Por JEAN PIERRE CHAUVIN*
Celebrações que estendem o manto da resignação e fortalecem o espírito supostamente harmônico entre nós
Dois espectros rondam a Universidade.
Um deles atende pelo nome de Concerto Natalino. A exemplo dos especiais que se repetem, quase idênticos, nas emissoras de tevê, todo final de ano a instituição sorri fantasiada de Santa Claus, enquanto despreza as reivindicações de seus servidores docentes e não-docentes por melhores condições de trabalho, estudo e pesquisa. O propósito é óbvio: reiterar a importância de celebrações que estendem o manto da resignação e fortalecem o espírito supostamente harmônico entre nós.
A rigor, não há grande diferença entre os shows do “rei” (porta-voz dos militares desde a década de 1970) e a promoção de cerimônias solenes, que celebram o nascimento de uma personagem bíblica no ambiente dedicado à ciência e à formação do espírito crítico. Ambos os espaços, televisão e universidade, comungam da mesma hipocrisia: festejar uma data cristã no país que, formalmente, separou Religião e Estado desde a Constituição de 1891; preservar a “tradição”, fechando os olhos para as péssimas condições de vida da comunidade que carrega o logotipo da empresa ou universidade.
O outro fantasma é o do empreendedorismo. Por exemplo, quando o banco nomeia um espaço de ensino e rima sua logomarca com “empreender”. Decorre daí que esse slogan, eivado de senso comum, passa a ser um dogma: “o caminho, a verdade e a vida” do estudante sedento por se converter em pessoa física, mas também a meta do professor que não vê problema algum em submeter o seu projeto didático à lógica gerencial. “Quem mal há recorrer ao banco para financiar o meu projeto?”.
Respondo: o mesmo mal que há em reduzir a responsabilidade da instituição em zelar pelos seus e se empenhar na luta por verbas que assegurem a efetiva articulação do tripé ensino, pesquisa e extensão universitária. Quanto mais trabalharmos em aulas superlotadas; cobrirmos “furos” nas grades curriculares; assumirmos aulas de colegas mortos ou aposentados e nos resignarmos com a contratação de colegas em regime temporário, mais alargaremos as brechas para que a universidade imponha o tal “espírito empreendedor”, como se se tratasse de salvaguarda institucional, mas também obrigação extra (captar recursos) para quem leciona, pesquisa, orienta, emite pareceres, dissemina pesquisa e edita livros e revistas.
Há outro fator comum aos concertos do rei na tevê e os concertos natalinos na universidade: ambos reproduzem fórmulas antigas e sem-sentido, em meio ao discurso onipresente da inovação… Alguém objetará, ora, ora, que as contradições são inerentes às mudanças. Replicarei: experimente soar contraditório para testar o éthos benfazejo da instituição. Desde quando o professor passou a ser visto como serviçal de clientes, ávidos não pelo saber ou pelas formas de conhecimento, mas pelo lucro e emancipação financeira?
Talvez fosse o caso de perguntar: “Quem melhor entende de tronos simbólicos?”. O rei ou sua audiência compulsória? O reitor ou os seus súditos em condições precárias de trabalho? Alguém precisa dizer a esses seres que a sala de aula pode discutir tudo, inclusive formas de fazer pesquisa, cooperar com a sociedade e, até mesmo, empreender. O que não podemos admitir é a avalanche de pseudopalestras com títulos bizarros que subestimam a sensibilidade e a inteligência de seus alunos, funcionários e professores.
A sala de aula não é fórum para a modelagem de empresários de si mesmos e devotos de professores metidos a coach. A universidade ganharia muito mais se rediscutisse a primazia do senso comum; a hecatombe provocada pelo utilitarismo pseudoacadêmico; os valores formativos, embutidos no diploma que ela entrega a seus alunos, em cerimônias protocolares e entediantes, a cada semestre.
*Jean Pierre Chauvin é professor na Escola de Comunicação e Artes da USP.