sentido e importância encontram-se no fato de que ela abre o campo para a criação da igualdade por meio das exigências, reivindicações e demandas dos sujeitos sociais. Por sua vez, a liberdade declara que todo cidadão tem o direito de expor em público seus interesses e suas opiniões, vê-los debatidos pelos demais e aprovados ou rejeitados pela maioria, devendo acatar a decisão tomada publicamente. Ora, aqui também, a simples declaração do direito à liberdade não a institui concretamente, mas abre o campo histórico para a criação desse direito pela prática política. Tanto é assim que a modernidade agiu de maneira a ampliar a ideia de liberdade: além de significar liberdade de pensamento e de expressão, também passou a significar o direito à independência para escolher o ofício, o local de moradia, o tipo de educação, o cônjuge etc. As lutas políticas fizeram com que, na Revolução Francesa de 1789, um novo sentido de liberdade viesse acrescentar-se aos anteriores quando se determinou que todo indivíduo é inocente até prova em contrário, que a prova deve ser estabelecida perante um tribunal e que a liberação ou punição devem ser dadas segundo a lei. A seguir, com os movimentos socialistas, acrescentou-se à ideia de liberdade o direito de lutar contra todas as formas de tirania, censura e tortura e contra todas as formas de exploração e dominação social, econômica, cultural e política. O mesmo movimento criador se deu com o direito à participação no poder, que declara que todos os cidadãos têm o direito de participar das discussões e deliberações públicas, votando ou revogando decisões. O significado desse direito só se tornou explícito com as lutas democráticas modernas, que evidenciaram a afirmação que, do ponto de vista político, todos os cidadãos têm competência para opinar e decidir, pois a política não é uma questão técnica (eficácia administrativa e militar) nem científica (conhecimentos especializados sobre administração e guerra), mas ação coletiva, isto é, decisão coletiva quanto aos interesses e direitos da própria sociedade.
Em suma, é possível observar que a abertura do campo dos direitos, que define a democracia, explica porque as lutas populares por igualdade e liberdade puderam ampliar os direitos políticos (ou civis) e, a partir destes, criar os direitos sociais – trabalho, moradia, saúde, transporte, educação, lazer, cultura –, os direitos das chamadas “minorias” – mulheres, idosos, negros, homossexuais, crianças, índios –; o direito à segurança planetária – as lutas ecológicas e contra as armas nucleares; e, hoje, o direito contra as manipulações da engenharia genética. Por seu turno, as lutas populares por participação política ampliaram os direitos civis: direito de opor-se à tirania, à censura, à tortura, direito de fiscalizar o Estado por meio de organizações da sociedade (associações, sindicatos, movimentos sociais, partidos políticos) e direito à informação pela publicidade das decisões estatais.
A sociedade democrática institui direitos pela abertura do campo social à criação de direitos reais, à ampliação de direitos existentes e à criação de novos direitos. Eis porque podemos afirmar, em primeiro lugar, que a democracia é a única sociedade e o único regime político que considera o conflito legítimo. O conflito não é obstáculo; é a constituição mesma do processo democrático. Essa talvez seja uma das maiores originalidades da democracia. Não só trabalha politicamente os conflitos de necessidades, carências e interesses (disputas entre os partidos políticos e eleições de governantes pertencentes a partidos opostos), mas procura instituí-los como direitos e, como tais, exige que sejam reconhecidos e respeitados. Mais do que isso. Na sociedade democrática, indivíduos e grupos organizam-se em associações, movimentos sociais e populares, classes se organizam em sindicatos e partidos, criando um poder social que, direta ou indiretamente, limita o poder do Estado.
Por todos esses elementos que a constituem, a democracia é a sociedade verdadeiramente histórica, isto é, aberta ao tempo, ao possível, às transformações e ao novo. Com efeito, pela criação de novos direitos e pela existência dos contra-poderes sociais, a sociedade democrática não está fixada numa forma para sempre determinada, ou seja, não cessa de trabalhar suas divisões, suas diferenças internas, seus conflitos e por isso, a cada passo, exige a ampliação da representação pela participação, o que leva ao surgimento de novas práticas, que garantam a participação como ato político efetivo, o qual aumenta a cada criação de um novo direito. Em outras palavras, só há democracia com a ampliação contínua da cidadania. Por esse motivo, a cidadania, que nas chamadas democracias liberais se define apenas pelos direitos civis, numa democracia social real, ao contrário, amplia o sentido dos direitos, abrindo um campo de lutas populares pelos direitos econômicos, sociais e culturais, opondo-se aos interesses e privilégios da classe dominante. A democracia propicia uma cultura da cidadania.
Dificuldades impostas pelo capitalismo
Todavia, no capitalismo, são imensos os obstáculos à democracia, pois o conflito dos interesses é, na verdade, expressão do fundamento mesmo da divisão social, ou seja, a contradição entre o capital e o trabalho e, portanto, a exploração e dominação de uma classe social por outra. Assim, por exemplo, se é verdade que as lutas populares nos países do capitalismo central ou metropolitano ampliaram os direitos dos cidadãos e que a exploração dos trabalhadores diminuiu muito, sobretudo com o Estado do bem-estar social, também é verdade, no entanto, que houve um preço a pagar: a exploração mais violenta do trabalho pelo capital recaiu sobre os trabalhadores dos países da periferia do sistema. Além disso, também é inegável, em toda parte, a fragilidade dos direitos políticos e sociais sob a ação do neoliberalismo, que opera pelo encolhimento do espaço público e alargamento do espaço privado ou do mercado, sob a forma da privatização e da chamada “desregulação econômica”. A privatização não se refere apenas às empresas estatais e ao afastamento do Estado nas decisões econômicas, mas se refere sobretudo ao abandono dos investimentos dos fundos públicos nos serviços e direitos sociais, que passam a depender das leis do mercado (privatização da educação, da saúde, dos transportes, da habitação, da cultura etc). Ao destinar os fundos públicos ao aumento da liquidez do capital para o desenvolvimento das novas tecnologias, o Estado neoliberal pôs em risco todos os direitos econômicos e sociais conquistados pelas lutas populares e socialistas. Além disso, a forma assumida pela economia destruiu os pilares do trabalho produtivo e tornou o desemprego estrutural. Assim, tanto a ação do Estado como a da forma econômica fizeram com que o direito à igualdade fosse substituído por uma desigualdade jamais vista, todas as sociedades se dividindo entre bolsões de miséria e bolsões de opulência.
Direito e liberdade encontram os obstáculos impostos pela desigualdade econômica, social, cultural e política e pela privatização da informação pelos oligopólios que dominam os meios de comunicação. As tecnologias eletrônicas de vigilância e de controle operam em escala planetária e cada cidadão de qualquer país tem seus dados pessoais e profissionais concentrados em dois organismos supranacionais (um deles nos Estados Unidos e o outro no Japão) que operam como uma polícia planetária.
O direito à participação política também encontra obstáculos, sob os efeitos da divisão social entre dirigentes e executantes ou a ideologia da competência técnico-científica, isto é, a afirmação de que quem possui conhecimentos científicos e técnicos está naturalmente dotado de poder de mando e direção. Iniciada na esfera da produção econômica, essa ideologia propagou-se para a sociedade inteira que vê, assim, a divisão social das classes ser sobredeterminada pela divisão entre “competentes” que, supostamente, sabem e “incompetentes” que nada sabem e apenas executam ordens. Fortalecida pelos meios de comunicação de massa, que a estimulam diariamente, essa ideologia invadiu a política, que passou a ser considerada uma atividade reservada para técnicos ou administradores políticos supostamente competentes e não uma ação coletiva de todos os cidadãos. Dessa maneira, não só o direito à representação política (ser representante) diminui porque se restringe aos “competentes”, os quais, evidentemente, pertencem à classe economicamente dominante, que, assim, dirige a política segundo seus interesses e não de acordo com a universalidade dos direitos. Enfim, não podemos minimizar o obstáculo ao direito à participação política posto pelos meios de comunicação de massa – basta ver programas de televisão, ouvir os de rádio e ler as colunas dos jornais para comprovar a presença dessa ideologia, pois todos os assuntos, dos mais importantes aos mais triviais são “explicados” por especialistas, supostamente competentes, ao restante da sociedade, supostamente incompetente. Os meios de comunicação inviabilizam a comunicação porque inviabilizam o direito à informação – não só o direito de recebê-la como ainda o de produzi-la e fazê-la circular. Na medida em que as mídias são empresas capitalistas, produzem (não transmitem) informações de acordo com os interesses privados de seus proprietários e das alianças econômicas e políticas destes com grupos detentores de poder econômico e político, criando obstáculos ao direito à verdadeira participação política.
A essas dificuldades postas pelo capitalismo precisamos, agora, acrescentar as dificuldades específicas que a sociedade brasileira coloca para a instituição de uma sociedade democrática.
O mito da não violência
Há no Brasil um mito poderoso, o da não violência brasileira, isto é, a imagem de um povo generoso, alegre, sensual, solidário que desconhece o racismo, o machismo e a homofobia, que respeita as diferenças étnicas, religiosas e políticas, não discrimina as pessoas por sua classe social, etnia, religião ou escolha sexual etc. Nossa autoimagem é a de um povo ordeiro e pacífico, alegre e cordial, mestiço e incapaz de discriminações étnicas, religiosas ou sociais, acolhedor para os estrangeiros, generoso para com os carentes, orgulhoso das diferenças regionais e, evidentemente, destinado a um grande futuro.
Por que emprego a palavra “mito” e não o conceito de ideologia para referir-me à maneira como a não violência é imaginada no Brasil? Emprego “mito” dando-lhe os seguintes traços:
1 – como indica a palavra grega mythos, o mito é uma narrativa da origem reiterada em inúmeras narrativas derivadas que repetem a matriz da primeira narrativa a qual, porém, já uma variante de uma outra narrativa cuja origem se perdeu. Em suma, o mito é narrativa da origem sem que haja uma narrativa originária;
2 – o mito opera com antinomias, tensões e contradições que não podem ser resolvidas sem uma profunda transformação da sociedade no seu todo e que por isso são transferidas para uma solução simbólica e imaginária que torna suportável e justificável a realidade. Em suma, o mito nega e justifica a realidade negada por ele;
3- o mito cristaliza-se em crenças que são interiorizadas num grau tal que não são percebidas como crenças e sim tidas não só como uma explicação da realidade, mas como a própria realidade. Em suma, o mito substitui a realidade pela crença na realidade narrada por ele e torna invisível a realidade existente; d) o mito resulta de ações sociais e produz como resultado outras ações sociais que o confirmam, isto é, um mito produz valores, ideias, comportamentos e práticas que o reiteram na e pela ação dos membros da sociedade. Em suma, o mito não é um simples pensamento, mas formas de ação;
4 – e o mito tem uma função apaziguadora e repetidora, assegurando à sociedade sua autoconservação sob as transformações históricas. Isto significa que um mito é o suporte de ideologias: ele as fabrica para que possa, simultaneamente, enfrentar as mudanças históricas e negá-las, pois, cada forma ideológica está encarregada de manter a matriz mítica inicial. Em suma, a ideologia é a expressão temporal de um mito fundador que a sociedade narra a si mesma.
Em resumo, estou tomando a noção de mito no sentido antropológico de solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no plano simbólico e muito menos no plano real. Falo também em mito na acepção psicanalítica, ou seja, como impulso à repetição por impossibilidade de simbolização e, sobretudo, como bloqueio à passagem ao real. Um mito é fundador quando não cessa de encontrar novos meios para exprimir-se, novas linguagens, novos valores e ideias, de tal modo que quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo. No nosso caso, o mito fundador é exatamente o da não violência essencial da sociedade brasileira e cuja elaboração remonta ao período da descoberta e conquista da América e do Brasil.
Muitos indagarão como o mito da não violência brasileira pode persistir sob o impacto da violência real, cotidiana, conhecida de todos e que, nos últimos tempos, é também ampliada por sua divulgação e difusão pelos meios de comunicação de massa. Ora, é justamente no modo de interpretação da violência que o mito encontra meios para conservar-se. O mito da não violência permanece porque graças a ele admite-se a existência de fato da violência e pode-se, ao mesmo tempo, fabricar explicações para denegá-la no instante mesmo em que é admitida. Para isso, precisamos examinar os mecanismos ideológicos de conservação da mitologia.
O primeiro mecanismo é o da exclusão: afirma-se que a nação brasileira é não violenta e que, se houver violência, esta é praticada por gente que não faz parte da nação (mesmo que tenha nascido e viva no Brasil). O mecanismo da exclusão produz a diferença entre um nós-brasileiros-não-violentos e um eles-não-brasileiros-violentos. “Eles” não fazem parte do “nós”.
O segundo mecanismo é o da distinção: distingue-se o essencial e o acidental, isto é, por essência, os brasileiros não são violentos e, portanto, a violência é acidental, um acontecimento efêmero, passageiro, uma “epidemia” ou um “surto” localizado na superfície de um tempo e de um espaço definidos, superável e que deixa intacta nossa essência não violenta.
O terceiro mecanismo é jurídico: a violência fica circunscrita ao campo da delinquência e da criminalidade, o crime sendo definido como ataque à propriedade privada (furto, roubo e latrocínio, isto é, roubo seguido de assassinato) e como crime organizados (tráfico de drogas, armas e pessoas). Esse mecanismo permite, por um lado, determinar quem são os “agentes violentos” (de modo geral, os pobres – basta ver as prisões e mortes dos membros do crime organizado, isto é, nunca se vê aprisionado alguém verdadeiramente poderoso e opulento) e legitimar a ação (esta sim, violenta) da polícia contra a população pobre, os negros, os índios, as crianças sem infância, os moradores de rua e os favelados. A ação policial pode ser, às vezes, considerada violenta, recebendo o nome de “chacina” ou “massacre” quando, de uma só vez e sem motivo, o número de assassinados é muito elevado. No restante das vezes, porém, o assassinato por policiais é considerado normal e natural, uma vez que se trata da proteger o “nós” contra o “eles”.
O quarto mecanismo é sociológico: atribui-se a “epidemia” de violência a um momento definido do tempo, aquele no qual se realiza a “transição para a modernidade” das populações que migraram do campo para a cidade e das regiões mais pobres (norte e nordeste) para as mais ricas (sul e sudeste). A migração causaria o fenômeno temporário da anomia, no qual a perda das formas antigas de sociabilidade ainda não foram substituídas por novas, fazendo com que os migrantes pobres tendam a praticar atos isolados de violência que desaparecerão quando estiver completada a “transição”. Aqui, não só a violência é atribuída aos pobres e desadaptados, como ainda é consagrada como algo temporário ou episódico.
Finalmente, o último mecanismo é o da inversão do real, graças à produção de máscaras que permitem dissimular comportamentos, ideias e valores violentos como se fossem não violentos. Assim, por exemplo, o machismo é colocado como proteção natural à natural fragilidade feminina proteção inclui a ideia de que as mulheres precisam ser protegidas de si próprias, pois, como todos sabem o estupro é um ato feminino de provocação e sedução; o paternalismo branco é visto como proteção para auxiliar a natural inferioridade dos negros; a repressão contra os homossexuais é considerada proteção natural aos valores sagrados da família e, agora, da saúde e da vida de todo o gênero humano ameaçado pela Aids, trazida pelos degenerados; a destruição do meio ambiente é orgulhosamente vista como sinal de progresso e civilização etc.
Em resumo, a violência não é percebida ali mesmo onde se origina e ali mesmo onde se define como violência propriamente dita, pois violência é toda prática e toda ideia que reduza um sujeito à condição de coisa, que viole interior e exteriormente o ser de alguém, que perpetue relações sociais de profunda desigualdade econômica, social e cultural.
