A língua dos árabes

image_pdf

Por SALEM NASSER*

Considerações sobre o dicionário árabe Lissan al-Arab

Sou culpado por gostar de livros enquanto “objetos”. Sou, com razão, acusado de mais comprar livros do que lê-los. Gosto de “ter” os livros, disponíveis, ao alcance das mãos. Gosto que sejam edições bonitas, bem-feitas, luxuosas se possível…

Por tudo isso, tenho um desejo, grande, de ter em minha estante um tesouro chamado Lissan al-Arab (livremente traduzido como Língua dos Árabes…). É o mais completo dicionário da língua árabe, criado por Ibn Manzur por volta do final do Século XIII!

(Você ficou curioso para saber por que eu pus uma exclamação no final da última frase? Logo saberá a resposta)

São 20 volumes que compilam os vocábulos árabes e seus usos e, eu prometo, a coleção fica bonita enfileirada numa estante! Por isso, apesar de estar inteira disponível on-line, o desejo permanece… Mas isso é o de menos…

Lembrei do dicionário e de seu nome ao pensar num título para este capítulo do meu livro sem fim sobre o Oriente Médio (no qual falo dos árabes e de sua multiplicidade, inclusive de suas divisões talvez fatais, e prometia logo chegar ao lugar central que a língua desempenha na sua história… chegamos).

Logo veremos que eu talvez tenha em mente sobretudo a diversidade linguística (em termos de variedades do árabe) entre os árabes; por isso, senti a tentação de falar em “línguas dos árabes” e assim intitular o texto. Mas logo percebi, ou intui, ou percebi que intuía, que o próprio nome do livro já carregava algo dos símbolos que vejo tão presentes na linguagem árabe.

Minha intuição partia daqui: a palavra “lissan” significa mais propriamente língua enquanto órgão físico do que enquanto sinônimo de linguagem. Neste sentido, o árabe se distanciaria um pouco do português, em que nos referimos mais facilmente a “língua” enquanto idioma ou linguagem, e se aproximaria do inglês, em que “tongue” remete mais ao órgão do que ao idioma ou linguagem, ainda que tanto em um quanto no outro a referência por extensão metafórica seja possível.

Para o autor, havia alternativas à palavra “lissan” para um livro que coletasse vocábulos, conceitos e usos do árabe: “lugha” seria o melhor equivalente para linguagem enquanto sistema e “kalam” expressaria a ideia de fala e/ou discurso. Ter preferido o termo “lissan” faz com que o título carregue um algo mais de poesia, pela capacidade que tem a metáfora de alcançar outras dimensões.

A escolha também permite perceber, ou imaginar, talvez quando já se sabe algo sobre os árabes, que haveria uma conexão entre o universo físico, corporal, necessário à expressão, e a dimensão cultural em que os árabes se viam (e se veem ainda) inseridos, a sua identidade cultural.

Lissan” também nos remete a uma característica histórica da língua árabe, que não lhe é exclusiva, mas que serve como marcador essencial: a prevalência da oralidade durante um grande período da sua evolução. Antes que inscrições em árabe aparecessem e logo se espalhassem (primeiro usando o sistema de escrita nabateu e depois no que seria a grafia árabe que conhecemos até hoje), os árabes valorizavam imensamente a eloquência, a poesia, a sofisticação do discurso.

*Salem Nasser é professor da Faculdade de Direito da FGV-SP. Autor de, entre outros livros, de Direito global: normas e suas relações (Alamedina). [https://amzn.to/3s3s64E]

A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
3
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
4
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
5
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
11
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
12
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
13
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
14
A voz da saga
30 Nov 2025 Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO: Prefácio do livro “Melhores contos”, de João Guimarães Rosa
15
Por que a Inteligência artificial não faz justiça? – 2
29 Nov 2025 Por ARI MARCELO SOLON & ALAN BRAGANÇA WINTHER: Os fundamentos da ciência da computação e da filosofia do direito mostram que a Inteligência Artificial é estruturalmente incapaz de realizar justiça, pois esta exige historicidade, interpretação contextual e uma "variável caótica" humana que transcende a mera racionalidade algorítmica
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES