Por PRISCILA FIGUEIREDO*
Sete poemas
Deméter
O céu escureceu antes da hora,
entre a araucária e a primavera esperei
sem temor, mas tão cansada,
pelo aceno do amado;
a sacola de maçãs pesava enquanto as árvores
balançavam orgulhosas a cabeleira:
nossa casa é fixa, e a sua? já faz horas,
menina, que te vemos errar por aqui;
a estrada é firme e sem deriva, mas sua confusão
lhe dá vertigem, você a desnorteia —
quem se perde se perde para sempre.
Imóvel
É tarde, e nem por isso me apresso;
é tarde, sempre me digo, mas nada acontece:
não mexo uma pá, a mais disponível das servas —
ela não me censura, mas branda e atenta me aguarda
arrebatá-la, como se o messias ou uma fada boa
fosse, em algum momento, aparecer.
Mas continua a ser tarde,
o tempo antes passava e isso foi há tempos;
há muito já não avança, coágulo
de dor e imagem, que nenhum ponteiro de relógio
………………………………………………………………………………[fura.
Passando por um templo evangélico
O que se passa dentro
vem bater no ouvido
dos que estão fora,
nós, os carneiros dispersos
que o recato de um pastor
jamais lograria reunir —
e então nos chamam
pelo microfone.
Tantas vezes se diz “demônio”
que meu ouvido desperta e indaga:
como pode ser gritada
uma palavra tão macia?
É tão ameno esse”mônio”,
eu queria ouvir baixinho…
O teatro do exorcismo ergue a lona,
o diretor está em cena, mas o ator
é falso ator, se desespera e chora.
Não lembro de ter visto
tão ao lado um do outro o cabotino
e o desprovido de artifício.
Eletricamente ampliadas,
frases antigas e imperiosas
de Tobias a Paulo —
mas é o sangue de Jesus
que acalma entre exigentes dízimos
os deserdados do Brasil.
Nunca ouvi
um vestido farfalhar,
as folhas, sim –
é o que ouço agora,
ponho nisso
toda a minha atenção
até distinguir se seu murmúrio
é de alegria ou de pavor.
Os braços esgalhados
a peito com o vento
parecem vir de um tronco
que ginga.
Eis que o alarme se aproxima
obsidiante e imperativo,
bicando nos nervos
pela hora premente
(pois é quase sempre
alguém que vai morrer
seja o camburão branco
preto ou vermelho):
é agora, é agora, é agora!
Como num flashback sem som
a árvore acena, velha mãe
meio torta, cheia de pelanca.
Ventila-se
A ciranda de pás move o ar de cima a baixo,
seria tão fácil me degolarem;
escravos arcaicos, chacoalham os leques sobre mim,
eu coreografo: “mais, agora mais, nem tanto,
senão apanho um resfriado”.
Mais certo que seja uma galé, remando ao ritmo
do meu chicote remoto.
Trabalham tão rápido que me poupam de ver
o quanto escorrem filetes de sangue de suas costas;
podem estar no ar, podem estar na água,
sei que nada é leve para eles,
sua diligência é a mesma dos anões míticos —
o quanto quebram e empurram no interior da Terra
eu não vejo,
de lá apenas saem
para guardar meu sono. Devem
estar cansados, devem estar mortos;
em breve, por um descuido, deixarão cair
minha cama de vidro, sua carga mais leve.
Chuva[i]
chega como ordem de despejo
dando pancadas inclementes
precipita sem aviso
fria e ditatorial
confundindo agendas, separando amantes
arrancando a peruca das árvores
você vem para humilhar
camburão escuro
você me impede de pensar
Sob o barulho prepotente
o que dissermos
é sem futuro
Calça curta[ii]
Chovia muito, mas isso ainda não fora capaz de despertar João Crisóstomo, até que começaram a bater na porta de sua cabana e não parecia ser a chuva. Ele então acordou, deve ter calçado umas sandálias e, esfregando os olhos de sono, a abriu devagar, mas só avistou o rio chacoalhando muito com a chuva e o vento. Uns dedinhos tocaram seu tornozelo – ei, estou aqui! –, era um menino minúsculo, que ele levantou com uma mão depois de se abaixar e, achando muito natural que ele falasse, estranhou, porém, que ele viesse naquela hora acordá-lo. Ele não o conhecia, mas o menininho parecia muito à vontade com ele e lhe pediu, num tom que não parecia duvidar de que fosse ser atendido, que o conduzisse para a outra margem do rio. Crisóstomo era um dos últimos gigantes na Terra, era forçudo, e apesar de achar que a tarefa seria fácil, não deixou de achar o pedido desnecessariamente ansioso, além de importuno – tudo é sempre pra ontem! O menininho insistiu com os olhos e, não vendo nenhuma reação da parte dele, começou a virar o pé para dar meia volta e tomar o seu caminho. Peraí!, disse Crisóstomo, você não quer dormir um pouco aqui e te levo amanhã? Tem um cantinho na minha cama. O menininho disse que não com a cabeça e acrescentou que estava com pressa, pois o mundo inteiro o esperava, e o esperava debaixo de chuva – seria muito chato fazê-lo esperar mais. Bem, pensou consigo, isso tudo é meio desagradável, mas o trabalho será fácil; e se eu fizer esse serviço agora, já vou cumprindo a meta do dia. Crisóstomo então pegou seu casaco e pôs a criança nos ombros, se dirigindo ao rio, que logo começou a atravessar. Todos sabemos o que aconteceu: parece que carrego o mundo nas costas! Oh você carrega quem o fez, nada mais, nada menos. O mundo está me esperando, mas ele pesaria muito, muito mais que eu, pode acreditar, e agradeça por me carregar. Quando concluiu a travessia, Crisóstomo o pôs então no chão, onde se sentou para descansar um pouco, pois estava exausto como nunca. Não tinha sido o trabalho fácil que ele imaginava, ainda mais àquela hora e sem comer. A carga desta vez fora infinitamente maior do que o normal, o que o fez se sentir meio enganado, pois de início ela tinha lhe parecido mínima; ele também pensou, quase se conformando, que esse tipo de logro seria comum de agora em diante, senão pior.
*Priscila Figueiredo é professora de literatura brasileira na USP. Autora, entre outros livros, de Mateus (poemas) (Bem te vi).
Notas
[i] Poema de janeiro de 2016, publicado em plaquete pela Espectro Editorial (Juiz de Fora, 2016).
[ii] Baseado na lenda medieval de São João Crisóstomo.