Acordo Mercosul/União Europeia

Painel que adorna a sala de reuniões do Ministro de Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços
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Por PAULO NOGUEIRA BATISTA JR. & MANOEL CASADO*

Em contradição com a tendência global de maior protecionismo, o acordo Mercosul-UE, com suas cláusulas assimétricas e o modelo “carros por vacas”, aprofunda a desindustrialização e consolida uma inserção subordinada do Brasil

1.

Há poucos dias, o Presidente Lula declarou, referindo-se ao acordo Mercosul/União Europeia, que “estamos cedendo mais do que os europeus” para poder assinar o acordo ainda neste ano de 2025. E fez um apelo ao presidente da França, Emmanuel Macron, e à primeira-ministra da Itália, Giorgia Melloni, para que desistam das suas objeções e permitam essa assinatura.

O que está acontecendo? Esse acordo não havia sido dado por concluído há poucos meses? Tentaremos explicar. Antes, porém, cabe situar brevemente a questão do acordo no contexto mais amplo da economia mundial e da política de comércio exterior do Brasil.

É voz corrente entre analistas internacionais que atravessamos tempo de transição em escala global. Estamos em um período especialmente incerto, inseguro e instável. Se normalmente países não agem de maneira isolada, desconsiderando as circunstâncias que os envolvem, durante movimentos tectônicos é que avaliam seus passos de maneira especialmente calculada. Não embarcam em qualquer canoa.

Pois bem, caro leitor ou leitora, em nosso último texto expressamos perplexidade com o modo como o governo brasileiro reagia à dinâmica em torno de um dos temas mais definidores da atualidade: o comércio internacional.[1]

O Brasil, severamente desindustrializado, regredindo em marcha forçada à condição de país primário-exportador, volta a adotar o evangelho do livre comércio – justo na hora em que economias centrais e países emergentes relevantes reduzem o grau de exposição externa de suas economias, adotam medidas de proteção contra a concorrência estrangeira e elevam seu nível de autonomia produtiva e tecnológica.

Enquanto isso, o governo Lula dobra a aposta no livre comércio como estratégia de desenvolvimento – em espantosa linha de continuidade com os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro. Nesse sentido, o acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia é emblemático e sintomático. Simboliza a estratégia de inserção comercial do governo Lula e revela o pendor liberalizante de sua política econômica externa.

Com um agravante: o que era ruim ficou ainda pior.

2.

Apelidado de acordo “carros por vacas”,[2] as suas regras de acesso a mercado de bens agropecuários são aquelas negociadas por Paulo Guedes – as quais pouco alteram nossa participação no mercado europeu. Boa parte dos itens mais importantes para os produtores brasileiros continuarão limitados por cotas – a exemplo de carne bovina, frango e etanol –, enquanto os produtos mais básicos, como soja, café verde e minério de ferro, já gozavam de tarifa zero antes do acordo.

Para se ter uma ideia, as cotas são tão rigorosas que representam apenas 1% do consumo europeu.[3] Mas essa vitória flagrante não foi suficiente para os europeus. Eles insistem em 7 x 1 para contornar as resistências ao acordo no interior do bloco.

Eis o fato novo: o Parlamento Europeu aprovou comando à Comissão Europeia para que inserisse regra de salvaguarda prevendo que, em caso de aumento de importações em míseros 5%, a União Europeia possa deflagrar investigação expedita, com duração de apenas três meses, para suspender as condições preferenciais de acesso ao mercado europeu ou obrigar os países do Mercosul a adotar os padrões europeus de produção dos bens investigados.[4]

Surpreendentemente, países como França, Itália e Polônia ainda não estão satisfeitos. Querem mais rigidez. Do lado brasileiro, porém, o Ministro da Agricultura esclareceu que topa perder de lavada, porque “não adianta a gente ficar procurando o acordo perfeito”.[5] Note, caro leitor, que o que nos surpreendeu foi a postura do lado vencedor. A prostração do lado perdedor já estava no script.

O pior é que esse acordo com a Mercosul/União Europeia faz parte de uma série de acordos de comércio que o Brasil está negociando – como aqueles com o Canadá e Coreia do Sul – ou já fechou – a exemplo dos acordos com Singapura e EFTA (Associação Europeia de Livre Comércio).

3.

A se confirmarem o acordo Mercosul/União Europeia e esses outros acordos do mesmo naipe, cujas negociações remontam – pasmem – ao governo de Jair Bolsonaro, estaremos mais próximos de uma neocolonização que de uma neoindustrialização.

Obviamente, essa escolha não é adequada nem sustentável, em especial à luz do que está acontecendo no mundo. A recém-anunciada estratégia de segurança nacional dos EUA não deixa margem para dúvida sobre o que entendem por reindustrialização – calcada na administração estratégica de seu comércio e autonomia produtiva e tecnológica em setores críticos.

Ao invés de buscarmos acordos antiquados, que nos obrigam a uma liberalização inconveniente, deveríamos promover um verdadeiro freio de arrumação em nossa estratégia de inserção econômica externa. Como pode o líder de um governo que se quer desenvolvimentista, à frente de um país melancolicamente desindustrializado, sair mundo afora proclamando o livre comércio quando os países onde esse liberalismo teve origem estão em outra faixa de onda?

Atribui-se a John Maynard Keynes a observação de que quando os fatos mudavam, ele também mudava de ideia. Pois bem, os fatos mudaram profundamente. O Presidente Lula mudará de ideia ou está definitivamente apegado a estratégias e políticas ultrapassadas?

*Paulo Nogueira Batista Jr. é economista. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS. Autor, entre outros livros, de Estilhaços (Contracorrente) [https://amzn.to/3ZulvOz]

Manoel Casado é mestre em desenvolvimento econômico.

Notas


  1. Paulo Nogueira Batista Jr. e Manoel Casado, “Para que a soberania não seja slogan vazio”, 5 de setembro de 2025: https://aterraeredonda.com.br/vulnerabilidade-estrutural/
  2.  “The agreement has everything we need,” observou recentemente o comissário de comércio da União Europeia, argumentando que “it would open markets for EU cars and machinery and promise access to critical raw minerals to reduce dependence on China”. According to the Financial Times, the agreement has been dubbed a “cars for cows” trade deal. “The EU wants to export industrial goods and Mercosur its meat, soyabeans and cereals”, acrescenta a reportagem. Acessível em: https://www.ft.com/content/fcaf1ab6-69c8-4aa9-a104-c4f918f7747d?shareType=nongift
  3. https://exame.com/agro/acordo-ue-mercosul-tem-falsa-batalha-do-agro-diz-ex-negociador/
  4. https://www.europarl.europa.eu/news/nl/press-room/20251208IPR32082/mercosur-meps-endorse-rules-to-protect-eu-agriculture

https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2025/12/itamaraty-ve-sinal-positivo-para-assinatura-de-acordo-ue-mercosul-apesar-de-resistencia-da-franca.shtml


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