Mais do que isso. A sociedade não percebe que as próprias explicações oferecidas são violentas porque está cega ao lugar efetivo de produção da violência, isto é, a estrutura da sociedade brasileira. Dessa maneira, as desigualdades econômicas, sociais e culturais, as exclusões econômicas, políticas e sociais, a corrupção como forma de funcionamento das instituições, o racismo, o machismo, a homofobia, a intolerância religiosa e política não são consideradas formas de violência, isto é, a sociedade brasileira não é percebida como estruturalmente violenta e a violência aparece como um fato esporádico de superfície. Em outras palavras, a mitologia e os procedimentos ideológicos fazem com que a violência que estrutura e organiza as relações sociais brasileiras não possa ser percebida.
O autoritarismo social
Conservando as marcas da sociedade colonial escravista, a sociedade brasileira é marcada pelo predomínio do espaço privado sobre o público e, tendo o centro na hierarquia familiar, é fortemente hierarquizada em todos os seus aspectos: nela, as relações sociais e intersubjetivas são sempre realizadas como relação entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece. As diferenças e assimetrias são sempre transformadas em desigualdades que reforçam a relação de mando e obediência. O outro jamais é reconhecido como sujeito nem como sujeito de direitos, jamais é reconhecido como subjetividade nem como alteridade. As relações, entre os que julgam iguais, são de “parentesco”, isto é, de cumplicidade; e, entre os que são vistos como desiguais, o relacionamento toma a forma do favor, da clientela, da tutela ou da cooptação, e, quando a desigualdade é muito marcada, assume a forma da opressão. Em suma: micro-poderes capilarizam toda a sociedade, de sorte que o autoritarismo da e na família se espraia para a escola, as relações amorosas, o trabalho, a mídia, o comportamento social nas ruas, o tratamento dado aos cidadãos pela burocracia estatal, e vem exprimir-se, por exemplo, no desprezo do mercado pelos direitos do consumidor (coração da ideologia capitalista) e na naturalidade da violência policial.
Podemos resumir, simplificadamente, os principais traços de nosso autoritarismo social considerando que a sociedade brasileira se caracteriza pelos seguintes aspectos:
• estruturada segundo o modelo do núcleo familiar (isto é, do poder do chefe, seja este o pai ou a mãe), nela se impõe a recusa tácita (e, às vezes explícita) para fazer operar o mero princípio liberal da igualdade formal e a dificuldade para lutar pelo princípio socialista da igualdade real: as diferenças são postas como desigualdades e, estas, como inferioridade natural (no caso de mulheres, trabalhadores, negros, índios, migrantes, idosos) ou como monstruosidade (no caso de homossexuais);
• estruturada a partir das relações familiares de mando e obediência, nela se impõe a recusa tácita (e às vezes explícita) de operar com o mero princípio liberal da igualdade jurídica e a dificuldade para lutar contra formas de opressão social e econômica: para os grandes, a lei é privilégio; para as camadas populares, repressão. A lei não figura o polo público do poder e da regulação dos conflitos, nunca define direitos e deveres dos cidadãos porque a tarefa da lei é a conservação de privilégios e o exercício da repressão. Por este motivo, as leis aparecem como inócuas, inúteis ou incompreensíveis, feitas para serem transgredidas e não para serem transformadas. O poder judiciário é claramente percebido como distante, secreto, representante dos privilégios das oligarquias e não dos direitos da generalidade social.
• a indistinção entre o público e o privado não é uma falha ou um atraso, mas é, antes, a forma mesma de realização da sociedade e da política: não apenas os governantes e parlamentares praticam a corrupção sobre os fundos públicos, mas não há a percepção social de uma esfera pública das opiniões, da sociabilidade coletiva, da rua como espaço comum, assim como não há a percepção dos direitos à privacidade e à intimidade. Do ponto de vista dos direitos sociais, há um encolhimento do público; do ponto de vista dos interesses econômicos, um alargamento do privado, e é exatamente por isso que, entre nós, a figura do “Estado forte” sempre foi tida como natural. Além disso, o encolhimento do público e o alargamento do privado fazem com que nos caia como uma luva o neoliberalismo.
• forma peculiar de evitar o trabalho dos conflitos e contradições sociais, econômicas e políticas enquanto tais, uma vez que conflitos e contradições negam a imagem mítica da boa sociedade indivisa, pacífica e ordeira. Não são ignorados e sim recebem uma significação precisa: conflitos e contradições são considerados sinônimo de perigo, crise, desordem e a eles se oferece uma única resposta: a repressão policial e militar, para as camadas populares, e o desprezo condescendente, para os opositores em geral. Em suma, a sociedade autoorganizada é vista como perigosa para o Estado e para o funcionamento “racional” do mercado.
• forma peculiar de bloquear a esfera pública da opinião como expressão dos interesses e dos direitos de grupos e classes sociais diferenciados e\ou antagônicos. Esse bloqueio não é um vazio ou uma ausência, mas um conjunto de ações determinadas que se traduzem numa maneira determinada de lidar com a esfera da opinião: a mídia monopoliza a informação, e o consenso é confundido com a unanimidade, de sorte que a discordância é posta como ignorância, atraso ou ignorância.
• naturalização das desigualdades econômicas e sociais, do mesmo modo que há naturalização das diferenças étnicas, postas como desigualdades raciais entre superiores e inferiores, das diferenças religiosas e de gênero, bem como naturalização de todas formas visíveis e invisíveis de violência.
• fascínio pelos signos de prestígio e de poder: uso de títulos honoríficos sem qualquer relação com a possível pertinência de sua atribuição, o caso mais corrente sendo o uso de “Doutor” quando, na relação social, o outro se sente ou é visto como superior ) “doutor” é o substituto imaginário para os antigos títulos de nobreza; manutenção de criadagem doméstica cujo número indica aumento de prestígio e de status etc.
O autoritarismo está de tal modo interiorizado nos corações e mentes que ouvimos com naturalidade a pergunta: “sabe com quem está falando?” sem nos espantarmos de que isso seja o modo fundamental de estabelecer a relação social como relação hierárquica. Da mesma maneira, alguém pode usar a frase “um negro de alma branca” e não ser considerado racista. Pode referir-se aos serviçais domésticos com a frase “uma empregada ótima: conhece seu lugar” e considerar-se isento de preconceito de classe. Pode referir-se a um assalariado com a frase “um empregado de toda confiança porque nunca rouba” e considerar que não existe luta de classes e que dela não participa. Pode dizer “uma mulher perfeita, pois não trocou o lar pela indignidade de trabalhar fora” e não ser considerado machista.
A desigualdade salarial entre homens e mulheres, entre brancos e negros, a exploração do trabalho infantil e dos idosos são consideradas normais. A existência dos sem-terra, dos sem-teto, dos desempregados é atribuída à ignorância, à preguiça e à incompetência dos “miseráveis”. A existência de crianças de rua é vista como “tendência natural dos pobres à criminalidade”. Os acidentes de trabalho são imputados à incompetência e ignorância dos trabalhadores. As mulheres que trabalham (se não forem professoras ou assistentes sociais) são consideradas prostitutas em potencial e as prostitutas, degeneradas, perversas e criminosas, embora, infelizmente, indispensáveis para conservar a santidade da família.
Em outras palavras, a sociedade brasileira é oligárquica e está polarizada entre a carência absoluta das camadas populares e o privilégio absoluto das camadas dominantes e dirigentes. Ora, como vimos, uma carência é sempre particular e embora pressuponha um direito, não alcança a universalidade deste último. Por outro lado, um privilégio é, por definição, sempre particular e deixaria de ser privilégio se se transformasse num direito universal. A polarização entre a carência e o privilégio, expressão acabada da estrutura oligárquica, autoritária e violenta de nossa sociedade nos permitem avaliar o quanto tem sido difícil e complicado instituir uma sociedade democrática no Brasil e dar pleno sentido à cidadania.
*Marilena Chaui é Professora Emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Autora, entre outros livros, de Contra a servidão voluntária (Autêntica).
Publicado originalmente na revista Comunicação & Informação, v. 15, n. 2, jul./dez. 2012.