Por RUBENS PINTO LYRA*
Realismo político, dialética dos conflitos sociais e participação popular
A virtù, a política e o moderno Príncipe
Na Idade Média, cujos valores se inspiraram, em grande parte, na obra de Santo Agostinho, “a obra humana não significava nada, pois era a pura expressão de nossa concepção de seres em queda. As verdadeiras ações dignas de elogio eram praticadas sob a inspiração divina, pela graça, e não tinham qualquer ligação com as qualidades individuais dos homens. Ora, a concepção republicana, própria aos humanistas, punha o homem no centro do universo, exigindo dele aquilo que, aos olhos de um pensador medieval, só a graça poderia dar” (BIGNOTTO 1999:32).
O Renascimento irá operar uma conversão da atitude contemplativa, típica da Idade Média, para o comportamento que valoriza a ação, o protagonismo do indivíduo, o conhecimento e a liberdade. Progressivamente, o ascetismo religioso dá lugar ao hedonismo, ao amor, à força e à beleza. A atitude contemplativa cede espaço para o arrojo e o espírito de iniciativa, que se reflete nas audaciosas inovações introduzidas na vida econômica, social, política, artística e cultural.
É nesse contexto que se inserem as análises de Maquiavel sobre a virtù. Os indivíduos que dela são portadores apostam na força transformadora da ação, impondo limites às incertezas da Fortuna (a boa ou a má sorte, o imponderável, as incertezas da vida). A virtù conjuga vários atributos, tais como: a ousadia, temperada pela prudência (homem leão e raposa); espírito inovador; saber julgar e decidir, astúcia; capacidade de perceber para onde os ventos estão soprando, o rumo que tomará os acontecimentos. O homem é maleável, inventivo e perspicaz.
Em síntese: “o carisma da virtù é próprio daquele que se conforma à natureza do seu tempo, apreende-lhe o sentido e se capacita a realizar, na prática, a necessidade latente nas circunstâncias” (MARTINS, 1979: XVII). A virtù caracteriza as qualidades dos homens inovadores, mas, também, o espírito de alguns povos e de suas instituições. Pode designar, tanto um dom natural, como exercício de disciplina.
Para Maquiavel (1469-1527), o político virtuoso, que tem estatura de um estadista, é aquele que demonstra espírito público, liderança e descortínio, traduzidos na percepção dos valores novos e na capacidade de tornar efetivo o progresso em benefício da nação. O carisma do verdadeiro príncipe (entendido este termo, neste capítulo, como sinônimo de um (ou de vários governantes) se expressa, portanto, na sua capacidade de conquistar e conservar o poder, conduzindo a nau (o Estado) a porto seguro, garantindo ao povo de que é líder, estabilidade e progresso.
Para tanto, deverá, de um lado, mostrar habilidade “jogando com a distribuição dos bens, das honrarias, das recompensas” (RUBY, 1997: 69) e impedindo que a plebe seja esmagada pelos poderosos. A ação mediadora do Príncipe é um atributo essencial da arte de governar, na qual ele deve ser mestre, devendo ter, em consequência, “um papel ativo, e mesmo estruturante, no interior de um corpo político heterogêneo” (RUBY, 1997:69).
Na atualidade, há estudiosos que utilizam tais parâmetros analíticos, centrados na concepção segundo a qual “não é a intenção que valida o ato, mas o seu resultado” (MAZZEO, apud Moreira, 1975:32) para avaliar a ação dos estadistas e governantes contemporâneos. Nesta avaliação, deve-se ter sempre presente a profunda diferença das práticas políticas das democracias atuais, em relação às do primeiro quartel do século XVI, que ainda não havia se despedido do regime feudal. Com efeito, na democracia, o acesso ao poder se faz de acordo com regras pré-definidas, sendo os governantes, eleitos pelo sufrágio universal, responsáveis pela garantia do Estado de Direito e pelo respeito às liberdades democráticas e à participação popular na gestão pública.
O regime democrático gera práticas políticas dotadas de um conteúdo ético qualitativamente distinto do que vigorava na época do secretário florentino. Mas já existia – ao lado da aristocracia, a República, da qual Maquiavel era adepto. Destarte, o personagem de virtù capaz de “conduzir a nau a porto seguro”, não se encarnaria apenas em heróis individuais como César Borgia, em quem ele via o possível unificador de sua pátria italiana, dilacerada por conflitos intestinos.
Em uma república virtuosa como Roma, residiria no povo, como ator coletivo, na sua determinação guerreira e no seu espírito cívico-patriótico, a força e a capacidade de afirmação da vontade estatal (PRÉLOT, 1977: 210). Para Antonio Gramsci, considerado um dos mais influentes teóricos marxistas, o moderno príncipe seria encarnado pelo Partido Comunista. Este, em nome do proletariado, reconstruiria os fundamentos do Estado, colocando-o a serviço da redenção socialista.
Atualmente, estudiosos de diversas correntes de pensamento, críticos do statu quo, tendem a enfatizar o papel da sociedade organizada, participativa, notadamente a que se localiza no mundo do trabalho, como principal protagonista na construção de vontades coletivas nacionais capazes de criar um projeto alternativo à hegemonia “neoliberal”.
Destarte, a construção de um projeto político e social transformador resultaria de uma ampla conjugação de forças, tanto no âmbito do Estado quanto no da sociedade civil, liderada pelos que receberem, nas urnas, o aval do povo para a efetivação de mudanças. O “moderno príncipe” – portador de hegemonia – não seria mais um único ente, e sim a encarnação da síntese dialética dessas múltiplas determinações.
Ética, política e razão de Estado em Maquiavel
Maquiavel, através de sua concepção sobre a ética do estadista – que a distingue claramente da moral individual – deixa nítida a diferença entre, de um lado, o espaço público e, de outro, as relações privadas. Visão que contrasta com a da época medieval, na qual havia uma indistinção entre o espaço público e o privado, entre o interesse particular e o do Estado, como no caso do poder exercido pelos senhores feudais.
Nesse diapasão, o critério de julgamento da atuação de homem público deixa de ser pautado pela moral privada, convencional e passa a ser unicamente objetivo: o sucesso de suas iniciativas. O governante deverá orientar-se nas suas ações pela “razão de Estado”. As suas opções serão ditadas pelas consequências (boas ou más) que terão para o êxito de suas iniciativas (ética da responsabilidade) e nunca por convicções morais (ética da consciência). Os meios utilizados são bons por definição quando se destinam a preservar o Estado, valor mais alto, além do qual nada existe.
Portanto, não é possível considerar imoral a ação do estadista de virtù, quando estiver voltada para a realização do valor supremo: o bem do Estado. A questão da relação entre meios e fins só é posta quando o sujeito identifica um conflito entre as primeiras e as segundas em virtude de alguma convicção moral e ética se chocar com os meios adotados para a realização de determinados fins.
Para o pensador de Florença, que foi também Segundo Chanceler dessa república, não existe dilema a esse respeito. Ao contrário, a ética na vida pública se realiza plenamente quando o estadista age em defesa do Estado, sendo sempre, dadas as características próprias do agir político, bons os meios empregados para esta defesa. Vê-se, pois, que “a lógica política nada tem a ver com as virtudes éticas dos indivíduos em sua vida privada. O que poderia ser imoral ao ponto de vista da ética privada pode ser virtù na política” (CHAUÍ, 2000: 397).
Em outras palavras, Maquiavel inaugura a ideia de valores políticos medidos pela eficácia prática e pela utilidade social, afastados dos padrões que regulam a moralidade privada dos indivíduos. “O ethos político e o ethos moral são diferentes e não há fraqueza maior do que o moralismo que mascara a lógica real do poder” (CHAUÍ, 2000: 397). Maquiavel não fez, contrariamente ao que se divulga, a apologia gratuita da força. A sua utilização deve ser virtuosa, é somente em caso de necessidade, pois é preferível a astúcia da raposa à violência do leão.
Não podia ser outra a sua posição, considerando-se a época em que viveu, caracterizada pela presença da mais brutal violência nas relações sociais, ingrediente onipresente e principal suporte de poder nas relações políticas concretas existentes à época. Basta lembrar que o chefe do Governo que antecedeu aquele do qual participou Maquiavel na República de Florença – Savonarola – foi queimado na fogueira, como muitos outros “hereges”. Ele próprio não escapou de ser torturado após a queda do Governo do qual fazia parte.
É nesse contexto que se situa a moral propugnada por Maquiavel: “que é a do cidadão, homem que constrói o Estado, uma moral mundana” a qual “emerge das relações reais que se estabelecem entre seres humanos” (GRUPPI, 1978:11). Exemplo sempre lembrado de como Maquiavel distingue a ética pública da privada é o comentário sobre o assassinato de Remo por seu irmão Rômulo – os dois fundadores de Roma “alguém pode ser acusado pelas ações concretas que cometeu, e justificado pelo resultado destas. E quando o resultado for bom, como no exemplo de Rômulo, a justificação não faltará .Só devem ser reprovadas as ações cujo violência tem por objetivo destruir, em vez de reparar” (MAQUIAVEL: 1979:49).
Quer dizer, se a ótica da análise fosse a da moral privada, poder-se-ia falar em um crime hediondo, um fratricídio. Porém, a morte de Remo, ao eliminar uma divisão que enfraquece o poder, robustece o Estado, e, dessa forma, se justifica do ponto de vista do interesse público. Nessa perspectiva, o pensador de Florença “confere valor supremo à autoridade do Estado e considera a devoção integral à Pátria como finalidade última da vida humana” (MORAES, 1981: 19)
Ética, política e razão de Estado pós-Maquiavel
Simón Bolívar, o Libertador, agiu dentro dos parâmetros de conduta defendidos por Maquiavel. Valeu-se de medida extrema para garantir a consolidação da revolução que levou o seu nome, ao mandar fuzilar, em 1823, um dos heróis de suas lutas de libertação, o General Manuel Piar, pelo fato de este desenvolver, junto ao oficialato, ações que comprometiam a sua autoridade. Aplicou-lhe a pena mais dura, para que sua decisão tivesse caráter exemplar. Mesmo se, por ter sido obrigado a proceder desta forma, o dia da execução de Piar tenha sido, segundo ele próprio “o pior dia de sua vida”.
Conforme expressivo relato de Gabriel Garcial Márquez, Simon Bolivar “pelo resto da vida, repetiria tratar-se de uma exigência política que salvou o país, persuadiu os rebeldes e evitou a guerra civil. De qualquer forma, foi o ato de poder mais feroz da sua vida, mas também, o mais oportuno, mediante o qual o general consolidou de imediato sua autoridade, unificou o comando e desobstruiu o caminho de sua glória” (2007:230).
Baseado na mesma ética, em 1945, com a França ainda em guerra contra o nazismo, um Tribunal composto de integrantes da Resistência e de parlamentares condenou, em julgamento considerado “horrível” e “vergonhoso”, por personalidades de diferentes correntes políticas, à pena capital, Pierre Laval, pela sua atuação como Presidente do Conselho de Ministros durante o governo colaboracionista de Vichy. O Chefe de Estado, general De Gaulle, poderia ter comutado a sua pena, mas não o fez, pois esse gesto de complacência, em um período de reconstrução nacional, suscitaria fortes protestos populares, com grave risco para a estabilidade das instituições, em um período de reconstrução nacional (LACOUTURE: 1970, p. 152).
