A recapitulação da guerra

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por GONZALO LIRA*

Trata-se de uma clássica guerra por procuração e a Ucrânia pagará o preço

Recapitulação rápida para aqueles que não estão acompanhando o que tem acontecido na Ucrânia, mas querem entender: 24/02, os russos invadiram do sul, sudeste, leste e norte, numa campanha relâmpago. Os russos invadiram com 190 mil soldados – contra 250 mil tropas de combate da Ucrânia.

A Rússia colocou 30 mil soldados perto de Kiev – longe de ser o suficiente para capturar a cidade, mas o suficiente para prender cerca de 100 mil defensores das Forças Armadas da Ucrânia. A Rússia também lançou vários eixos de ataque, com reforços em prontidão (incluindo uma famosa coluna de tanques de 40 km de comprimento), para ver onde poderiam ser necessários.

O fundamental é que a blitz russa em vários eixos preveniu uma iminente blitzkrieg ucraniana. As Forças Armadas da Ucrânia estiveram prestes a invadir o Donbas. Esta era a motivação imediata para a invasão russa: para vencê-los com um soco e sabotar a iminente invasão ucraniana – o que fizeram.

Além disso, ao atacar do norte e do sul, os russos interromperam a cadeia de fornecimento de armas da OTAN. Se a Rússia só tivesse atacado no leste para evitar a invasão do Donbas pelas Forças Armadas da Ucrânia, haveria um corredor aberto para reabastecimento a partir do oeste. Ameaçando Kiev, isso parou. Assim, as principais forças das Ucrânia ficaram retidas no leste do país, com o resto das forças isoladas e presas – sem reabastecimento fácil a partir do oeste. A Rússia então passou a atingir os elos de comando/controle e reabastecimento das Forças Armadas da Ucrânia, isolando e imobilizando ainda mais as forças ucranianas.

Os russos logo controlaram nominalmente terras do tamanho do Reino Unido na Ucrânia – mas era um controle tênue. O sul da Ucrânia estava mais completamente sob controle da Rússia. As Forças Armadas da Ucrânia em torno de Kherson simplesmente dispersaram-se. Mariupol tornou-se um claro campo de batalha, assim como o próprio Donbas.

Fazer curto-circuito na iminente invasão de Donbas – o que fizeram. Assustar o regime Zelensky para negociar um acordo político – o que não conseguiram fazer.

Kiev não tinha intenção de negociar um cessar-fogo devido às ordens dadas a eles por Washington: “lutar contra a Rússia até o último ucraniano!”. Além disso, os capangas neonazistas ao redor de Volodymyr Zelensky o ameaçaram caso ele negociasse e se rendesse porque eles estão aterrorizados com os russos.

Assim, Volodymyr Zelensky lançou uma campanha massiva de relações públicas e propaganda, principalmente para motivar as forças das Ucrânia a lutar até a morte. Mitos foram criados (o Fantasma de Kiev), ataques de falsa bandeira foram realizados (Bucha, Kramatorsk) e histórias implacáveis da mídia foram implacavelmente açoitadas.

Os russos continuaram negociando e tentando não destruir a infraestrutura da Ucrânia. Na verdade, no início, eles estavam até tentando minimizar as baixas das Forças Armadas da Ucrânia. A evidência disso é avassaladora: a Rússia não atingiu a infraestrutura civil – água, eletricidade, telefone, transporte. Eles não atingiram os quartéis das Forças Armadas da Ucrânia, centros de comando, prédios governamentais, etc.

A prioridade inicial dos russos era um acordo negociado. Mas, no final de março, eles perceberam que isto era impossível. Foi por isso que a Rússia se retirou de Kiev. Não fazia sentido colocar homens perto da cidade quando eles não estavam fazendo o que deveriam fazer – exercer pressão política sobre o regime de Volodymyr Zelensky para negociar. Esta retirada foi reivindicada como uma “vitória” na “Batalha de Kiev”!

A partir do final de março, os russos recuaram e solidificaram seu controle sobre a área que haviam capturado, cedendo para as Forças Armadas da Ucrânia as áreas que ou eram inúteis ou potencialmente muito caras para controlar. A máquina de propaganda da Ucrânia chamou todos esses recuos de “vitórias”.

