Futuro do pretérito, pretérito do futuro

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Por FLÁVIO R. KOTHE*

O dogma serve para não pensar, finge ter uma explicação, mesmo que ela não se sustente

A história vem passando por um ponto de inflexão que não se sabe ainda no que vai dar, mas vai afetar a todos, especialmente aos descendentes das atuais gerações. Ou se continua a dominação americana sobre o planeta, que parecia consolidada com o fim da União Soviética e tanto afetou a existência brasileira, ou são consolidados diversos polos de influência, com a presença marcante dos BRICS. O próprio país define seu destino nas eleições de outubro. Nenhuma vitória será absoluta, contradições continuarão.

O que está em jogo é uma disputa entre a consolidação dos direitos da cidadania ou a desmontagem do aparelho de Estado, entre a ampliação dos processos de democratização ou o retorno à tradição autoritária, entre a igualdade social e o privilégio da oligarquia. Isso parece estar longe da torre de marfim em que os literatos gostariam de buscar refúgio. Em geral, quem escreve hoje precisa de uma profissão que sustente o autor. Para ser escritor é preciso ser leitor: mais um a ser sustentado.

Com exceção daqueles que escrevem como profissionais de outras áreas – jornalismo, direito, medicina –, os literatos não estão tendo condições no Brasil de viver do que alinhavam. Eles podem até escrever bem, isso pouco importa. Em geral são atendidos por pequenas editoras, que funcionam como gráficas. O autor precisa promover dois ou três lançamentos, para vender poucas dezenas de exemplares: daí a obra estanca, sendo o que resta distribuído a familiares, conhecidos, amigos.

É possível ao candidato a autor publicar obras virtuais num local como a Amazon e cobrar até 70% do preço de venda, mas não há quem divulgue nem comente a obra. Se o autor tiver de se autopromover, vai se esforçar muito para conseguir pouco: pode acabar com fama de vaidoso, pedante, narcisista. Se pedir a amigos, talvez consiga aqui e ali uma resenha, que ficará marcada pelo caráter de ser uma ação entre amigos. É possível também pagar por vídeos curtos, que ficarão em geral esquecidos no Youtube.

A crítica literária mais confiável acabou no Brasil há uns 35 anos. Os espaços que havia em jornais foram tomados por poucas grandes editoras ou então desapareceram. Deixaram de ser confiáveis. Quase não há mais encontros em livrarias, as premiações parecem ser menos confiáveis do que deveriam, parte da publicidade.

As grandes editoras brasileiras parecem ter sido compradas por grupos estrangeiros. Publicam uns poucos livros importados, com venda já comprovada fora, em muitos exemplares, que são empilhados nas livrarias conforme determinado de fora. O público vai sendo treinado a gostar do que outros povos gostaram, na medianidade do gosto carente. Há uma hostilidade implícita às grandes obras. É mais fácil gostar do que não exige esforços nem questionamentos. O dogma serve para não pensar adiante: finge ter uma explicação, mesmo que ela não se sustente.

Consolidar a cidadania e a democracia significa que as pessoas devem aprender, não só com os demais e sim dentro de si, a conviver com diferenças, elaborar contradições. É preciso aprender a dizer: não sei. E acrescentar: vou tentar encontrar a razão de ser. A razão exige caráter, para sustentar afetivamente o embate das contradições.

As grandes obras da literatura, da filosofia, da teoria sociológica e política ajudam a desenvolver a capacidade de pensar, para avaliar alternativas para carências coletivas. É mais cômodo não passar por elas e exaltar o gosto de não ter bom gosto, preferindo obras medianas e medíocres. Como as gerações brasileiras não fizeram a longa peregrinação pelos píncaros das grandes obras, elas próprias não percebem quão carentes elas são de informação e formação. Não se trata de exibir citações. Para Hegel, a erudição se perde em detalhes, sem captar os fundamentos.

Falta a circulação das grandes obras nas escolas, bibliotecas, mídias. Elas também não circulam ainda suficientemente nas mentes, pois não se quer o exercício da liberdade que há nelas. Se está fazendo falta o grande editor, os escritores perderam um interlocutor estratégico.

Temos um grande trabalho sendo feito em editoras menores. Nichos vêm sendo ocupados por pequenos editores, que se esforçam em publicar bons textos, mas sofrem com a falta de recursos financeiros, pessoal, distribuição, acesso à mídia. Os jornais não pagam mais a críticos literários para comentarem obras recém-lançadas. As lives têm sido uma alternativa para chamar a atenção sobre alguns lançamentos. Quem consegue assinar uma coluna num grande jornal precisa adequar-se ao perfil dominante, mas ganha como que um passe para publicar livros.

Não é propriamente da competência do autor tratar da divulgação, da distribuição, da venda, da promoção de obras. Isso é tarefa do editor. O que cabe aos autores é escrever textos que só eles consigam, como algo único, marcante, insubstituível. O problema é que para fazer algo assim é preciso estar à altura da melhor produção mundial. As grandes obras cultivam a ideia de liberdade, mas é exatamente isso que a repressão esparsa no sistema não quer.