Contudo, a preservação do Estado, e de sua governabilidade, se faz, na atualidade, na plena vigência dos regimes democráticos, sem o uso de violência arbitraria e com padrões éticos compatíveis com os valores republicanos e democráticos.
Examinemos, na prática, com alguns exemplos, essa questão no Brasil.
Entrevista concedida, em setembro de 2009, à Rede Bandeirantes de Televisão, pelo então Ministro da Justiça, Tarso Genro, traz à baile a reflexão sobre decisões tomadas em nome da estabilidade política. Ele justificou a posição do então Presidente Lula, que enquadrou, em nome da governabilidade, os senadores petistas favoráveis à abertura de sindicância contra José Sarney, acusado, no Conselho de Ética do Senado Federal, de nepotismo e de várias outras ilegalidades (2009).
Na primeira versão desse artigo, publicada em 2010, lê-se, a esse respeito, o seguinte: “a referida escolha, sacrificando à ética a realpolitik, imposta pela necessidade de manter apoio político ao governo do Presidente Lula, evitou rachaduras na “base aliada”. Todavia, a médio e longo prazo, essa opção poderá, de acordo com certo enfoque crítico, contribuir para o enfraquecimento da governabilidade, na medida em que aprofundará o fosso entre a “classe política” e as aspirações de, praticamente, toda a sociedade civil. Com efeito, esta inclina-se a exigir do estadista o respeito à lei e aos princípios republicanos consagrados na constituição pátria” (LYRA: 2011, p.21-22).
Dito de outra forma: em uma democracia, não é possível, em nome da preservação da governabilidade ou da permanência de um projeto político, qualquer que seja, pretender sobrepor suposta “razão de Estado”, ao respeito à ética, à legalidade e à transparência.
A hipótese levantada em 2010 foi amplamente confirmada. O “afundamento” ético do governo petista, escancarado com os processos da Lava Jato e do chamado “Petrolão”, se traduziu na plena inserção do PT na realpolitik, que tanto combatera. Na opinião do ex-governador do Rio Grande do Sul e ex- Presidente nacional desse Partido, Olívio Dutra, aceitando as coligações partidárias que “deseducam”, “praticando a política do é “dando que se recebe” o PT se tornou um partido igual aos outros, ou até pior (SARDINHA, 2016). E, por isso, perdeu boa parte de sua credibilidade e força política.
Também se confirmou, posteriormente, a justeza da opinião do ex Ministro e ex Governador do Ceará, Ciro Gomes, quando citou Gramsci a propósito da relação entre a ética e as esquerdas, considerando que estas não podem abdicar da sua ”hegemonia moral e intelectual”. Para Gomes, ela é inerente a um projeto ao qual está, necessariamente, associada uma ética pública estribada nos princípios republicanos da impessoalidade, moralidade e transparência (GOMES:2009).
A aversão de muitos às idéias de Maquiavel sobre a ética pública, comentadas acima, foi, sobretudo até um passado recente, o preço a pagar por quem desmistificou um discurso ético, baseado no caráter indissociável da moral pública com a privada que, durante toda a Idade Média, serviu como forma de legitimação de privilégios.
Não restam, pois, dúvidas, de que a distinção entre a moral privada e a pública, iniciada por Maquiavel, constitui-se em um postulado básico da própria existência do Estado. Todavia, a ação deste, na atualidade, só pode ser exitosa, e, portanto, realista, se “na conceituação de seus objetivos e na escolha dos meios necessários para alcançá-los” orientar-se pelos “valores éticos e princípios jurídicos que favoreçam uma convivência solidária e mais harmoniosa com os demais Estados” (MORAES: 1981: 28).
De Maquiavel até nossos dias – sobretudo a partir da criação da ONU, em 26 de junho de 1945 – a comunidade internacional tem construído, ainda que de forma incipiente, regras de convivência internacionais, tais como a resolução pacifica de conflitos entre as nações, ancoradas na aceitação dos valores democráticos e no respeito aos direitos do homem e do cidadão, princípios norteadores da ação do poder estatal. Eis os limites modernos da “razão de Estado”.
Tais princípios e regras contribuem para frear a hegemonia das grandes potências, enquanto não se efetiva a utopia de um poder supranacional democrático, que garanta, com base na igualdade de direitos dos Estados, a paz e a justiça entre as nações. Trata-se, como quer Bobbio – um discípulo do realismo maquiaveliano – de se elaborar um código moral para a própria política, distinto, evidentemente, da moral comum, em consonância com o princípio da eficácia na obtenção dos fins perseguidos pelo estadista (MELLO, 2003: 72).
É forçoso, contudo, reconhecer que essa relativa democratização das relações internacionais, que tem como marco o reconhecimento do alcance universal dos direitos humanos, expressa uma inegável aproximação entre a moral pública e a privada. Doravante, o comportamento do estadista passa a ser balizado por normas cujo conteúdo ético incide, também, em certa medida, na esfera das relações individuais. Mello cita, a esse respeito, Bobbio, para quem os direitos humanos, a paz e a democracia, se colocariam acima da chamada “razão de Estado”, tendendo a reduzir, pouco a pouco, o espaço das decisões tomadas com base no uso dessa razão (MELLO, 2003:162).
A secularização da política e o método empírico-comparativo
Até Maquiavel – e ainda por muito tempo depois – o comportamento do homem em sociedade, especialmente na política, foi explicado por fatores transcendentais (Deus, natureza ou razão), anteriores e exteriores à própria política. Giordano Bruno, Galileu, Jan Hus e Maquiavel são pioneiros na medida em que romperam, na filosofia, na ciência, na religião e na política, com o monopólio do saber e do poder da Igreja.
A estratificação no período feudal (senhores feudais e servos), supostamente natural, expressão da vontade divina, questionada por Maquiavel, ilustra esta afirmação. Destarte, o secretário florentino “cortou todas as amarras de subordinação, teológicas e morais, em que, na Idade Média, o sistema hierárquico do cristianismo limitara o poder temporal e recusou-se a reconhecer qualquer valor ou direito superior à vontade do Estado, erigindo este último em fonte suprema de justiça e moral” (MORAES, 1981:21).
Os escritos de Maquiavel secularizam a política, quer dizer, afastam a explicação religiosa para compreensão do poder. A sua origem e conformação atuais são entendidas como sendo fruto do embate entre classes sociais portadoras de interesses contraditórios. A ruptura de Maquiavel consiste, pois, em expulsar da política a religião, separando radicalmente a cidade de Deus da cidade dos homens, o sagrado do profano, o público do privado.
O estudo da formação, conservação e perda do poder político, com Maquiavel, incorpora elementos de análise científica, na medida em que este pensador debruça-se sobre a realidade efetiva das relações produzidas pela práxis do homem na sociedade, e constrói sua análise a partir dessa verdade, concretamente demonstrada, e não por supostas determinações externas à vida social.
Destarte, o pensador florentino procurou entender a vida política de sua época, a partir da sua posição de observador e ator privilegiado – Segundo Chanceler da República de Florença – como ela efetivamente se desenrolava. E comparou a sua própria experiência com as lições do passado, hauridas nas grandes obras políticas da antiguidade greco-romana. Esse método, lastreado em elementos científicos de análise, lhe permitiu extrair ensinamentos para vida política de seu tempo.
Maquiavel utiliza o método empírico-comparativo, estruturado na repetição da história e na existência de padrões invariáveis do comportamento humano. Assim, “determinadas as causas da prosperidade e da decadência dos Estados antigos, pode-se compor um modelo analítico para o estudo das sociedades contemporâneas, já que às mesmas causas corresponde os mesmos efeitos” (MARTINS, 1979, p. XXVI), excluída toda possibilidade de determinação externa, transcendental (GUILHON, 1980:60).
Concluindo, foi o estudioso florentino quem deu ao Estado “sua significação central de poder soberano legisferante e capaz de decidir, sem compartilhar este poder com ninguém, sobre questões tanto exteriores quanto internas a uma comunidade. Ou seja, o poder que realiza a laicização da plenitudo potestatis” (CHÂTELET, 1982: 38).
República e principado
Todas as manifestações de Maquiavel evidenciam a sua condição de republicano, defensor do dissenso, da lei e da liberdade. Assim, “é útil e necessário que as leis da república concedam à massa um meio legítimo de manifestar a cólera que lhe possa inspirar um cidadão; quando este meio regular é inexistente, ela recorre a meios extraordinários: e não há dúvida de que estes últimos produzem males maiores do que os que se poderia imputar aos primeiros” (1994: p. 41).
Contudo, a estabilidade e a segurança nas relações sociais não são os únicos aspectos valorizados por Maquiavel. Para ele, essa característica essencial de um regime republicano, o interesse coletivo “que faz a grandeza dos Estados” […] “só é respeitado na República”. Como, aliás, “tudo que pode trazer vantagem geral é nela conseguido sem obstáculos” (1994:198).
Existe, todavia, um Maquiavel – bem mais conhecido – que admite a necessidade do poder absoluto, mas somente em situações excepcionais. O que ocorre, sobretudo, em duas situações. Quando um país mergulha na decadência, com suas instituições corroídas, na ameaça à estabilidade social e política ou quando surge uma ocasião histórica para unificar a nação dividida, como era a Itália de seu tempo. Assim, para Maquiavel “o homem providencial jamais é um tirano: sua heroicidade se realiza no plasmar da forma conveniente para a matéria, que é o povo” (MARTINS: 1979: p. XX).
Em tais circunstâncias “um legislador sábio, animado do desejo exclusivo de servir, não os interesses pessoais, mas os do público; de trabalhar, não em favor dos próprios herdeiros, mas para a pátria comum, não poupará esforços para reter em suas mãos toda a autoridade. E nenhum espírito esclarecido reprovará quem tenha se valido de uma ação extraordinária para instituir um reino ou uma república” (MAQUIAVEL: 1994 p. 49).
Segundo Barros, essa figura nos remete a do “ditador de transição – o novo príncipe- capaz de unificar sua pátria , dotá-la de leis justas e preparar o porvir republicano; essa figura ditatorial é inspirada na instituição da ditadura romana, que era acionada – em situações excepcionais – afim de, subtraindo direitos e liberdades, manter a paz e assegurar a salvação pública essa instituição. Ela se inspiraria no que conhecemos modernamente como Estado de Sítio, Estado de Exceção, Lei Marcial etc” (2010:119).
Vê-se que, mesmo se tratando de uma forma de governo não republicana, Maquiavel descarta a possibilidade de êxito daquele que vier a conquistar o poder, apenas com base na força. Assim, “ao príncipe é necessário ser amigo do povo, pois, de outra forma, não terá remédio na adversidade”. Mesmo “quem se tornar príncipe contra a opinião popular, pelo favor dos Grandes, deve, antes de mais nada, conquistar o povo” (1979: 40).
O príncipe fundador funciona, pois, como um agente de transição. Esta, algumas vezes, pode durar séculos, como ocorreu durante o período dos monarcas absolutos europeus. Estes esses se assemelhariam aos príncipes fundadores, concebidos pelo estudioso florentino?
Eles construíram Estados nacionais, centralizando o poder político, o que lhes permitiu arbitrar as disputas entre a nobreza em declínio e a burguesia em ascensão. .Inicialmente atuando como mera expressão dos interesses da nobreza, eles souberam, todavia, com o protagonismo crescente da burguesia, incorporar, gradativamente, os seus interesses. Ademais disto, evitaram, em vários casos, que a transição para um novo regime se concluísse por uma ruptura violenta.
Redefinida a correlação de forças, a vida social retoma o seu curso e a normalidade “a inteligência do problema político não nasce da apreciação dos tipos de governo – monárquico ou tirânico, aristocrático ou oligárquico – mas do jogo das forças sociais que nela atuam” ação de forças, a vida social retoma o seu equilíbrio e a Nação reencontra a normalidade, adotando instituições baseadas na existência de leis e na garantia da liberdade, adotando instituições baseadas na existência das leis e na garantia das liberdades.
Das análises acima, fica evidenciado que “a inteligência do problema não nasce da apreciação da formas de governo – monárquico ou tirânico, aristocrático ou oligárquico – mas do jogo de forças sociais que nela atuam” (LEFORT: 1986:473-474).
No século XX, uma das figuras que melhor encarnou o “moderno príncipe” foi o General De Gaulle. A virtù, traduzida na sua habilidade política, carisma excepcional, coragem, raro senso de oportunidade e acendrado patriotismo, sempre acompanhada pela Fortuna, permitiram-lhe, em momentos recentes da história da França, pressentir a direção para onde os ventos sopravam e assim “conduzir a nau a porto seguro”.
Dessa forma, galvanizou todas as energias da nação, como autêntico salvador da pátria, em dois momentos cruciais: na liderança inconteste da luta armada contra o nazi-fascismo, à frente da Resistência Francesa, no período de 1940 a 1945. E, também, quando impediu, em 1958, uma guerra civil entre seus compatriotas, assegurando, de forma pacífica, o reconhecimento da Argélia como nação soberana. “O mais ilustre dos franceses”, assim reconhecido mesmo pelos seus adversários políticos, foi também o idealizador e o construtor da Quinta República, que devolveu a estabilidade e a confiabilidade às instituições políticas de seu país (COOK: 2008, p.353).
Dissenso, liberdade e lei: os vetores dialéticos da estabilidade e do progresso
A percepção da vida social como ela é – atravessada por conflitos e dissensões – é condição primeira para a formulação de análises capazes de compreender o real papel do Estado na sociedade, pressuposto necessário de qualquer concepção democrática da vida social.
Maquiavel, também nessa temática, é um pioneiro. No capítulo IX do Príncipe ele constatou, em todas as sociedades, a existência de duas forças opostas “e isto nasce do fato de que o povo não deseja ser governado nem oprimido pelos grandes e estes desejam governar e oprimir o povo” (MAQUIAVEL: 1979, p. 39).
Considerar que a sociedade é dividida em classes antagônicas com interesses contrários e que este antagonismo é fruto da opressão, representa uma análise de vanguarda, de uma lucidez ofuscante, ainda mais se comparada à visão teológica do poder, dominante em sua época. Para ele, a luta dos contrários expressa conflitos sociais que são legítimos, e, mais do que isto: constituem o motor da vida social.
Foi preciso esperar o século XIX, para que tal interpretação voltasse à tona, agora inserida na dialética marxista da luta de classes. Análise demolidora, revolucionária, da ilusão ideológica entretida pela Igreja, para quem a estratificação social existente no período medieval era natural, expressão da vontade divina, da qual seria derivado o “bem comum”, supostamente construído pela complementaridade dos interesses das classes superiores e inferiores (aristocracia hereditária e servos).
O título do capítulo IV, do Livro I, A desunião entre o povo e o Senado de Roma foi a causa da grandeza e da liberdade da República, da obra do notável pensador de Florença. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio, representa uma síntese lapidar desse capítulo. Maquiavel via no livre jogo dos interesses sociais, no entrechoque dos contrários, o exercício consciente da cidadania, a fonte geradora do progresso social. Consequentemente, a melhor forma de se garantir a liberdade, e a estabilidade nas relações sociais.
Interpretando Maquiavel, Bignotto afirma que “Mais radicalmente ainda, podemos dizer que é da propensão ao conflito que nasce a possibilidade de liberdade. A liberdade é, portanto, o resultado dos conflitos, uma solução possível de uma luta que não pode ser extinta por nenhuma criação humana (1991:87).
Vê-se que Maquiavel enfatiza a importância do dissenso, o ingrediente que mais qualifica a democracia. Esta, para existir plenamente, necessita não somente ostentar como fundamento “regras de jogo”, previamente estabelecidas, aceitas por todos, mas também incorporar, nas suas leis e na sua práxis, o reconhecimento efetivo do contraditório, do diferente, daquelas forças sociais que não estão necessariamente dispostas a aceitar os valores dominantes da sociedade de que fazem parte.
Para avaliar o pioneirismo de Maquiavel, importa ressaltar que a ideologia dominante, até nossos dias, continua presa à concepção segundo a qual as relações sociais são naturalizadas, e o Estado considerado o promotor do “bem comum”.
No capítulo em análise, o autor dos Comentários mostra também que o regime republicano, baseado na garantia das liberdades e na existência de leis, é o mais eficaz para manter a ordem, com o mínimo de custo social e político.
Assim, para Maquiavel, “todas as leis para proteger a liberdade nascem da sua desunião, como prova o que aconteceu em Roma, onde, durante os trezentos anos e mais que transcorreram entre os Tarquínios e os Gracos, as desordens havidas produziram poucos exilados, e mais raramente ainda fizeram correr o sangue. Ao contrário, fizeram nascer leis e regulamentos favoráveis à liberdade de todos”.
A conclusão (paradoxal e inaceitável para os que não raciocinam dialeticamente) é de que há relação de causalidade e interação recíproca entre ordem e desordem, contestação e lei, disciplina e exercício livre da cidadania, boa educação e “essas desordens que quase todos condenam irrefletidamente” (1994: 31).
Um dos melhores exemplos sobre os avanços obtidos no embate entre forças antagônicas, em Roma, diz respeito ao aprimoramento da lei, no sentido de mais igualdade, e ao reconhecimento de direitos de cidadania para os “oprimidos”, os plebeus, originados na Greve do Monte Sagrado, ocorrida em 495 a.C. Esta consistiu na recusa dos plebeus em ir à guerra para a defesa de Roma, escaldados pelo não cumprimento de promessas anteriores, por parte das autoridades da República. Em lugar disto, retiraram-se para um monte próximo daquela cidade e lançaram o embrião de uma urbe, habitada somente por plebeus. Estes queriam mais segurança; mudança da lei sobre o endividamento (que resultava na prisão do devedor); a posse de terras e, sobretudo, a criação de uma magistratura que os protegesse do arbítrio dos poderosos.
Foi como conseqüência deste ato de rebeldia, que as classes subalternas conseguiram, mais adiante, a revogação da lei que permitia prisão por dívidas; o reconhecimento do direito dos seus integrantes de casar com membros de famílias patrícias e, sobretudo, a criação dos tribunos da plebe, magistrados recrutados nessa classe social, dotados de imunidade, e, até mesmo, do direito de apor o seu veto a quaisquer leis ou decisões emanadas do aristocrático Senado Romano.
Conforme destaca Maquiavel: “Atentemos para o fato de que de que tudo de que melhor se produziu nessa república (a romana) provém de uma boa causa. Se os tribunos (da plebe) devem origem à desordem, esta desordem merece encômios, pois o povo, dessa forma, assegurou participação no governo. E os tribunos foram os guardiões das liberdades romanas” (1994:32). Vê-se, pois, que do embate dos contrários surge o novo, e a desordem aparece, em última instância, como a fonte geradora da liberdade, da ordem e do progresso.
Do até aqui exposto depreende-se que a desordem, para gerar progresso, necessita da mediação do Estado e de leis que a sancionem, isto é, que incorporem o que os conflitos produziram de novo. Assim, se Maquiavel concebe a justiça, não como a aplicação de princípios éticos imutáveis, mas como uma expressão possível do conflito de classes, estes devem, sempre, “expressar-se- através de mecanismos legais, sob pena de destruírem o tecido social”.
É, pois, em um regime de leis que pensa Maquiavel quando fala das repúblicas. “A sociedade justa é, portanto, a dos conflitos, mas é, sobretudo, a que em seus excessos é capaz de encontrar uma solução pública para o conflito de seus cidadãos” (BIGNOTTO, 1991: 95).
E este autor cita o exemplo dos condotieri de Florença, Savonarola e Soderini, para mostrar que malograram por não terem conseguido apreender a dinâmica da sociedade em que vivem “procuravam vivamente a estabilidade, sem se dar conta que para isso era preciso enfrentar o profundo dilaceramento do seu corpo social. O papel do Estado não é, então, o de mediador neutro, ou de juiz impessoal, mas o de se opor, pela força das leis, à ação destruidora dos desejos particularistas (1991: 99).
E acrescenta: “Os homens podem até mesmo procurar o bem comum, como foi o caso de Soderini, mas serão sempre prisioneiros da ilusão jurídica se forem incapazes de ver que o corpo social comporta uma fratura que nehuma constituição pode desconhecer” (1991:100).
Participação popular na gestão pública: Roma e Brasil
Refletir sobre o legado de Maquiavel é de grande importância para os que, na atualidade, se interessam pela democracia. A lição maior do secretário florentino é a que aponta para a relação indissociável entre o efetivo exercício da liberdade e o livre jogo das forças portadoras de interesses antagônicos. E a que mostra ser a luta dos contrários, fator de estabilidade e progresso, quando tal embate consegue incorporar a produção de uma nova legalidade.
Esta passagem dos Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio, entre tantas outras, justifica o epíteto de “precursor da democracia” atribuído a Maquiavel: “O desejo que sentem os povos de ser livres raramente prejudica a liberdade porque nasce da opressão ou do temor de ser oprimido. E se o povo se engana, os discursos em praça pública existem precisamente para retificar suas idéias: basta que um homem de bem levante a voz para demonstrar com um discurso o engano do mesmo. Pois o povo, como disse Cícero, mesmo quando vive mergulhado na ignorância, pode compreender a verdade, e a admite com facilidade quando alguém de sua confiança sabe indicá-la” (1994:32).
Em outras palavras: a participação cidadã dispensa a tutela dos Grandes (e a das vanguardas iluminadas, conforme a história recente demonstrou). Essa práxis está na base da dialética de transformação social, que se movimenta no entrechoque dos interesses conflitantes. É dele que nasce o novo, sob a forma de mais progresso, mais liberdade, e leis consentâneas com tais avanços.
Maquiavel valoriza o exercício da cidadania, tendo exaltado a instituição do Tribunato, destinado a proteger a plebe da arrogância dos Grandes. É ele, na antevisão genial do mestre florentino, que assegura a “participação no governo” – o que permite estabelecer um parentesco, ou mesmo, uma linha de continuidade com os modernos instrumentos de democracia participativa, como os Ombudsman e, especialmente, os Defensores del Pueblo).
Nas palavras de Constela: (…) Como el água que busca el nível mas bajo para discurrir naturalmente desde su fuente, la función tribunícia reapareció al correr del tiempo y se presentó bajo la figura del ombudsman y com mayor propriedad de lenguaje en la institución del Defensor del Pueblo (2010, p. 315).
Mas não “reencarnaram-se” no Brasil. Os defensores dos direitos do cidadão tupiniquins (o Ministério Público (MP), no âmbito judicial e os ouvidores, no administrativo) pretendem ostentar proximidade identitária com os Defensores del Pueblo de Iberoamerica e com o ombusman europeu, que seriam manifestações modernas do Tribunato.
Contudo, não a têm. Primeiramente, porque ambos carecem de qualquer legitimação democrática. Ademais, têm, também, sua autonomia limitada: os integrantes do Parquet por terem os seus ouvidores designados pelos próprios pares, estando sujeitos às injunções corporativas, que têm se revelado fortes, enquanto os do Poder Executivo e Legislativo, regra geral, são nomeados pelo gestor e demissíveis ad nutum (LYRA, 2011: p. 75).
Portanto, estamos, em relação à essa questão especifica, atrasados em relação à Roma antiga, onde os Tribunos eram, escolhidos pelos cidadãos plebeus, dotados de imunidade e do direito do veto às decisões dos governantes. Com efeito, o Tribunato foi gerado nas lutas da plebe romana contra a nobreza. Existem, até, estudiosos que consideram que: “la institución del Tribunado fue la primera gran conquista del proletariado romano, la que dio el instrumento legal para alcanzar también las demás por el camino de la justicia social”. Razão pela qual “el año 494 a.c es muy importante en la historia de la Urbe e de la democracia” (CONSTELA, 2008, p.38).
Diferentemente dos Defensores del Pueblo (que correspondem aos Ombudsman europeus) que são, na sua maioria, independentes e escolhidos democraticamente, o que temos, no Brasil, como já visto, são “Ouvidores do Rei”, o qual estabelece os limites da sua autonomia (LYRA: 2012, p, 185).
Destarte, a construção de uma autêntica esfera pública da cidadania só poderia ser forjada por instrumentos, dialeticamente complementares, da democracia direta (plebiscito, referendo, recall e consultas populares) e da democracia participativa (ouvidorias autônomas, conselhos de políticas públicas e orçamento participativo independente do gestor).
Trata-se de desconstituir, pacificamente, a institucionalidade jurídico-política em vigor para que esta dê lugar a uma nova espacialidade pública, híbrida, na qual a “cidadania ativa” se torne o epicentro da práxis política” (LYRA:1997, p.25-28).
Maquiavel:precursor da democracia
No pensamento dialético de Maquiavel, minuciosamente dissecado por Toni Negri, “a ordem das coisas encontra em sua base a ação, a dissensão – motor e sentido do processo histórico a ser constituído pela práxis humana que se organiza na desunião universal, e é através da desunião que descobre e organiza o poder constituinte” (2002:127).
Outro aspecto indicativo da índole democrática do pensamento de Maquiavel é sua proposta de criação de uma milícia armada, recrutada no povo para defender a Cidade-Estado, e não composta por mercenários pagos. Portanto, “se o Estado se arma e se organiza como Roma, se os cidadãos experimentam diariamente seu valor e sua sorte, conservarão a coragem e a dignidade, qualquer que seja a situação que enfrentem” (1994, p.395). Na interpretação de Negri, com a construção da milícia popular “a multidão se faz una e a democracia nasce armada” (NEGRI, 2002, p. 121).
A reiterada valorização do protagonismo popular, a elevação à categoria de “príncipe coletivo” de um povo dotado de virtù, como o romano, se sintonizam com o “parti pris” de Maquiavel com a plebe. Sempre melhor avaliada do que os grandes, que querem, sem cessar, explorá-la cada vez mais. Nas suas palavras: “o povo é mais prudente, menos volúvel e, num certo sentido, mais judicioso do que o Príncipe. Não é sem razão que se diz ser a voz do povo a voz de Deus. Com efeito, vê-se a opinião universal produzir efeitos tão maravilhosos em suas previsões que parece haver nela uma potência oculta, a predizer o bem e o mal […] Se o povo se deixa às vezes seduzir […] isto ocorre ainda mais freqüentemente com os governantes, que se deixam arrastar por suas paixões, mais numerosas e difíceis de resistir do que as do povo”.
E acrescenta: “se as monarquias têm durado muitos séculos, o mesmo acontece com as repúblicas. Mas umas e outras precisam ser governadas por meio de leis. O Príncipe que se pode conceder todos os caprichos geralmente é um insensato; e o povo que pode fazer tudo o que deseja comete muitas vezes erros imprudentes. No caso de um Príncipe ou um povo submetido a leis, o povo terá virtudes superiores às do Príncipe. E se considerarmos os dois como igualmente livres de qualquer restrição, veremos que os erros do povo são menos freqüentes, menos graves e mais fáceis de corrigir” (1994, p. 181-182).
Essas concepções inserem Maquiavel na corrente histórica dos grandes pensadores que, desde a Antigüidade, contribuíram, com suas reflexões, para a construção dos ideais de liberdade e de democracia. Aliás, por fazer do povo o suporte da única honestidade possível a ser encontrada na sociedade e pelo fato de “desvalorizar radicalmente as pretensões dos grandes à virtude”, importantes estudiosos o consideram o “primeiro pensador democrático” (MANENT, 1990:31) ou o “profeta da democracia” (NEGRI, 2002): 103).
Contudo, o fato de Maquiavel apresentar teses com ingredientes fortemente democráticos, muito à frente de seu tempo, não o faz propriamente um democrata, haja vista que não existia, nem podia existir, democracia nas condições materiais próprias à época em que viveu. Destarte, o secretário florentino nunca vislumbrou a possibilidade de eliminação de classes existentes – nem incitou os pobres à sublevação – tais questões não se colocavam no seu horizonte histórico. Por isso, se detém na percepção do antagonismo de classes. Não chegou a antever, como resultado dessa luta de contrários, uma síntese dialética libertadora, ou seja, o advento de uma sociedade sem explorados e exploradores.
Mas soube identificar o “contrapeso da plebe”, atribuindo a esta a condição de sujeito capaz de forjar espaços de liberdade e instituições – como o Tribunato – de que o povo necessitava para refrear a ganância desmedida dos opressores. Assim, a análise maquiaveliana visa, dialeticamente “a destruição da continuidade e a fundação da liberdade. Ao modelo biológico, ele oporá sempre o modelo da desunião e da ruptura; à dialética naturalista das formas de Estado, ele opõe as determinações bem concretas das lutas de classe” (NEGRI, 2002:166).
A afirmação de Maquiavel (escandalosa, na dicção de Lefort) para os “sábios” de Florença e demais componentes dessa República medieval de que as leis que se fazem a favor da liberdade, nascem da divisão entre os Grandes e o povo, “impede o leitor de limitar sua interpretação à história de Roma. Ela o obriga a verificar sua aplicação no Estado moderno e a se interrogar sobre o discurso político de seu tempo” (LEFORT: 1986, p .475).
A lucidez e o caráter pioneiro da obra de Maquiavel podem ser melhor apreciados, contrastando sua contribuição para a secularização da vida política com as trevas em que mergulharam, na atualidade, incipientes democracias o Brasil, onde se pretende estabelecer a tutela da religião sobre a política.
Considerações finais
Em pleno século XXI, se assiste, com toda força, ao retorno de concepções obscurantistas, no Brasil e em vários outros países, que têm deixado a sua marca nos seus programas de governo e nas suas políticas públicas, quando conquistam o poder. Uma das suas principais características ideológicas, no Brasil, é “o fundamentalismo, especialmente o evangélico, que avança sempre mais, provocando uma mistura tóxica entre o sagrado e o profano” (PACHECO: 2020).
Esse retrocesso pode ser melhor compreendido, comparando-se o pensamento de Maquiavel com o obscurantismo religioso atualmente em ascensão. Há quinhentos anos, ele secularizou o Estado, expulsando a religião da esfera política, ao explicar seu surgimento e o da própria religião, como produto, exclusivamente, da práxis humana.
O secretário florentino conferiu papel relevante à religião, mas somente como meio extremante eficaz de coesão social, pouco lhe interessando se seus preceitos eram verdadeiros ou falsos. A religião é tanto mais importante quanto “para garantir a comunidade política coesão e duração, o fundamento da obediência precisa ser buscado em algo diverso da força” (AMES: 2006).
O capítulo décimo primeiro do livro Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio, a sua mais destacada obra, deixa claro esse entendimento ao afirmar que Rômulo, o primeiro monarca de Roma “voltou o olhar para a religião como o agente mais poderoso da manutenção da sociedade” (Maquiavel: 1994, p. 57).
No mesmo sentido, o capítulo décimo terceiro dessa obra mostra “como os romanos se serviram da religião para organizar o governo da República em seus empreendimentos e reprimir desordens” (1994: p. 63). Mas ela se mostra nociva, produzindo um efeito desestabilizador, quando partido ou grupo político dela se apossa para utilizá-la em seu proveito. Assim, Maquiavel enfatiza, no capitulo décimo segundo dos Comentários, que “quando os oráculos começam a tomar partido dos poderosos e a fraude é percebida, os homens se fazem menos crédulos, dispostos a contestar a ordem estabelecida” (1994: p. 61).
O que Maquiavel denuncia ocorre, hoje, no Brasil. O voto evangélico, na sua maioria, serviu de trampolim para a ascensão de um suposto “mito” (o Messias Bolsonaro) à Presidência da República (O VOTO: 2018). Os “oráculos” – no caso, o líderes evangélicos (Malafaia, Edir Macedo, R.R. Soares et caterva) “que tomaram o partido dos poderosos”, pretenderam ungir o Messias de uma suposta escolha divina. Alguns deles foram além, revelando a intenção de criar um “Estado evangélico”. (BARROS E ZACARIAS: 2019).
Mas o “Mito” não está só. A Hungria, por exemplo, abandonou a sua tradição laica, unindo-se com o Brasil na inserção da religião como política pública. A sua Constituição, agora emendada, deixa claro que o país é cristão, e que as crianças devem ser educadas com esses valores (CHADE: 2020).
Com o seu potencial destruidor, Bolsonaro encarna uma verdadeira antítese do “moderno príncipe” (O VOTO: 2018), nos fazendo suportar “uma forma de poder em que se combinam a anti-ideia, a obturação dos canais da percepção, a disfunção da experiência e a recusa ao conhecimento” (FREITAS: 2020).
A abordagem pioneira de Maquiavel fez dele um pensador revolucionário, pois nos ajudou a perceber, com translúcida nitidez, a sociedade e a política do seu tempo – como elas efetivamente eram. Contribuiu, portanto, para delinear os contornos do Estado Moderno, a sua ética, as suas funções de árbitro dos conflitos sociais cuja dinâmica, por ele enaltecida, constitui a mola propulsora da práxis democrática contemporânea.
*Rubens Pinto Lyra é Professor Emérito da UFPB. Autor, entre outros livros, de Le Parti Communiste Français et l’intégration européenne (Centre Européen Universitaire).
Referências
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