O jogo de Augusto Aras

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Por FÁBIO KERCHE*

As estratégias do procurador-geral da República para ser reconduzido ao cargo.

Quando entrar setembro, a boa nova poderia ser um Augusto Aras diferente. É nessa data que ele deve ser reconduzido ao cargo de procurador-geral da República (PGR), pode já estar de fora das alternativas para uma indicação ao Supremo Tribunal Federal (STF), e bem que poderia resolver limpar sua biografia fazendo seu trabalho de fiscalizar o presidente da República, salvando o que resta de sua reputação.

Antes disso, é pouco provável que o procurador-geral da República parta para cima de Jair M. Bolsonaro. De seu ponto de vista, na verdade, faria pouco sentido. Depois de passar o mandato inteiro se equilibrando e protegendo Bolsonaro, abrir confronto com o chefe do Executivo agora seria jogar fora uma recondução garantida à Procuradoria-Geral ou, embora menos provável, uma indicação ao Supremo.

O modelo de indicação adotado por Bolsonaro para a chefia do Ministério Público da União atrelou o PGR aos desejos do presidente. Não há nada de ilegal nisso. Na verdade, essa é a fórmula que consta na Constituição. A lista tríplice votada pelos procuradores federais foi uma concessão informal de Lula a partir de 2003 que Bolsonaro ignorou. De olho na sua recondução ao cargo, Aras sabe que se fizesse seu trabalho, investigando efetivamente e acusando o presidente que tem uma folha corrida de infrações penais, sofreria retaliações e não seria indicado para mais um mandato de dois anos.

Augusto Aras já demonstrou que sabe fazer o jogo político. Identificou em 2019 que Bolsonaro desconsideraria a lista tríplice apresentada pela associação dos procuradores federais e correu por fora. Fez campanha com os olhos voltados para o Poder Executivo e Legislativo, ignorando seus colegas. Com um discurso mais conservador, bem ao gosto da atual administração, esqueceu-se dos tempos em que oferecia jantares a importantes políticos da esquerda. Foi ungido ao cargo por Bolsonaro e não teve qualquer dificuldade no Senado. Recebeu apoio, em alguns casos explícito, em outros tácito, de políticos de diferentes colorações ideológicas que não aguentavam mais as estripulias da Lava Jato.

Sua estratégia durante seu mandato na Procuradoria Geral da República      foi bater em alguns membros do governo quando necessário, proteger Bolsonaro sempre. Um bom exemplo disso foi sua postura quando da saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça e da Segurança Pública. O ex-juiz acusou Bolsonaro de tentar interferir na Polícia Federal, poder que Moro não queria dividir. O procurador-geral não podia simplesmente se recusar a investigar denúncias feitas pelo ex-herói nacional em frente a toda a mídia brasileira. A saída encontrada foi abrir o inquérito, mas incluir Moro como investigado por denunciação caluniosa e crimes contra a honra. Ninguém podia acusar Aras de não estar cumprindo seu papel, embora sua estratégia fosse claramente de constranger Moro.

Enquanto se equilibra para ao menos assegurar sua recondução à chefia do Ministério Público da União, Aras também trabalhou por uma indicação para o STF na vaga do ministro Marco Aurélio, que se aposenta agora em julho. Apontado por parte da imprensa como o preferido dos políticos, embora no fim da fila para Bolsonaro por não ser “terrivelmente evangélico”, o PGR correu por fora, mais uma vez, tentando ser lembrado por ter um caminho mais fácil junto ao Senado. Notícias dão conta de que o candidato indicado por Bolsonaro, o ministro da Advocacia-Geral da União (AGU), André Mendonça, é mal visto pelos políticos e pode ter sua indicação dificultada no Legislativo. Aras, segundo declaração pública do presidente, seria um ótimo nome para uma terceira vaga no STF. O problema é que esta vaga só será preenchida por uma indicação de Bolsonaro se ele for reeleito.

O procurador-geral busca ganhar tempo e não complicar seus caminhos futuros. A oposição já percebeu que o destino de todas as solicitações contra o Bolsonaro é tortuoso com Aras encarnando o ex-PGR do governo Fernando Henrique Cardoso, Geraldo Brindeiro, o engavetador-geral da República. A saída foi buscar ajuda no STF. Parlamentares, em vez de pedir diretamente ao PGR que abrisse inquérito contra o presidente para investigar a suspeita de que Bolsonaro ao menos prevaricou no escândalo da compra de vacinas Covaxin, recorreram ao STF como intermediário.

A Procuradoria-Geral tentou se esquivar da solicitação dizendo que seria melhor esperar as investigações da CPI. A ministra Rosa Weber passou um passa moleque em Aras e o constrangeu a abrir o inquérito, mesmo com a Procuradoria sinalizando que não identificava indícios contra o chefe do Executivo. Em um claro sinal dos tempos estranhos em que nos metemos, o Poder Judiciário age como uma espécie de órgão superior do independente Ministério Público.

Augusto Aras encontra-se nesse imbróglio: toma lições do Supremo, é constrangido por parlamentares, criticado por seus colegas de Ministério Público, apanha da imprensa e ganhou memes nada lisonjeiros nas mídias sociais. A boa notícia para ele é que sua recompensa virá em pouco menos de dois meses.

Cientistas políticos gostam de dizer que instituições importam. Ou seja, os políticos agem balizados pelas regras do jogo. Sob esta premissa, o comportamento de Aras até aqui faz sentido e é previsível. Mas tudo isso pode mudar a partir de setembro. Jair Bolsonaro só teria uma terceira vaga para o STF ou poderia indicar Aras para um terceiro mandato de PGR se vencesse a eleição presidencial em 2022. As pesquisas mostram que esse não é um cenário garantido para Bolsonaro. A popularidade do presidente está em patamares baixíssimos e Lula, candidatíssimo e com seus direitos políticos recuperados, vai seduzindo os brasileiros com a lembrança de um país que já teve emprego e distribuição de renda.

As chances de Bolsonaro continuar com a caneta para premiar o comportamento submisso de Aras, portanto, parece diminuir a cada dia. O PGR terá que responder se vale a pena jogar sua biografia mais ainda na lama apostando em cargos que serão decididos somente pelo futuro presidente a partir de 2023. Ele terá que avaliar quais são as reais chances de Bolsonaro ganhar as eleições ou mesmo terminar o mandato. Há, portanto, a esperança de que Augusto Aras possa reconstruir sua reputação, cumprir seu dever, e não entrar para a história como alguém que protegeu a qualquer custo um presidente em troca de um cargo.

*Fábio Kerche é professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Autor, entre outros livros, de Virtude e limites: autonomia e atribuições do Ministério Público no Brasil (Edusp).

 

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