Ainda havia um vislumbre de que a guerra poderia terminar em um acordo negociado, mas que acabou no início de abril. Após as conversas de Istambul em 30 de março, o lado ucraniano concordou cautelosamente com alguns compromissos, mas em uma semana desautorizou publicamente essas concessões.

Foi quando os russos perceberam que o regime de Volodymyr Zelensky era inapto para acordos: seus mestres de Washington, Victoria Nuland e Anthony Blinken em particular, não permitiriam a paz. Eles querem que esta guerra enfraqueça a Rússia. É uma clássica guerra por procuração e a Ucrânia pagará o preço.

Algo mais que os russos perceberam: sanções. Elas machucaram, mas a Rússia deu a volta por cima com notável rapidez. Na verdade, elas não machucaram tanto assim. Mas o roubo dos 300 bilhões de dólares em reservas estrangeiras da Rússia pelo Ocidente machucou – muito. Os russos perceberam que estavam numa guerra total com o Ocidente e, como suas reservas estrangeiras foram perdidas para sempre (provavelmente para serem roubadas por políticos ocidentais corruptos), os russos agora não têm mais nada a perder. Ao roubar suas reservas, o Ocidente perdeu todo o poder sobre a Rússia.

Isto selou o destino da Ucrânia: os russos agora não têm nenhum incentivo para desistir do que conquistaram. Isso custou-lhes muito em termos de homens e riquezas. E eles sabem que não podem negociar um cessar-fogo. O regime de Volodymyr Zelensky irá simplesmente rompê-lo mais adiante.

Os russos pretendem conquistar e anexar permanentemente todo o sul e leste da Ucrânia. É por isso que sua estratégia no campo de batalha mudou drasticamente: agora eles estão levando a cabo uma lenta e metódica trituração e destruição das Forças Armadas da Ucrânia.

A guerra nos primeiros 30 dias foi rápida, com simulações, capturando nominalmente vastas porções do território ucraniano, com o objetivo de pressionar o regime de Zelensky para um acordo negociado. Mas a total ruptura financeira e política do Ocidente com a Rússia significa que eles não têm nada a perder. E eles têm muito a ganhar: o Donbas é rico em minerais, as terras agrícolas realmente produtivas da Ucrânia estão no leste e no sul, Carcóvia é uma grande cidade industrial, o mar de Azov tem reservas incalculáveis de gás natural. E, ao lado disso, o povo os ama. Por que os russos desistiriam agora deste prêmio tão duramente conquistado?

E eles ganharam – não se enganem. Pergunte a qualquer militar que não seja um porco do sistema, e ele lhe dirá: não há como as Forças Armadas da Ucrânia reconquistar seu país. Eles não têm blindados, não têm defesa aérea, não têm combustível, não têm comunicações – acabou.

A grande tragédia é que muitos milhares de jovens morrerão, e morrerão desnecessariamente, a fim de adiar o inevitável. Estes corajosos rapazes terão lutado tão valentemente – e morrido tão jovens, tão cruelmente – por causa da maldade do regime de Zelensky. Essa é a dura verdade.

E, no final, este será o mapa que permanecerá – uma imagem amarga do futuro da Ucrânia. A Rússia despejará bilhões em seu território recém-adquirido. Ela prosperará e florescerá. Mas o estado remanescente da Ucrânia será deixado pobre, destruído, esquecido. Uma tragédia.[1]

 

*Gonzalo Lira é romancista e cineasta. Autor, entre outros livros, de Counterparts (Putnam and Sons).

Tradução: Fernando Lima das Neves.

 

Nota


[1] Complementação por Bernhard Horstmann (também conhecido como Moon of Alabama) desta recapitulação: “Eu concordo com o acima exposto, exceto por dois pequenos detalhes. A mudança em Kiev não teve como objetivo dificultar o reabastecimento das tropas ucranianas no Donbas, mas “corrigir” o potencial de reforço em torno da capital. Isso permitiu às tropas russas abrir o corredor da Crimeia até a fronteira russa, bem como atravessar o Dnieper no sul e tomar Kherson. Esses foram os movimentos mais importantes para o desenvolvimento futuro da guerra.