O nome de um autor pode se tornar marca registrada dele, algo que o leitor pode procurar porque é o que ele quer. O caráter único da obra parece incompatível com o caráter da mercadoria, mas esse caráter pode ser multiplicado por meios mecânicos, como a edição de livros. A mercadoria é produzida em série, tanto fazendo comprar um exemplar quanto outro. Se são todos iguais entre si, todos querem ser no conjunto, porém, diferentes de outras séries. A publicidade trata de alardear a diferença, como se fosse uma promessa de paraíso.

Talvez a era das “obras acabadas” tenha acabado. O que mais se precisa são “acenos” que induzem a processos de pensamento, esboços de pensamentos, registros fugazes. O leitor é parte constitutiva da obra: cada um vai conseguir ler apenas a obra que sua mente conseguir formalizar. O público está treinado a receber o mesmo, mas sob mudanças descontínuas das superfícies. Está tão treinado no mesmo que não quer o osso duro de um texto mais denso, difícil.

Ainda não se tornou direito real e efetivo da cidadania brasileira o acesso sistemático às grandes obras mundiais da literatura, das artes, da teoria, da filosofia. O jovem está excluído delas e se acostuma a isso como se fosse normal. Não sente falta porque nunca teve convivência íntima com elas. O perfil cultural médio acaba sendo baixo, mesmo entre profissionais com diploma dito superior.

Nos Estados Unidos, os mecenas concentraram recursos em algumas grandes Universidades, cujas anuidades as classes médias e pobres brasileiras não poderiam pagar. Os títulos acadêmicos nelas obtidos são prestigiados, garantem bons empregos, porque neles estão também as garantias de que a formação dada tem, por um lado, mais informação e, por outro, de que ela foi ministrada para garantir que se reproduza e se garanta o status quo. Bolsas dadas nessas grandes universidades a gatos pingados das minorias não garantem o princípio do acesso igualitário. Não é um sistema democrático: ele é plutocrático. Não é bom que esse sistema seja imposto aqui.

No Brasil, o ensino superior de qualidade está mais nas Universidades públicas. Nelas está também a pesquisa, com todos os defeitos e problemas que elas possam ter. Houve uma decisão de Estado há meio século: abrir cursos de pós-graduação por todo o país, para dar chance aos graduados das diferentes áreas de fazer especializações e desenvolver pesquisas. Esse processo precisa ser continuado como política de Estado, não devendo ser interrompido por governos. A sobrevivência do país passa por isso.

Como cada um julga de acordo com o que pode compreender, seu juízo é uma projeção de pressupostos inconscientes. Sendo o espectro de formação e informação bastante baixo, o que estiver acima da média vai ser rejeitado ou ignorado. Assim, não vai se acompanhar o nível do que melhor se produz fora. Não adianta querer substituir o que se ignora por um grito retumbante em margens plácidas.

Não adianta o cientista alegar que não tem bons laboratórios e não pode fazer pesquisas de ponta: outros farão, em locais melhores. Os grandes produtores agrícolas querem as máquinas mais eficientes e modernas, pois precisam delas para competir globalmente. Ninguém vai comprar por piedade, para que possam um dia ter máquinas melhores. Ou eles conseguem produzir mais com custos menores ou não poderão competir.

O mesmo vale para a produção teórica ou artística. Não adianta alegar pobreza no campus. As metrópoles não querem, em geral, comprar os produtos das periferias dependentes: querem exportar os produtos delas para onde puderem. Daí a existência de grandes conglomerados midiáticos e, em parte, a falta de parceiros editoriais para os escritores. É preciso reencontrar caminhos para dialogar com as grandes editoras, as médias e as pequenas. Cada setor tem sua tarefa.

Temos de ser cautelosos. Se até hoje não tem feito parte da cidadania brasileira o acesso às grandes obras de arte, filosofia, literatura, temos de lutar para que as novas gerações tenham esse direito. Isso já existia em Porto Alegre, na UFRGS, na década de 1960, nos cursos de Arte Dramática e da Faculdade de Filosofia, mas os professores decisivos foram expurgados pelo AI-5 em 1969. Em retribuição, a universidade deu os títulos de doutor honoris causa a Costa e Silva e a Médici.

É fácil cair na regressão da medianidade, repetir slogans, repelir fatos novos, desconectar argumentos. Difícil é o percurso pelas grandes obras: não se pode dar apenas uma lida. É preciso estudá-las, ter mestres que orientem. Hoje o país tem profissionais especializados que não têm cultura humanista consistente. Passaram vários partidos na presidência, nenhum alterou a estrutura do perfil qualitativo do ensino. É como se a postura restritiva tivesse se perpetuado ou, pior, seja o afloramento do inconsciente coletivo, do qual o canonizado é um sintoma. Isso é ruim para os profissionais, ruim para o país. Só iremos mais alto se formos mais fundo, a fundo, sem afundar.

*Flávio R. Kothe é professor titular aposentado de estética na Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Benjamin e Adorno: confrontos (Ática).

 

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