História natural da religião

Jackson Pollock, Landscape with Steer, c. 1936–37
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Por JAIMIR CONTE e por DAVID HUME*

Apresentação do tradutor e introdução do autor do livro recém-editado.

Apresentação [Jaimir Conte]

Autor de grandes obras filosóficas como Tratado da natureza humana (1739-40), Investigação sobre o entendimento humano (1748) e Investigação sobre os princípios da moral (1751), David Hume (1711-1776) é também autor de vários escritos sobre religião, nos quais se opõe, em praticamente todos os pontos, à ideologia religiosa predominante em seu tempo. O mais penetrante, filosófico e substancial de seus trabalhos sobre o tema são os Diálogos sobre a religião natural, escritos entre 1751 e 1755, cuja publicação só aconteceu depois de sua morte, em 1779.

O adiamento da publicação em vida dessa obra, que questiona os fundamentos racionais da religião, deveu-se à recomendação de alguns amigos que leram o manuscrito e que temiam que as críticas nele contidas aumentassem ainda mais as acusações de infidelidade lançadas contra Hume, que já havia provocado a ira dos religiosos ao solapar a crença nos milagres e numa providência divina nos ensaios “Dos milagres” e “De uma providência particular e de um Estado futuro” publicados em 1749 como parte da obra Investigação sobre o entendimento humano.

A História natural da religião foi publicada em janeiro de 1757 num volume intitulado Four Dissertations (Quatro dissertações). Antes disso, em 1756, havia sido impressa num volume intitulado Five Dissertations (Cinco dissertações), contendo os ensaios “Das paixões”, “Da tragédia”, “Do suicídio” e “Da imortalidade da alma”. Contudo, diante de algumas reações e da perspectiva de condenação eclesiástica, Hume decidiu retirar da publicação os dois últimos ensaios.

Como os exemplares das Cinco dissertações já haviam sido impressos, o editor Andrew Millar teve de cortar, literalmente, as páginas que continham os ensaios sobre o suicídio e sobre a imortalidade e, em substituição, inserir no volume um novo ensaio, “Do padrão do gosto”. Hume também aproveitou a oportunidade para alterar alguns dos parágrafos mais ofensivos da História natural da religião. Os ensaios foram então encadernados com o novo título de Quatro dissertações, e o livro foi publicado em 1757.

Na dissertação sobre a História natural da religião, Hume trata das origens e das causas que produzem o fenômeno da religião, dos seus efeitos sobre a vida e a conduta humanas, e das variações cíclicas entre o politeísmo e o monoteísmo. Uma de suas preocupações é também chamar a atenção para os efeitos das diferentes espécies de religião sobre a tolerância e a moralidade. Em suma, nesta obra, Hume desenvolve uma investigação sobre os princípios “naturais” que originam a crença religiosa, bem como um estudo antropológico e histórico relativo aos efeitos sociais da religião.

Aqui, Hume é um dos primeiros autores a examinar a crença religiosa puramente como uma manifestação da natureza humana, sem pressupor a crença na existência de Deus. Esta obra apresenta uma história natural da religião em oposição a uma história guiada por pressupostos religiosos. Ao questionar a religião de forma mais radical do que seus predecessores, Hume trata todas as crenças religiosas como mero produto da natureza humana.

Ele inicia a obra mencionando duas explicações distintas sobre a origem da religião. Por uma, a tese que afirma que as pessoas são levadas à crença religiosa pela contemplação racional do universo. Por outra, a tese de que a religião tem por base fatores psicológicos completamente independentes de um fundamento racional.

Hume defende a segunda explicação e argumenta que todas as religiões populares se iniciam não de uma tentativa de entendimento racional do universo, mas de paixões humanas mais primitivas e básicas, de instintos naturais como o medo e a esperança. O conceito psicológico central pressuposto por ele é o de que a experiência religiosa é governada pelas paixões. A religião se origina do medo de influências desconhecidas sobre a sociedade humana e prospera em situações terríveis de medo e ignorância do futuro.

As convulsões da natureza, as catástrofes, os prodígios e os milagres, embora em grande medida refutem a ideia de um plano elaborado por um sábio diretor, imprimem no homem os mais fortes sentimentos religiosos, pois as causas dos acontecimentos aparecem então mais distanciadas do que nunca de todo conhecimento e de toda explicação.

 

Introdução [David Hume]

Embora toda investigação referente à religião tenha a máxima importância, há duas questões, em particular, que chamam nossa atenção, a saber: a que se refere ao seu fundamento racional e a que se refere à sua origem na natureza humana. Felizmente, a primeira questão, que é a mais importante, admite a mais evidente ou, pelo menos, a mais clara solução. Todo o plano da natureza evidencia um autor inteligente, e nenhum investigador racional pode, após uma séria reflexão, suspender por um instante sua crença em relação aos primeiros princípios do puro monoteísmo e da pura religião.

Mas a questão sobre a origem da religião na natureza humana está exposta a uma dificuldade maior. A crença em um poder invisível e inteligente tem sido amplamente difundida entre a raça humana, em todos os lugares e em todas as épocas, mas talvez não tenha sido tão universal a ponto de não admitir exceção nenhuma; nem tenha sido, em alguma medida, uniforme nas ideias que fez nascer. A acreditar nos viajantes e nos historiadores, foram descobertas algumas nações que não mantêm quaisquer sentimentos religiosos; e não há duas nações, e dificilmente dois homens, que concordem com exatidão sobre os mesmos sentimentos.

Parece, portanto, que esse preconceito não surge de um instinto original ou de uma impressão primária da natureza humana, como a que dá nascimento ao amor-próprio, à atração entre os sexos, ao amor pelos filhos, à gratidão ou ao ressentimento, pois constatou-se que todo instinto dessa espécie é absolutamente universal em todas as nações e em todas as épocas, e tem sempre um objeto preciso e determinado que inflexivelmente persegue.

Os primeiros princípios religiosos devem ser secundários, a tal ponto que facilmente podem ser pervertidos por diversos acidentes e causas, e, em certos casos, até sua operação pode ser completamente impedida por um extraordinário concurso de circunstâncias. Quais são esses princípios que engendram a crença original e quais são esses acidentes e causas que regulam sua operação é o tema de nossa presente investigação.

*Jaimir Conte é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

*David Hume (1711-1776) foi filósofo, historiador e ensaísta. Autor, entre outros livros, de História da Inglaterra (Unesp).

Referência


David Hume. História natural da religião. Tradução, apresentação e notas: Jaimir Conte. São Paulo, Unesp, 2020, 160 págs.

 

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