A locomotiva que queimava livros

Imagem: Miriele Vidotti
image_pdf

Por TADEU ALENCAR ARRAIS*

Os impactos pedagógicos e econômicos da exclusão do estado de São Paulo do Programa Nacional do Livro Didático

“Enquanto isso, os livros, entreabertos, morriam na varanda e no gramado da casa” (Ray Bradbury, Fahrenheit 451, p. 13).

É motivo de espanto a decisão da Secretaria de Educação do estado de São Paulo de abandonar o Programa Nacional do Livro Didático a partir do ano de 2024. Falta, ao Secretário de Educação do Estado de São Paulo, aquela preocupação com o futuro própria de homens púbicos que ainda preservam algum pudor. Sobra, por outro lado, arrogância e despreparo para lidar com um conjunto de políticas provenientes de articulações institucionais históricas e que traduzem, sem margem para dúvidas, o conflituoso pacto federativo brasileiro.

O Programa Nacional do Livro Didático (PNDL) remonta ao ano 1937 e, portanto, sobreviveu às intempéries políticas do tumultuado século XX. A derrota política em 2022, na escala rederal, não pode servir de desculpas para punir 3,7 milhões de alunas e alunos matriculados na rede pública estadual de São Paulo (INPEP, 2022).

Os impactos pedagógicos e econômicos da exclusão do estado de São Paulo do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) podem ser explicitados pelo próprio entendimento da natureza desse programa que, apenas em 2022, disponibilizou 207,29 milhões de livros didáticos e literários para as escolas públicas brasileiras (FNDE, 2023). Os impactos são assim resumidos:

(i) Políticas nacionais como o PNLD, dado a natureza diversa e desigual do território brasileiro, são consideradas niveladoras. Isso significa que, exceção para as particularidades das aquisições de livros regionais, os alunos e alunas do Nordeste, Sul, Sudeste, Norte e Centro Oeste tem a chance de acesso ao mesmo conjunto de materiais didáticos e literários que, por sua vez, balizam as provas nacionais de acesso ao sistema universitário público. A decisão resulta de severa atitude isolacionista.

(ii) O processo de seleção dos livros do PNLD, em distintas modalidades, é bastante rigoroso, seja do ponto de vista da análise de conteúdo disciplinar e/ou narrativo, seja do ponto de vista gráfico e editorial. O PNLD garante a convivência das famílias, nos domicílios, com livros cujo acesso, no mercado privado, não seria possível para a fração mais vulnerável da população brasileira.  O crime é premeditado e tem como objetivo aumentar as assimetrias entre a infraestrutura da educação público e a infraestrutura do mercado de educação privado.

PNLD Alunos Beneficiados Total de Exemplares Valor de Aquisição
Didático       30.733.374     102.573.507 1.188.736.914,21
Literário         6.672.998 28.518.692 332.647.723,14

Figura 1. Brasil, dados selecionados do PNLD, 2022. Fonte: FNDE (2023)

(iii) As aquisições de livros, dado a escala do programa, garantem preços unitários que viabilizam a perenidade do programa e, ao mesmo tempo, atendem os princípios da administração pública como a impessoalidade, a publicidade e a eficiência. Os custos logísticos de seleção, compra e entrega dos exemplares na escola são de responsabilidade do Governo Federal.

Quantidade de alunos atendidos Total de exemplares Valor da aquisição (R$)
10.729.228 36.126.383 314.855.285,7

Figura 2. Estado de São Paulo, dados selecionados do PNLD, 2022. Fonte: FNDE (2023).

(iv) Os recursos para aquisição de livros somaram, em 2022, 1,82 bilhões de reais. Para o Estado de São Paulo foram destinados 17,29% desse total, equivalente a 314,85 milhões de reais. É interessante que, em um momento de divulgada crise fiscal, com crescente endividamento dos estados, um governo estadual possa abrir mão de um programa cuja engenharia institucional permite economizar recursos públicos. A circunstância, ao que parece, não é, apenas ideológica. É preciso investigar os tortos motivos econômicos que justificam a decisão. Follow The Money.

O maior impacto, de difícil contabilidade para os burocratas de São Paulo, reside no fato de que o PNLD estimula o convívio de alunos e alunas com livros de gêneros diferentes, como crônicas, novelas, poemas, contos, romances, divulgação científica, didáticos etc. É preciso sublinhar que a história da “inacabada hegemonia” de São Paulo também se alimentou da oferta da educação pública, da promoção da cultura e da produção literária.

Mas a metáfora da locomotiva carregando o país não tem o mesmo peso de outrora. Se antes anunciava, a partir da industrialização, a ambição de guiar os destinos do país, agora, infelizmente, saúda o atraso, movendo-se, não pelo óleo diesel, mas pela combustão de livros. No futuro próximo, esquecido em alguma biblioteca da rede pública escolar do estado de São Paulo, localizada no Guarujá, uma aluna negra encontrará um desprotegido exemplar de Fahrenheit 451 com o carimbo do PNLD. Pronto. Ali, como ensinam as distopias, a centelha da mudança será plantada.

*Tadeu Alencar Arrais é professor titular do Departamento de Geografia da Universidade Federal de Goiás (UFG).

Referências


Bradbury, Ray. Ray. Fahrenheit 451. São Paulo, Melhoramento, 1985.

FNDE. Dados Estatísticos. In: https://www.gov.br/fnde/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/programas/programas-do-livro/pnld/historico.

INEP. Censo Escolar 2022. In: https://censobasico.inep.gov.br/censobasico/#/


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Energia nuclear brasileira
06 Dec 2025 Por ANA LUIZA ROCHA PORTO & FERNANDO MARTINI: Em um momento decisivo, a soberania energética e o destino nacional se encontram na encruzilhada da tecnologia nuclear
3
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
4
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
5
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
6
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
7
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
8
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
9
Considerações sobre o marxismo ocidental
07 Dec 2025 Por RICARDO MUSSE: Breves considerações sobre o livro de Perry Anderson
10
O agente secreto
07 Dec 2025 Por LINDBERG CAMPOS: Considerações sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
11
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
12
Insurreições negras no Brasil
08 Dec 2025 Por MÁRIO MAESTRI: Um pequeno clássico esquecido da historiografia marxista brasileira
13
As lágrimas amargas de Michelle Bolsonaro
07 Dec 2025 Por CAIO VASCONCELLOS: Estetização da política e melodrama: A performance política de Michelle como contraponto emocional e religioso ao estilo agressivo de Jair Bolsonaro
14
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
15
O empreendedorismo e a economia solidária – parte 2
08 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Quando a lógica do empreendedorismo contamina a Economia Solidária, o projeto que prometia um futuro pós-capitalista pode estar reproduzindo os mesmos circuitos que deseja superar
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES