Por NATÁLIA FINGERMANN & LUÍS FERNANDO VITAGLIANO*
Aqueles que não conhecem as atribuições de cada ente da federação não se incomodam com o discurso do presidente
Bolsonaro colocou os governadores e prefeitos numa armadilha. Desde que o STF julgou que a questão do Covid-19 era federativa e que cada membro da federação teria autonomia para atuar, a proposital incompetência de Pazuello exerce pressão direta nos governos estaduais e municípios, que tentam sozinhos encontrar uma saída para suas regiões. Uma coisa são os fatos e os engalfinhamentos provocados por um governo de desajustados negacionistas, outra coisa é como a população percebe a questão da vacina da Covid-19 e como isso afeta, positivamente, a popularidade de Bolsonaro.
Depois de um período de protagonismo, com a queda da arrecadação tributária nas esferas estaduais e municipais e a necessidade de se aumentar os gastos para viabilizar a vacina, os estados e municípios se tornaram reféns da estratégia de descolamento da doença que faz o governo federal na negação da crise sanitária ou, pelo menos, na negação da sua responsabilidade. Asfixiados pela questão orçamentaria, muitas lideranças locais veem como única saída à falta de apoio federal aderir ao negacionismo falastrão de Bolsonaro. O que, por si só, reforça a versão governamental da conjuntura.
Assim, mesmo com a proatividade dos governadores e prefeitos, a falta de resultados leva ao não reconhecimento dos esforços pela população. O senso comum julga que os poderes mais próximos têm maior responsabilidade na provisão dos serviços públicos. O prefeito deve zelar mais pela saúde da população no município que o governador e, mais distante está o presidente. Vivemos na logica da responsabilidade atribuída pela proximidade do governante. Assim, aqueles que não conhecem as atribuições de cada ente da federação não se incomodam com o discurso do presidente que supõe ausência de responsabilidade da União com a pandemia.
Para complicar o contexto, parte da população se convenceu (ou foi convencida) de que a inoperância do Ministério da Saúde é resultado das brigas políticas criadas por esses governadores e prefeitos. Os empresários também são vistos como empecilhos à vacinação, principalmente, quando Bolsonaro declara que fará um boicote a compra de seringas devido ao abuso no preço cobrado pelo mercado.
Basta frequentar uma farmácia em tempos de pandemia e conversar com um idoso aleatoriamente para identificar como desinformação circula entre a população. O caso da senhora, a seguir, é um exemplo. Preocupada com a sua saúde e de seus familiares, a idosa foi a farmácia comprar suas próprias seringas para conseguir tomar a vacina disponível a partir do dia 25 de janeiro. Segundo ela, o Bolsonaro tinha finalmente conseguido comprar as vacinas, mas o mercado e a ganância dos empresários estavam inviabilizando seus planos. Pior, brigou com o pobre do atendente que não sabia qual seringa deveria vender porque não sabia o volume da dosagem. Pior ficou quando soube que o plano de vacinação para 25 de janeiro é de Dória, para São Paulo, e sem necessidade da compra de seringas por parte da população.
Assim, a confusão criada em torno da vacinação abre interpretação para qualquer teoria alucinada que engloba desde a ideia sobre o comunismo levantada por Elba Ramalho até a busca desenfreada por seringas com preços exorbitantes em farmácias devido aos gananciosos capitalistas de mercado. Foi como a polêmica em torno do preço e da licitação das seringas repercute como problema criado pelos “outros”. Pois, na lógica do bolsonarismo, haverá sempre uma entidade metafisica chamada “outros” para serem os culpados. Os “outros” podem ser os governadores, os prefeitos, os empresários, o STF, o Centrão… enfim, mas o algoz preferido para esses “outros” é a esquerda, o PT, esses esquerdistas todos aí.
O ponto a ser analisado é que o projeto de eterna responsabilização dos “outros” e “vitimização” de Bolsonaro e seus seguidores, é o combustível para o presidente articular e fortalecer a extrema direita brasileira. Hoje, essa nova direita está mais radical, orgânica e mobilizada para ir as ruas para defender suas lideranças e bandeiras. É o mesmo perfil e são as mesmas estratégias de mobilização da nova direita que invadiu com bastante facilidade o Capitólio nos EUA. Mesmo sem ter muitos recursos e materiais para isso, a conquista das mentes e corações da classe média branca e das forças de segurança de baixo escalão facilitam a ação desses sujeitos. No Capitólio, essas forças de segurança pareciam estar em acordo com a marcha insensata dos republicanos trumpistas. Basta perceber que o uso de armas de fogo (como vimos nas manifestações do ‘Black Live Matter‘) foi postergado para o uso somente após a entrada.
Com ensaio estadounidense, a fórmula do golpe no Brasil está pronta: engajamento conservador antissistêmico e forças de segurança lenientes com os protestos. Uns se organizam para a ocupação de espaços públicos de governo e os outros facilitam o acesso dos seus. Em 2022, O Brasil estará bastante vulnerável. Porque se Bolsonaro não fará um bom governo, mas não secontentaráem ter exposta sua incompetência, vai culpar os “outros” que inviabilizaram seus planos. Daí se somará a acusação de fraude eleitoral, para colocar as instituições contra o presidente. E o chamamento público a sua defesa.
O golpe parlamentar sofrido por Dilma Rousseff mostrou não apenas a fragilidade das nossas instituições na defesa do estado de direito, mas que essas instituições também são sensíveis ao argumento da “maioria” construída. Por isso é perigoso o poder de mobilização da extrema direita, não porque tem maioria, mas porque pode gritar mais alto e colocar em xeque a transição de governo de 2022.
Que pode haver golpe; não sejamos ingênuos em duvidar. Mas, temos tempo e podemos nos preparar. Também é preciso levar em consideração que, qualquer reação a escalada do golpe bolsonarista, não pode limitar-se ao institucional. Devemos trabalhar as forças populares capaz de garantir os resultados. Porque cada vez mais fica provado que a direita radical não tem maioria. Trump não teve maioria nem em 2016 (quando ganhou no colégio eleitoral), nem em 2020, quando perdeu em ambos os colégios. Bolsonaro ganha com a abstenção e o não voto. Ambos se apoiam em um engajamento político agressivo e sectário de grupos majoritáriosde brancos de classe média que se desesperaram com as perdas dos seus privilégios. Portanto, a questão aqui não é o apoio quantitativo que Bolsonaro têm. Porque não tem maioria. Mas, o engajamento das suas tropas o faz parecer forte e o apoio que as forças de segurança pública favorecem a defesa dos ideais bolsonaristas entre as pessoas armadas.
Essa capacidade de diálogo quase que exclusivo com as forças de segurança torna vulnerável a democracia. E a reação a isso só pode vir de uma mobilização popular contundente. Cada vez mais, é preciso preparar as forças políticas progressistas para uma reação capaz de confrontar os apoiadores de Bolsonaro nas ruas e em casa. Um soldado bolsonarista só recuará quando chega em casa e for repreendido pela sua mãe. Um oficial que defende Bolsonaro deve dar satisfação aos seus próximos, aos vizinhos, aos parentes não radicais. Portanto, para 2022 não bastará vencer Bolsonaro. Será preciso construir a vitória em cada manifestação em cada estratégia, em cada campanha, entregando a maioria, não apenas o voto, mas também a municiando do argumento contra aqueles que possam usar a força contra a razão.
*Natalia Fingermann é professora do curso de Relações Internacionais na Universidade Católica de Santos (UNISANTOS).
*Luís Fernando Vitagliano é mestre em ciência política pela Unicamp.