Orçamento de guerra

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Por Carlos Tautz*

Se o sistema financeiro privado do Brasil depende de maciças injeções de recursos públicos é porque não tem competência para se estabelecer

Em plena calamidade sanitária, o Congresso está apreciando a Proposta de Emenda Constitucional que oficializa uma ignomínia: a PEC 10/2020 aprovada na Câmara e tramitando no Senado permite que o Banco Central do Brasil (BC) vire balcão de negócios e use R$ 1,2 trilhões dos cofres públicos. Não, não é para abrir leitos de UTI e comprar respiradores automáticos pelos contaminados pelo coronavírus, nem para adquirir equipamento de proteção individual para os heróicos trabalhadores da saúde, que já estão em boa medida contaminados pela COVID-19.

Liderada na Câmara pelo o neo-gente boa Câmara Rodrigo Maia (DEM) e no Senado pelo bolsonarista envergonhado Davi Alcolumbre (DEM), a maioria do Congresso quer destinar essa montanha de dinheiro para todo tipo de negociata com bancos e outros agentes financeiros. Nomeadamente: Bradesco, Itaú-Unibanco, Santander et caterva, e até os bancos públicos Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal, que desde Michel Temer (2016) são dirigidos como se bancos privados fossem.

A transação é tenebrosa, segundo Auditoria Cidadã da Dívida (ACD). A PEC “mantém a autorização para o Banco Central atuar no desregulado mercado de balcão como um agente independente assumindo riscos e prejuízos dos bancos sem limite e sem exigir contrapartida alguma ao país; mantém o uso de dinheiro público para a compra da carteira podre de bancos, com ônus de 100% ao Tesouro Nacional; mantém a transformação, em títulos da Dívida Pública, de trilhões de reais de derivativos, créditos incobráveis e papéis podres acumulados durante anos nas carteiras dos lucrativos bancos, que inclusive já se ressarciram dessas perdas por meio da provisão deduzida de seu lucro tributável em cada ano”, avalia a ACD. “Não se tem notícia de operação semelhante por qualquer Banco Central do mundo!”, completa.

A ACD avalia que a intenção do substitutivo do Senador Antonio Anastasia (o mesmo que relatou o processo de impeachment de 2016), após analisar a Proposta que veio da Câmara, é autorizar o BC a operar no “mercado secundário”, onde não há qualquer regulação. Se a PEC for aprovada, os recursos da Nação serão desperdiçados em “créditos incobráveis e papéis podres acumulados durante anos nas carteiras dos lucrativos bancos, que inclusive já se ressarciram dessas perdas por meio da provisão deduzida de seu lucro tributável em cada ano”.

Os bancos tentam, assim, aproveitar o cenário de pandemia com depressão econômica para avançar sobre dinheiro público (tivesse apenas uma fração destes recursos sido investidos em zerar o vergonhoso déficit de saneamento básico e completar o SUS como previsto na Constituição de 1988, e centenas de milhares de mortos que resultarão dessa pandemia certamente se salvariam). Como se vê, deputados e senadores apoiam os bancos.

Esses malandros federais cercaram o bicho pelos sete lados. Para evitar serem pegos a posteriori propuseram na PEC 10/2020 que, após o dinheiro ter escoado dos cofres públicos, uma prestação de contas seja feita não com registro de cada movimentação individual de compra de títulos apodrecidos pela incúria da banca privada. A tal prestação, se houver, omitirá os nomes daqueles funcionários que, representando o BC, terão entregue a dinheirama nacional aos tubarões do mercado financeiro. Aliás, funcionários que, depois de se aposentarem ou de pedirem demissão, provavelmente vão se aboletar n´algum cargo daquelas instituições às quais eles repassaram o dinheiro público. Legislação recentemente aprovada garante imunidade a eles.

O pior – sempre há um pior… – é que o assalto às reservas do Brasil é apoiado por alguns do campo pragmático, auto-proclamados “de esquerda”, que replicam os argumentos das instituições financeiras. “Há risco de crise sistêmica”, papagueiam. Mimimi neoliberal. Muitos financistas apodrecem seus títulos em jogadas ilegais, depositam em paraísos fiscais e até sustentam o dinheiro de giro do tráfico de drogas e de armas. Se produzem negócios falidos, zeram suas carteiras e têm pavor de admitir a seus acionistas que vão registrar prejuízos, é, como se diz, problema deles.

Os recursos públicos devem ser usados exclusivamente para garantir a estabilidade e a segurança da moeda visando ao desenvolvimento econômico, o pleno emprego e a distribuição radical de renda, levando em conta as necessidades de toda a sociedade (como um SUS robusto para enfrentar e vencer pandemias). É algo nessa linha que até o FED, o banco central dos Estados Unidos, faz – e, parece, que o campo pragmático também quer mimetizar a besteira por essa sparagens.

De fato, o FED propõe realmente medidas semelhantes ao Orçamento de Guerra. A diferença entre o nosso caso e o deles, além da escala, é que o FED tem a exclusividade na emissão do dólar, o dinheiro hegemônico no mundo, que financia a sua própria dívida impondo a todo planeta a sua moeda como meio universal de transações. Fazem-no porque os EUA possuem um sistema de bases militares espalhadas no planeta e dá uma boa ajuda ao sistema de garantias. É esse binômio financeiro e militar que possibilita ao FED garantir a compra de toda e qualquer dívida privada no mercado dos EUA, por qualquer valor e sem limite.

Zerou o caixa? O FED roda a maquininha. Alguém discorda? Mandamos um drone e a NSA.

Se o sistema financeiro privado do Brasil depende de maciças injeções de recursos públicos é porque não tem competência para se estabelecer.  Darwinianamente, seria muito mais barato estatizá-lo de vez. Dá menos trabalho, inclusive, mas certos economistas do campo pragmático há muito deixaram para lá o desejo do impossível que torna revoluções possíveis. “Cheira a comunismo”, devem pensar…

Deveriam lembrar-se de que em 1995 o então Ministro tucano da Fazenda, Pedro Malan, inventou algo parecido com o Orçamento de Guerra. Tratava-se do Proer, o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional. O Proer foi planejado para salvar da falência o então Banco Nacional (do golpista de 64 Magalhães Pinto, ex-Governador de Minas Gerais).  O BC interveio no Banco Nacional, injetou alguns bilhões de dinheiro público e, pouco tempo depois, entregou-o, saneado, ao Unibanco, da simpática família cinematográfica Moreira Salles – disparada, a mais rica do Brasil.

Hoje, os economistas do campo pragmático se esquecem de que o Proer deu enorme prejuízo ao Tesouro. Talvez nem se lembrem de quem foi Malan. Bom, Malan, para sua informação, é Presidente do Conselho Consultivo Internacional do Itaú Unibanco desde 2009.

*Carlos Tautz, doutorando em história na Universidade Federal Fluminense (UFF), é editor do Córtex Político.

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