Também não acredito que a Rússia “anexará” as áreas que está libertando do controle fascista. Uma vez libertado, o povo dessas áreas votará para tornar-se independente da Ucrânia, e as várias regiões, Donbas, Luhansk, Kherson, Odessa, formarão estados que se tornarão parte da República Federal da Nova Rússia. Esse país será reconhecido e apoiado pela Rússia e seus aliados”.

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Alexandre de Lima Castro Tranjan Kátia Gerab Baggio Leonardo Boff Remy José Fontana Paulo Martins Eleonora Albano José Machado Moita Neto Marjorie C. Marona Jorge Branco Michael Löwy Gilberto Maringoni Érico Andrade Rodrigo de Faria Flávio R. Kothe Flávio Aguiar Alexandre de Freitas Barbosa Rubens Pinto Lyra Ari Marcelo Solon Daniel Costa Salem Nasser Eugênio Trivinho Matheus Silveira de Souza Ronald León Núñez Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Paulo Nogueira Batista Jr Osvaldo Coggiola Eliziário Andrade Renato Dagnino João Carlos Salles Celso Favaretto Priscila Figueiredo Andrew Korybko Henry Burnett Anselm Jappe Luiz Renato Martins André Singer Vinício Carrilho Martinez Tadeu Valadares Bruno Fabricio Alcebino da Silva Armando Boito Leonardo Sacramento Lucas Fiaschetti Estevez Yuri Martins-Fontes Eleutério F. S. Prado Jean Pierre Chauvin João Lanari Bo Fábio Konder Comparato Berenice Bento Carla Teixeira Samuel Kilsztajn Ricardo Antunes Jean Marc Von Der Weid Denilson Cordeiro Daniel Brazil Rafael R. Ioris Paulo Sérgio Pinheiro Chico Whitaker Mariarosaria Fabris Alexandre Aragão de Albuquerque Gilberto Lopes Carlos Tautz Bruno Machado Luís Fernando Vitagliano Ronald Rocha Valerio Arcary Luiz Eduardo Soares Paulo Fernandes Silveira Marcos Aurélio da Silva Annateresa Fabris Slavoj Žižek Leda Maria Paulani Airton Paschoa Marcelo Módolo Antonino Infranca Lincoln Secco Andrés del Río Milton Pinheiro Luiz Bernardo Pericás João Sette Whitaker Ferreira Jorge Luiz Souto Maior José Costa Júnior Ladislau Dowbor Marcus Ianoni Tarso Genro Fernando Nogueira da Costa Everaldo de Oliveira Andrade Liszt Vieira João Carlos Loebens Gabriel Cohn Mário Maestri Michael Roberts Sandra Bitencourt Luis Felipe Miguel Marcos Silva Walnice Nogueira Galvão Celso Frederico José Luís Fiori Francisco de Oliveira Barros Júnior José Micaelson Lacerda Morais Caio Bugiato Thomas Piketty Afrânio Catani Julian Rodrigues Eugênio Bucci Juarez Guimarães Michel Goulart da Silva Paulo Capel Narvai Ricardo Fabbrini José Dirceu Vladimir Safatle Leonardo Avritzer Bento Prado Jr. André Márcio Neves Soares José Raimundo Trindade Elias Jabbour Marilia Pacheco Fiorillo Dennis Oliveira Tales Ab'Sáber Claudio Katz Valerio Arcary Plínio de Arruda Sampaio Jr. Fernão Pessoa Ramos Luciano Nascimento Ricardo Abramovay Gerson Almeida Manchetômetro Antônio Sales Rios Neto Igor Felippe Santos Luiz Marques Eduardo Borges Francisco Fernandes Ladeira Francisco Pereira de Farias Otaviano Helene João Adolfo Hansen José Geraldo Couto Henri Acselrad Dênis de Moraes Bernardo Ricupero Atilio A. Boron João Paulo Ayub Fonseca Luiz Roberto Alves Maria Rita Kehl Antonio Martins Vanderlei Tenório Alysson Leandro Mascaro Ricardo Musse Manuel Domingos Neto Daniel Afonso da Silva Chico Alencar Luiz Carlos Bresser-Pereira Heraldo Campos João Feres Júnior Lorenzo Vitral Benicio Viero Schmidt Marcelo Guimarães Lima Sergio Amadeu da Silveira Luiz Werneck Vianna Boaventura de Sousa Santos Ronaldo Tadeu de Souza Marilena Chauí

NOVAS PUBLICAÇÕES