Chile e Bolívia

Dora Longo Bahia, Black Bloc, 2015 Serigrafia sobre fibrocimento, 50 x 79 cm
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Por SLAVOJ ŽIŽEK*

Em ambos os casos vemos uma rara sobreposição de democracia “formal” (eleições livres) e vontade popular substancial

Dois acontecimentos recentes trouxeram alguma esperança a estes tempos sombrios. Me refiro evidentemente às eleições na Bolívia e ao referendo APRUEBO no Chile. Em ambos os casos vemos uma rara sobreposição de democracia “formal” (eleições livres) e vontade popular substancial. Menciono os dois acontecimentos juntos porque embora pense que o que ocorreu na Bolívia seja diferente do que está acontecendo no Chile, espero que ambos compartilhem o mesmo objetivo de longo prazo.

O golpe de janeiro na Bolívia se legitimou como um retorno à “normalidade” parlamentar contra o perigo “totalitário” de que Morales aboliria a democracia transformando o país em uma “nova Cuba” ou uma “nova Venezuela”. A verdade é que, durante a década do governo Morales, a Bolívia de fato conseguiu estabelecer uma nova “normalidade”, unindo mobilização democrática do povo e progresso econômico concreto. Como apontou o novo presidente boliviano Luche Arce, que foi ministro da Economia e Finanças Públicas nesse período, durante a década do governo de Morales, os bolivianos desfrutaram dos melhores anos de suas vidas. Foi o golpe contra Morales que destruiu essa normalidade duramente conquistada e trouxe uma onda de caos e miséria. Por isso, a vitória eleitoral de Arce significa que os bolivianos não terão que iniciar um longo e doloroso processo de construção de uma nova ordem social – basta que retomem o que já estava lá até janeiro, e seguir a partir daí.

No Chile a situação já é mais complexa. Após de anos de ditadura direta, Pinochet introduziu sua própria normalização “democrática” na forma da nova constituição que garantiu a salvaguarda dos privilégios dos ricos no interior de uma ordem neoliberal. Os protestos que explodiram em 2019 são uma prova de que a democratização de Pinochet era uma farsa, como ocorre com toda democracia tolerada ou mesmo promovida por uma potência ditatorial. O movimento APRUEBO fez a sábia decisão de focar na mudança da constituição. Com isso, deixou claro para a maioria dos chilenos que a normalização democrática coordenada por Pinochet era um prolongamento por outros meios daquele regime ditatorial: as forças de Pinochet permaneceram nos bastidores como um deep state certificando-se de que o jogo democrático não saísse do controle. Agora que a ilusão da normalização pinochetista foi quebrada é que o verdadeiro trabalho árduo começa. Ao contrário do que ocorre na Bolívia, os chilenos não contam com uma ordem previamente estabelecida à qual retornar: terão que construir cuidadosamente uma nova normalidade para a qual nem mesmo os gloriosos anos do governo Allende podem realmente servir de modelo.

Esse caminho é repleto de perigos. Nas próximas semanas e meses, o povo chileno ouvirá frequentemente de seus inimigos a eterna pergunta: “Ok, agora que vocês ganharam, vocês poderiam nos dizer exatamente o que querem, podem decidir e definir claramente o seu projeto!” Penso que a resposta correta a essa situação se encontre na velha piada estadunidense sobre uma mulher experiente que quer apresentar um idiota ao sexo. Ela o despe, o masturba um pouco e, assim que ele fica com uma ereção, ela abre as pernas e introduz o pênis em sua vagina. Nesse momento ela diz: “Ok, chegamos, agora basta que você mova seu pênis um pouco para fora e, em seguida, para dentro, para fora e para dentro, para fora, para dentro …” Depois de um minuto ou mais, o idiota explode, furioso: “Dá pra decidir de uma vez!? É dentro ou é fora?”

Os críticos do povo chileno agirão exatamente como esse idiota: vão exigir uma decisão clara sobre que nova forma de sociedade os chilenos querem. Mas a vitória do APRUEBO obviamente não é o fim, não é a conclusão de uma luta. Essa vitória é, antes, o início de um longo e difícil processo de construção de uma nova normalidade pós-Pinochet – um processo com muitas improvisações, recuos, avanços. De certa forma essa luta será mais difícil do que os protestos e a campanha pelo APRUEBO. A campanha tinha um inimigo claro e bastava articular seus objetivos com as injustiças e misérias causadas pelo inimigo em um plano confortável de abstração: dignidade, justiça social e econômica, e assim por diante. Agora o povo chileno terá que operacionalizar seu programa, traduzi-lo em uma série de medidas concretas, e isso vai trazer à tona todas as suas diferenças internas que acabam sendo ignoradas na solidariedade extática entre as pessoas.

Lembro-me de uma mudança semelhante ocorrida por volta de 1990, quando o “socialismo realmente existente” estava desmoronando na Eslovênia. Havia a mesma solidariedade global, mas assim que a oposição se aproximou do poder, começaram a aparecer rachaduras nesse edifício. Primeiro houve um racha entre conservadores nacionalistas e liberais; depois os próprios liberais se dividiram entre liberais capitalistas de estilo ocidental e a nova esquerda; em seguida os comunistas que estavam no poder tentaram se juntar a essa nova esquerda e se apresentar como uma nova social democracia… Não se deve subestimar como o inimigo vai procurar explorar esse processo necessário. Muitos membros do establishment vão fingir estar se aliando ao povo chileno, juntando-se a ele na celebração de um novo momento de democracia, mas logo começarão a alertar contra o “novo extremismo” e a trabalhar sutilmente para conseguir manter a mesma ordem sob uma nova roupagem, a mesma estrutura com apenas algumas mudanças cosméticas. O imperador não vai admitir que está nu, vai apenas vestir uma roupa nova…

Então, voltando à minha piada obscena, eu diria que o povo chileno deve tratar seus oponentes exatamente como se deve tratar idiotas sexuais. Deve dizer a eles: “não, estamos começando um processo longo e alegre onde não há conclusão rápida, vamos entrar e sair lentamente, entrando e saindo, até o momento em que o povo chileno fique plenamente satisfeito!”.

*Slavoj Žižek é professor do Instituto de Sociologia e Filosofia da Universidade de Ljubljana (Eslovênia). Autor, entre outros livros, de O ano em que sonhamos perigosamente (Boitempo).

Tradução: Artur Renzo

Publicado originalmente no blog da Boitempo.

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