Por HENRI ACSELRAD*
O meio-ambiente é atacado e submetido a poderes que passam a ser incontrolados e mediados exclusivamente pela lógica da grande propriedade privada
Na sequência de ações de desmontagem da máquina pública de proteção ao meio ambiente, o governo, através de decreto de maio de 2019, esvaziou o Conselho Nacional de Meio Ambiente e o transformou numa simples correia de transmissão do anti-ambientalismo governamental. A intenção foi a de afirmar o descompromisso do grupo no poder para com a defesa das florestas, da qualidade do ar e das águas, e, ao mesmo tempo, desfazer o papel dos conselhos, concebidos para ouvir, ainda que de forma minoritária, a perspectiva de organizações da sociedade civil a respeito das políticas públicas. O esvaziamento da composição do Conama, em particular da presença de representantes da sociedade civil não empresarial, é que permitiu que o governo tivesse nele proposto e votado, em 28 de setembro último, com alegações largamente inconvincentes de “racionalização normativa”, a revogação de três resoluções que são decisivas para proteger a Mata Atlântica do avanço dos interesses predatórios da especulação imobiliária. Eis uma ação exemplar das intenções anti-ambientais do governo.
Em meados dos anos 1970, com a difusão das preocupações ambientais, os Estados nacionais foram, em todo o mundo, chamados a regular os efeitos recíprocos – mediados pelo ar, águas e sistemas vivos – das distintas atividades desenvolvidas em seus territórios. Tratou-se, a partir de então, de governar as relações entre estas atividades e os ecossistemas que são apropriados por distintos usos. No trato desta multiplicidade, várias estratégias foram se desenhando. Umas propugnaram o estabelecimento de controles e limites governamentais aos impactos das atividades; outras afirmaram sua crença na “conversão ambiental” das empresas e do mercado; outras propuseram a presença das organizações da sociedade na definição dos limites a serem impostos aos impactos ambientais dos projetos econômicos. No Brasil, a definição do meio ambiente como “bem de uso comum do povo”, pela Constituição de 1988, justificou a adoção de um discurso democratizante que atribuiu à sociedade responsabilidades compartilhadas no tratamento dos problemas ambientais.
Na formulação das políticas governamentais de meio ambiente, a criação do Conama, em 1981, e sua operação iniciada em 1984, é um exemplo da abertura de espaços à participação de organizações da sociedade engajadas na proteção do meio ambiente. Representantes do regime autoritário reprovavam então a criação de Conselhos de assessoramento de políticas federais alegando serem instrumentos de esvaziamento do poder legislativo. Instituições deste tipo, incluindo representações da sociedade civil, e, em certos casos, através de algum tipo de processo eletivo, multiplicaram-se ao longo do processo de redemocratização do país. Em oposição ao que pensava a Ditadura, foi forte a expectativa de que os mecanismos de participação social situados ao nível dos complexos parlamentares e judiciários funcionassem como “eclusas institucionais”, reguladoras do acesso aos fluxos comunicativos provenientes da periferia do sistema político para os centros decisórios. Embora a desigualdade de recursos para a ação entre os diferentes atores sugerisse que as expectativas de participação poderiam se frustrar, o discurso do envolvimento da sociedade civil nas políticas governamentais prosperou a partir dos anos 1990. Os Conselhos foram vistos como instrumentos de circulação de mensagens sob a forma de demandas sociais, articulações intraestatais, propostas de pactuações sociais ou de reelaboração governamental das demandas de movimentos sociais ou das pressões de grupos de interesses. Seriam, em suma, elementos importantes na construção da esfera pública. É nesta última onde confrontar-se-iam os diferentes discursos em disputa pela definição da pauta política e pela construção de sentido para as noções de interesse público e de bem comum. À imagem da polis grega, nesta esfera os homens se reconheceriam como iguais e construiriam um mundo comum, múltiplo por refletir as perspectivas diferenciadas dos cidadãos e o mesmo por ser compartilhado por todos.
No campo do meio ambiente, instituições ditas participativas pareciam poder constituir novos modos de produzir políticas territoriais, onde aos diferentes sistemas ecológicos ou configurações urbanas estariam associados sistemas culturais e atores sociais cujos saberes e projetos dariam conteúdo democrático e plural aos processos decisórios. O Conama – Conselho Nacional de Meio Ambiente – foi criado, ainda durante a Ditadura, pela Lei no. 6938 de 1981 e regulamentado pelo Decreto nº 88351 de 1983 como órgão superior do Sistema Nacional de Meio Ambiente. Cabia a ele assessorar, estudar e propor à Presidência da República diretrizes de políticas governamentais para o meio ambiente e deliberar sobre normas e padrões pelos quais o meio ambiente envolve a vida social. Atribuiu-se ao Conama a competência de estabelecer critérios para o licenciamento de atividades, determinar a realização de estudos de alternativas para projetos públicos ou privados com possíveis consequências ambientais, decidir, em grau de recurso, sobre multas e penalidades impostas pelo IBAMA, determinar perda ou retenção de benefícios fiscais concedidos pelo Poder Público, perda ou suspensão da participação em linhas de financiamento em estabelecimentos oficiais de crédito, bem como estabelecer normas relativas ao controle da qualidade do meio ambiente.
Enquanto instituição colegiada, o Conama é o espaço onde a administração federal, os órgãos estaduais de meio ambiente, representantes do empresariado, de trabalhadores e de entidades da sociedade civil envolvidas com as questões ambientais reúnem-se para discutir diretrizes de política ambiental e definir normas e padrões que regulem o uso social do meio ambiente. Em sua concepção inicial, o Conama refletiu a vontade de dar-se caráter descentralizado e participativo à formulação das normas e políticas destinadas a garantir a qualidade do meio ambiente. O formato democrático que lhe foi atribuído, ainda durante o regime autoritário, refletia, em parte, o desinteresse que a questão ambiental então despertava nas forças políticas conservadoras e nos representantes do poder econômico.
Em sua fase inicial, entre 1984 e 1986, o Conama visava basicamente articular a área ambiental do governo federal com as demais áreas de governo – Economia, Minas e Energia, Agricultura etc. Esperava-se então que, fazendo dos demais setores co-autores das decisões sobre meio ambiente, estes setores assumiriam também responsabilidades enquanto seus co-executores. Algumas discussões de peso levaram à produção de um certo número de resoluções relevantes. A partir de 1986, os debates tenderam a perder fôlego, caindo progressivamente naquilo que alguns consideram um “labirinto de normas”. Configurou-se a partir de então o impasse entre a concepção do órgão enquanto espaço de negociação e entendimento no campo ambiental, e a dificuldade de ele funcionar como instância de deliberação política. Com as conquistas legais inscritas no capítulo sobre Meio Ambiente na Constituição Federal de 1988, esboçaram-se reações no sentido de limitar as potencialidades do Conama como formulador de diretrizes políticas para o meio ambiente. Em 1989, ao final do governo Sarney, o Conama deixou de assessorar a Presidência da República e passou a subsidiar um Conselho Superior de Meio Ambiente. Resistências internas à ampliação dos poderes do Conama materializaram-se no programa Nossa Natureza, elaborado pelo governo Sarney com o fim de reestruturar a Política Nacional de Meio Ambiente. A partir daí, o Conama desenvolveu cada vez mais uma função normativa, aplicada a questões específicas e espaços delimitados, em detrimento do que poderia ser sua “vocação política” aberta às questões globais e estratégicas relativas à dimensão ambiental do desenvolvimento.
O governo Collor manteve as restrições à esfera de ação do órgão, subordinando-o a um Conselho de Governo constituído por ministros de Estado, no qual não tinha assento nem o próprio Secretário de Meio Ambiente. Entre 1990 e 1992, a gestão Collor aprofundou o esvaziamento do Conama, seja pela instabilidade que vigorou na instância responsável por sua Secretaria Executiva – o Ibama teve oito presidentes ao longo de dois anos – seja pelo congestionamento de sua pauta ou pela pouca expressividade observada em algumas das representações que o constituíam. Forças conservadoras nunca abandonaram concepções que viam na participação de representantes da sociedade civil uma caricatura de democracia: a estranheza face a outras ordens, alheias às tradições das tecnoburocracias de governo e aos grandes interesses econômicos que por dentro dele atuam, poderia explicar a construção de leituras contrárias à participação democrática.
O Conama foi criado como caudatário do que alguns chamam de “conservadorismo dinâmico” da área ambiental do governo[i]. A montagem desta área teria resultado de uma estratégia de resistência à inovação caracterizada pela aceitação do discurso ambiental disseminado a partir da Conferência da ONU em Estocolmo, em 1972, e pela criação de espaços institucionais desprovidos de força política ou de recursos humanos e financeiros suficientes para atuar. Alguns atribuíram essa fragilidade à falta de articulação horizontal da questão ambiental no interior do governo federal”. Como há nele a participação de todos os Ministérios, o Conama é o espaço onde o Ministério do Meio Ambiente poderia tentar se fortalecer junto às demais áreas do executivo. No entanto, as representações governamentais foram vistas, com frequência, como pouco expressivas politicamente. Em certas conjunturas, o fato dos estados e ministérios enviarem membros de escalões inferiores para representá-los nas reuniões plenárias teria refletido a pouca expressividade que atribuíam ao debate. Estas representações eram também afetadas pela descontinuidade administrativa e pelos próprios ciclos eleitorais, que levaram à mudança frequente dos representantes.
Com todas estas limitações, a existência de um Conselho Nacional de Meio Ambiente aberto à participação da sociedade sempre teve também um papel simbólico. Era, no mínimo, um espaço institucional onde a sociedade podia monitorar a agenda dos grandes interesses econômicos, identificar e alertar a sociedade para os projetos vocacionados à predação ambiental e à desconstrução de direitos, notadamente de pequenos produtores, moradores de periferias urbanas, povos indígenas e comunidades tradicionais. O esvaziamento político deste Conselho, em razão do decreto assinado em maio de 2019 pelas forças do anti-ambientalismo instaladas no governo federal, reflete também a pretensão governamental à desqualificação simbólica geral dos espaços públicos de discussão das políticas governamentais. A desregulamentação que vem atingindo leis, normas e direitos que foram constituídos para conter o avanço da predação ambiental atinge agora os próprios órgãos de regulamentação. Na perspectiva de Paulo Nogueira Neto, secretário especial de meio ambiente que esteve na origem da criação do Conama, a ideia era a de buscar constituir um meio ambiente submetido ao interesse público. Agora, este ambiente assim pensado é atacado, sendo submetido a poderes que passam a ser incontrolados e mediados exclusivamente pela lógica da grande propriedade privada.
*Henri Acselrad é professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ).
Nota
[i]cf. R. Guimarães, “Ecologia e Política na Formação Social Brasileira”, in Dados, v.31, nº2, 1988, RJ.