Por MONA LISA BEZERRA TEIXEIRA*
A escrita insubordinada em “A hora da estrela”
“O que é ficção? é, em suma, suponho, a criação de seres e acontecimentos que não existiram realmente mas de tal modo poderiam existir que se tornam vivos” (Clarice Lispector)
Rodrigo S. M., o autor/narrador ou narrador/autor de A hora da estrela, logo nos instantes iniciais da história sobre Macabéa, apresenta suas inquietações sobre o processo de criação e a posição do escritor na sociedade: “Escrevo neste instante com algum prévio pudor por vos estar invadindo com tal narrativa tão exterior e explícita […]. Se há veracidade nela – e é claro que a história é verdadeira embora inventada – que cada um a reconheça em si mesmo porque todos nós somos um […]” (LISPECTOR, 1999b, p. 12 ).
E ainda diz: “O que escrevo é mais do que invenção, é minha obrigação contar sobre essa moça entre milhares delas. É dever meu, nem que seja de pouca arte, o de revelar-lhe a vida” (LISPECTOR, 1999, p. 13). O modo como começa a delinear as características físicas e o universo de vivências de sua personagem para contar a história acaba revelando as suas próprias experiências e frustrações pessoais. A relação com a escrita se apresenta problemática, pois não há menção a uma atmosfera inspiradora e de fácil caracterização da protagonista. E essa “história verdadeira embora inventada”, escrita para nós, que “nos fazemos de sonsos”, vai ganhando forma ao mesmo tempo em que também é narrada através das reflexões do autor, que predominam no enredo sobre as desventuras de Macabéa.
Além disso, há um desajuste de uma ordem narrativa convencional, com a presença de um autor/narrador, narrador/autor, que também se diz Clarice Lispector, na dedicatória que inicia a novela. É válido salientar a ironia presente na história, pois a figura que narra enfatiza a necessidade de ser destacadamente masculina. Rodrigo S. M. diz que essa história poderia ser contada por qualquer pessoa, mas tem que ser um homem, do contrário, sendo mulher, a história poderia soar piegas. Desse modo, a forma literária assume várias nuances, a da mulher escritora que escreve simulando ser um homem, homem esse que pensa em outro homem para escrever a história de uma mulher, que, em muitos momentos, nem se reconhece como ser humano.
Há uma espécie de ficção alavancada pela busca da melhor maneira de representar a realidade, mas sem fazer isso de modo convencional, pois mesmo a história tendo início, meio e fim, como bem diz o autor – sem deixar de ser irônico –, as interferências, receios, mudanças de rumo, que estão presentes no decorrer da trajetória de Macabéa, acabam se aproximando de uma vivência mais realista da condição humana, cheia de conflitos e bruscas interrupções, como a própria morte, anunciada assim que começa a história.
Esses questionamentos podem ser aproximados do que Mikhail Bakhtin em seu texto “A forma espacial da personagem”, em Estética da criação verbal, denomina de “excedente da visão estética”, que, a partir de um “olhar de fora” diante do outro e também dele mesmo, é capaz de construir, moldar a personagem e exercer qualquer interferência na sua composição. Para Bakhtin, interessa ao autor o todo da personagem, seus traços, suas vivências, pensamentos e o que é capaz de sentir. Já nas relações humanas em sociedade não interessa a totalidade do sujeito, mas sim “alguns de seus atos com os quais operamos na prática e que nos interessam de uma forma ou de outra” (BAKHTIN, 2011, p. 4).
As dificuldades e possíveis caminhos para a elaboração e desenvolvimento do todo de Macabéa na narrativa são expostos, e, em conjunto com essa problemática, também se discute a respeito do uso das palavras apropriadas para dar conta da história, assim como reflexões éticas sobre até que ponto, ele, Rodrigo S. M., o autor, “na verdade Clarice Lispector”, e que também se posiciona como um personagem, conhece a realidade que pretende apresentar aos leitores.
Mais uma vez, o discurso também é irônico com relação a uma experiência real de sofrimento e resignação para atingir a existência de Macabéa: “Agora não é confortável: para falar da moça tenho que não fazer a barba durante dias e adquirir olheiras escuras por dormir pouco, só cochilar de pura exaustão, sou um trabalhador manual. Além de vestir- me com roupa velha e rasgada. Tudo isso para me pôr no nível da nordestina. Sabendo no entanto que talvez eu tivesse que me apresentar de modo mais convincente às sociedades que muito reclamam de quem está neste instante mesmo batendo à máquina” (LISPECTOR, 1999b, p. 19).
As considerações de Rodrigo S. M. durante toda a narrativa dão um caráter não sentencioso à obra. Terá sido essa a resposta de Clarice Lispector aos que a criticaram por não escrever de modo a dar ênfase a aspectos mais imediatos da realidade? Um outro ponto que merece destaque é a posição do autor, que, como já foi dito, coloca-se como personagem logo no início da narrativa: “A história – determino com falso livre arbítrio – vai ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles, é claro” (p. 13).
O dono da história não se dá muita importância, revela, por várias vezes, uma posição de fragilidade diante dos rumos de sua escrita. E, em alguns momentos, coloca-se no mesmo nível de Macabéa: “Ah que medo de começar e ainda nem sequer sei o nome da moça. Sem falar que a história me desespera por ser simples demais” (p. 19). “Ela é virgem e inócua, não faz falta a ninguém. Aliás – descubro eu agora – também eu não faço a menor falta, e até o que escrevo um outro escreveria” (p. 14).
Nesse processo, intercalam-se a discussão a respeito da escrita e sua capacidade de representar o mundo, o modo de narração, o destino da personagem e a vida do autor, tanto em relação a aspectos pessoais e biográficos, quanto no seu papel de criador de uma obra de arte. Rodrigo S. M. diz que “a ação desta história terá como resultado a minha transfiguração em outrem e minha materialização enfim em objeto” (LISPECTOR, 1999, p. 20). Objeto este que encontramos na forma de livro, com as impressões sociais, históricas e culturais que são imanentes a ele como realização estética.
Bakhtin ressalta – vale salientar – que não se devem estabelecer conexões imediatas entre a vida do autor e a elaboração de suas personagens, como se houvesse apenas uma transferência autobiográfica para o universo de criação artística, mas destaca que as experiências do autor também podem ser percebidas em suas obras: “O que acabamos de dizer não visa, absolutamente, a negar a possibilidade de comparar de modo cientificamente produtivo as biografias do autor e da personagem e suas visões de mundo, comparação eficiente tanto para a história da literatura quanto para a análise estética” (BAKHTIN, 2011, p. 9).
Com relação à escrita, a delimitação do espaço ocupado pelas palavras é sempre comentada, seja no que diz respeito à capacidade como também à impossibilidade de apreender através delas, de modo totalizante, o mundo que nos envolve, seja com relação à Macabéa e a seu deslumbramento diante delas. A personagem se encanta ao datilografar as palavras, ao ouvir seus significados diversos na Rádio Relógio, ao copiá- las no trabalho a mando de seu Raimundo, mas é incapaz de utilizá-las como instrumento reivindicativo, o que dá um caráter realista ao texto clariceano. Macabéa não pode nada, não é capaz de mudar nada, está engessada numa massa que molda os que tentam sobreviver nos grandes centros urbanos brasileiros.
Essa novela, escrita há mais de 40 anos, não está muito distante da existência atual anônima de outras Macabéas e das quatro Marias, balconistas das Lojas Americanas, suas companheiras de quarto. O Rio de Janeiro exposto em A hora da estrela é o avesso da cidade maravilhosa. Está enclausurado nas zonas periféricas, no subúrbio, no cais do porto e outras paisagens marginais. A atmosfera mais tênue só se apresenta através da imaginação da personagem, de sua singeleza ao observar o que os outros desprezam, como o canto do galo, o capim ralo, as flores de plástico, o livro Humilhados e ofendidos, embora não compreenda a sua dimensão. Não há “direito ao grito” na existência de Macabéa: “Como a nordestina, há milhares de moças espalhadas pelos cortiços, vagas de cama num quarto, atrás de balcões trabalhando até a estafa. Não notam sequer que são facilmente substituíveis e que tanto existiriam como não existiriam” (LISPECTOR, 1999b, p. 14).
Em uma crônica intitulada “Ficção ou não”, Clarice Lispector comenta a recepção ao romance A paixão segundo G. H. e os questionamentos por parte da crítica sobre a obra ter ou não a forma de romance. O que chama a sua atenção é o fato de a crítica ter dificuldades para aceitar o formato de ficção elaborado por ela, e ao mesmo tempo a protagonista da história ser analisada como personagem, incluindo sua trajetória no enredo. O que ela enfatiza é não querer a moldura da concepção clássica e “prescindir de tudo o que puder prescindir” (LISPECTOR, 1999a, p. 271).
Essa situação, comentada por Clarice sobre seu modo de escrever, pode ser relacionada com o modo como o autor/narrador se posiciona em A hora da estrela, figurado como um homem de letras e de ampla vivência no universo intelectual, cuja pretensão de dar conta da história não esconde a sua insegurança diante de sua criação e da “criação de uma pessoa inteira que na certa está tão viva quanto eu” (LISPECTOR, 1999b, p. 19): “É claro que, como todo escritor, tenho a tentação de usar termos suculentos: conheço adjetivos esplendorosos, carnudos substantivos e verbos tão esguios que atravessam agudo o ar em vias de ação […] Mas não vou enfeitar a palavra, pois se eu tocar no pão da moça esse pão se tornará em ouro – e a jovem (ela tem dezenove anos) e a jovem não poderá mordê-lo, morrendo de fome” (LISPECTOR, 1999b, p. 14).
Em seu texto “A resposta de Clarice”, Benedito Nunes discute sobre o ato de narrar no universo de criação. Aponta que não há uma situação “eficaz” de consciência literária e, sobre a autora de A hora da estrela e outros ficcionistas modernos, acrescenta: “Ao sentimento de adesão confiante ao ato de escrever, à entrega ao rito de criação, sucedeu uma atitude de reserva crítica que obriga o escritor a indagar a cada passo sobre a razão de ser, sobre o objetivo e o fim de sua arte” (NUNES, 2007, p. 54).
Essa hesitação apontada pelo crítico, permeia a narrativa sobre Macabéa do início ao fim da história, e esse aspecto reforça a qualidade dramática do texto, pois o modo de narrar também se torna enredo. A insegurança do autor sobre sua competência para contar também se transforma em forma literária: “Por que escrevo? Antes de tudo porque captei o espírito da língua e assim às vezes a forma é que faz o conteúdo (LISPECTOR, 1999b, p. 18); “Há poucos fatos a narrar e eu mesmo não sei ainda o que estou denunciando” (p. 28).
Ao falar sobre a personagem, o autor se contrapõe a ela, manifesta em muitos momentos a disparidade entre os dois. Ele situa-se na sua condição privilegiada, de observar as pessoas e o que as envolve, remediado numa camada da sociedade que nem tem demais e tampouco de menos. Macabéa vai sendo mostrada desde suas origens, equilibrando-se na linha de sobrevivência, sem se dar conta dos tristes espaços que ocupa e de suas relações: a infância miserável, a adolescência oprimida pela tia beata, a juventude explorada e anônima, o amor brutalizado na figura de Olímpico, a deslealdade de Glória e as previsões frustradas da charlatã madama Carlota.
O autor dá vida a quem não sabe ter direito de viver. A passividade de Macabéa e a “ausência que tinha de si mesma” vão se tornar matéria para a atuação de Rodrigo S.M. como escritor: “O mundo é um horizonte da minha consciência atuante” (BAKHTIN, 2011, p. 89). É esse matiz que torna possível elaborar a consciência de Macabéa a partir do ato de criação e das vivências pessoais do autor, mas acima de tudo, pelo fato de se colocar no lugar do outro, aspecto tão importante para a teoria da estética da criação verbal, pois, diferente do que ocorre na realidade, na literatura é possível conformar a vida, nas relações e na observação dos outros encontramos sentido para a nossa existência: “O modo como eu vivencio o eu do outro difere inteiramente do modo como vivencio o meu próprio eu; isso entra na categoria do outro como elemento integrante, e essa diferença tem importância fundamental tanto para a estética quanto para a ética” (BAKHTIN, 2011, p. 35).
Essa observação de Bakhtin ressalta a possibilidade de vivenciarmos a capacidade criadora do autor e sua riqueza de representações através dos personagens. Com relação a essa vivência no lugar do outro, diz Rodrigo S. M.: “Quanto à moça, ela vive num limbo impessoal, sem alcançar o pior nem o melhor. Ela somente vive, inspirando e expirando. Na verdade – para que mais do que isso? O seu viver é ralo. Sim. Mas por que estou me sentindo culpado? E procurando aliviar-me do peso de nada ter feito de concreto em benefício da moça. Moça essa – e vejo que já estou quase na história – moça essa que dormia de combinação de brim com manchas bastante suspeitas de sangue pálido” (LISPECTOR, 1999b, p. 23).
Como observa Carlos Alberto Faraco (2011), em seu texto “Aspectos do pensamento estético de Bakhtin e seus pares”, desde os seus estudos iniciais, Bakhtin sempre se posicionou de maneira crítica às análises biográficas e sociológicas da arte, pois elas não compreendem a importância do princípio criativo fundamental da relação do autor com o personagem. No caso, trata-se do autor-criador, que dá forma ao objeto estético e sustenta a unidade arquitetônica, e que se difere do autor-pessoa, que é o escritor, o indivíduo em que está inserido nas relações complexas em sociedade. É por meio do autor-criador que o social, o histórico e o cultural se tornam elementos intrínsecos do objeto estético. Sendo assim, para Faraco, a palavra é a base da expressão, é o mecanismo para a criação de um mundo que revela muito mais do que as impressões e vivências do autor-pessoa.
Ainda em Estética da criação verbal, no capítulo “O autor e a personagem”, Bakhtin diz que “a consciência do autor é a consciência da consciência” (p. 11), ou seja, a consciência que envolve a consciência e o mundo da personagem. É preciso enxergar o outro além do olhar superficial, colocar-se no lugar do outro para ir mais adiante das próprias concepções e crenças individuais. Dessa maneira, a estrutura do texto, a sua arquitetônica, consolida-se com os seguintes elementos analisados por Bakhtin: a visão e o seu excedente, o acabamento da personagem e dos acontecimentos, a diretriz volitivo-emocional concreta, ou seja, a consciência, o sentimento da personagem, e, finalmente, o centro axiológico, o todo da personagem e do acontecimento, que estão condicionados aos valores éticos e cognitivos da narrativa.
Nos termos de Clarice Lispector: “Antecedentes meus do escrever? Sou um homem que tem mais dinheiro do que os que passam fome, o que faz de mim de algum modo um desonesto. E só minto na hora exata da mentir. Mas quando escrevo não minto. Que mais? Sim, não tenho classe social, marginalizado que sou. A classe alta me tem como um monstro esquisito, a média com desconfiança de que eu possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a mim” (LISPECTOR, 1999b, p. 18).
Voltando para o “excedente da visão estética”, lembremos que Bakhtin dá uma definição muito interessante a respeito: “é o broto em que repousa a forma e de onde ela desabrocha como uma flor” (p. 23). Mas para que essa transformação ocorra com efetividade é preciso que se complete o horizonte do outro indivíduo sem perder a originalidade deste. Essa é uma das manifestações de Rodrigo S. M.: como tratar da moça nordestina tão distante de sua realidade? Diz ele: “Como é que sei tudo o que vai se seguir e que ainda o desconheço, já que nunca o vivi?” (p. 12).
E, mais adiante: “O fato é que tenho nas minhas mãos um destino e no entanto não me sinto com o poder de livremente inventar: sigo uma oculta linha fatal. Sou obrigado a procurar uma verdade que me ultrapassa. Por que escrevo sobre uma jovem que nem pobreza enfeitada tem? Talvez porque nela haja um recolhimento e também porque na pobreza de corpo e espírito eu toco na santidade, eu que quero sentir o sopro do meu além. Para ser mais do que eu, pois tão pouco sou” (LISPECTOR, 1999b, p. 21).
A incompetência de Macabéa para a vida é extensiva ao autor, pois Rodrigo S. M. não pode resolver nada, é hesitante e manifesta a fragilidade da palavra diante da brutalidade do mundo, aproximando-se da mesma condição de Macabéa na hora de sua morte, que vê “entre as pedras do esgoto o ralo capim de um verde da mais tenra esperança humana” (p. 80). Desse modo, A hora da estrela, em sua escrita que “não acumula e sim desnuda”, revela uma estética inovadora na história da literatura brasileira e também um olhar de ampla consciência diante da condição humana.
*Lisa Bezerra Teixeira é doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP)
Publicado originalmente nos anais da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic).
Referências
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
FARACO, Carlos Alberto. Aspectos do pensamento estético de Bakhtin e seus pares.
Revista Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 46, n. 1, p. 21-26, jan./mar. 2011.
LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999a.
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1999b.
NUNES, Benedito. A resposta de Clarice. In: Clarice Lispector. A hora da estrela. Catálogo do Museu da Língua Portuguesa. São Paulo: Museu da Língua Portuguesa, 2007.