Por DIEGO RABELO*
A resistência iraniana, fundamentada na adaptabilidade e persistência, demonstra que a independência política e ideológica pode ser alcançada mesmo nas condições mais adversas, desafiando o imperialismo global
1.
Lembro-me de quando comecei a me interessar pelo Oriente Médio e tinha claro em mente um aspecto estruturante para compreender a correlação de forças regionais: a existência de uma aliança informal, mas profundamente eficaz, de grupos e Estados que resistem ao imperialismo ocidental. Na época, falar em “arco da resistência” era algo totalmente inusitado, quase fantasmagórico. Era um conceito que parecia confinado a círculos ideológicos marginais, considerado “campista” ou “retrógrado”.
Cheguei a ouvir de uma agente da CIA em uma palestra na UFSC – Sarah al Suri, que passeou pelo Brasil financiada por sindicatos ligados ao PSTU para difundir a narrativa da chamada “revolução síria” – a mesma que hoje vemos ser liderada por Abu Mohammad al-Julani, um wahhabita ex-Al-Qaeda que, após um banho de media training, veste bons ternos, aparece com a barba aparada em fotos e vídeos – que tal categoria “é anacrônica e nem mesmo seus supostos beneficiários se identificam com ela”.
Hoje, no entanto, essa expressão não apenas circula em publicações de análise geopolítica, mas também aparece em discussões populares nas redes sociais, podcasts e manifestações públicas de solidariedade.
Mais do que um slogan ou um arranjo retórico, o Arco da Resistência, ou Eixo da Resistência – também chamado de “Anel de Fogo” – consolidou-se como uma realidade estratégica. Liderado pelo Irã, esse eixo inclui historicamente o governo sírio,[1] o Hezbollah libanês, as Forças de Mobilização Popular (MPU) do Iraque, os houthis (Ansar Allah) no Iêmen e as forças palestinas da Jihad Islâmica e do Hamas.
Trata-se, ao mesmo tempo, de uma via de dissuasão iraniana: o país, que não possui nem nunca pretendeu possuir armas nucleares, optou por construir uma rede de alianças regionais que cria um “anel de fogo” ao redor de Israel e bases americanas, funcionando como escudo e mecanismo de pressão.
Nos últimos anos, o Irã tem sido alvo constante de bombardeios israelenses que visam enfraquecer suas capacidades militares e sua rede de aliados no Oriente Médio. Porém, longe de sucumbir, a República Islâmica não apenas suportou essas ofensivas, mas aprimorou sua capacidade de resposta, adotando táticas de guerra assimétrica que vêm causando danos significativos à infraestrutura israelense.
Ataques precisos contra instalações militares, sistemas de radar e centros de comando têm exposto a vulnerabilidade da suposta superioridade tecnológica israelense e feito o Estado de Israel conviver com um novo grau de insegurança. Essa escalada mostra que o Irã conseguiu transformar seu território e seus aliados em plataformas efetivas de dissuasão, complicando as operações militares israelenses.
Além disso, o Irã promoveu uma coordenação estreita com grupos aliados – Hezbollah no Líbano, as Forças de Mobilização Popular no Iraque, e outros atores regionais – para orquestrar ataques que ultrapassam as fronteiras iranianas.
2.
Essa rede ampliada de resistência permitiu que os contra-ataques atingissem não apenas alvos israelenses, mas também bases americanas estratégicas espalhadas pelo Iraque e pela Síria. Em vários momentos, mísseis balísticos, drones e foguetes lançados a partir dessas forças acertaram depósitos de armas, centros de comando e contingentes militares estadunidenses, forçando os Estados Unidos a aumentar as medidas de segurança e a repensar sua postura na região.
A pressão contínua sobre as bases americanas tem implicações diretas para a presença imperialista no Oriente Médio. O Irã, ao evitar uma confrontação direta e em larga escala, usa a guerra de atrito para desgastar a vontade política dos EUA de manter suas tropas no solo regional.
Esses ataques reiterados não apenas causam danos materiais, mas simbolizam um desafio à hegemonia estadunidense, mostrando que o poder militar americano não é absoluto nem incontestável. Assim, o Irã usa a guerra híbrida como forma de contestar o domínio global, impondo custos estratégicos e obrigando seus adversários a considerar alternativas políticas e militares.
Por fim, essa dinâmica de resistência e contra-ataque comprova a eficácia do chamado “Anel de Fogo” iraniano como mecanismo de dissuasão regional. Sem dispor de armas nucleares, o Irã utiliza essa rede de aliados e sua capacidade de operar em múltiplos fronts para garantir um equilíbrio de poder desfavorável a seus inimigos, ao mesmo tempo em que reforça a mensagem de que qualquer agressão a seus interesses será respondida com firmeza.
Essa estratégia, fundamentada na adaptabilidade e na persistência, tem forçado Israel e os Estados Unidos a conviverem com uma realidade onde a estabilidade regional é precária e o custo de manter uma política de intervenção militar é cada vez maior.
Essa estrutura de resistência ensina ao mundo algo fundamental: não há hegemonia incontestável quando há vontade política, organização e memória histórica. O Irã, sob embargo e isolamento desde 1979, conseguiu não apenas resistir, mas influenciar e articular forças regionais capazes de enfrentar Israel, bloquear a expansão saudita e frustrar os planos dos EUA no Iraque e na Síria.
A Revolução Iraniana, frequentemente demonizada no Ocidente, mostrou – como afirma Osvaldo Coggiola em seu livro A Revolução Iraniana – que “a maior ameaça ao imperialismo não é a potência militar, mas a independência política e ideológica de um povo organizado” (COGGIOLA, 2020, p. 89). Ela demonstrou que uma nação periférica pode reorganizar seu papel internacional sem se submeter às lógicas do capitalismo global, ainda que a um alto custo.
3.
É claro que essa resistência não ocorre sem contradições. O Irã é um regime teocrático, com severas limitações às liberdades civis internas. Contudo, essa caracterização precisa ser analisada com cuidado à luz da crítica do orientalismo elaborada por Edward Said. Em sua obra clássica, Orientalismo, Edward Said afirma: “O Oriente foi quase uma invenção da Europa, e foi um lugar de romances, seres exóticos, memórias e paisagens obsessivas” (SAID, 2007, p. 21).
A ênfase ocidental em denunciar o caráter religioso do governo iraniano frequentemente serve mais à construção de um inimigo cultural do que a uma análise honesta da realidade política. Edward Said nos alerta que essa imagem do Oriente irracional e fanático é funcional ao projeto imperialista, pois justifica intervenções externas e deslegitima qualquer forma autônoma de soberania que fuja ao modelo liberal ocidental.
Ao formar uma teia de alianças com grupos marginalizados, o Irã transformou a geopolítica da resistência em algo orgânico. O Hezbollah, por exemplo, é hoje um ator estatal no Líbano, com representação parlamentar e capacidade militar autônoma. As MPU no Iraque foram fundamentais para derrotar o Estado Islâmico quando os EUA hesitavam em agir efetivamente.
Os houthis, um bando de maltrapilhos que, em quase dez anos da chamada “guerra esquecida”, derrotaram os poderosos exércitos das monarquias do Golfo, hoje dirigem a maior parte do Iêmen. Apesar de isolados e sob bombardeios diários da coalizão saudita, mantêm controle sobre grande parte do território, provando a força popular e a capacidade de organização desse movimento. O Hamas, mesmo cercado em Gaza, revelou uma capacidade de enfrentamento em outubro de 2023 que surpreendeu até analistas israelenses.
Mais importante que os feitos militares, no entanto, é o modelo de resistência de base comunitária, disciplina estratégica e integração entre frentes culturais, religiosas e sociais. Em vez de depender de grandes arsenais ou alianças institucionais formais, o Eixo da Resistência atua como um organismo descentralizado, mas coeso. Isso lembra os modelos de guerrilha anticolonial que marcaram a luta contra os impérios europeus no século XX, atualizados agora com táticas de guerra assimétrica, guerra de informação e inserção social local.
A hegemonia cultural ocidental, baseada na ideia de que a resistência é coisa de “fanáticos”, também está sendo contestada. O cinema iraniano, por exemplo, conquistou reconhecimento global com uma estética profundamente crítica e humana.
O Irã também lidera redes midiáticas como a PressTV e colabora com veículos alternativos internacionais. A resistência hoje se faz também por narrativas: desmistificando a ideia de que só há um modelo legítimo de modernidade – aquele ditado pelos Estados Unidos e Europa Ocidental.
4.
Na esfera internacional, vemos agora países da América Latina, África e Ásia dialogando abertamente com o Irã e seus aliados. A entrada do Irã no BRICS+, as relações comerciais com a Venezuela, a Síria e a China mostram que a construção de uma multipolaridade não é mais um sonho distante, mas um processo em andamento. E esse processo foi alimentado, em grande parte, pela tenacidade iraniana em não ceder.
No entanto, não devemos romantizar ou congelar o Eixo da Resistência como algo acabado. Trata-se de uma configuração fluida, com disputas internas, dilemas éticos e estratégicos constantes.
Há quem acuse o Irã de instrumentalizar os conflitos regionais para manter sua influência, ou de sufocar movimentos progressistas internos em nome da luta anti-imperialista. Essas críticas podem ter algum grau de legitimidade e, em alguma medida, necessárias. Mas ignorar a contribuição estratégica desse campo na contenção do imperialismo seria uma cegueira voluntária.
O Arco da Resistência, ao contrário do que dizia Sarah al Suri, é hoje uma categoria viva, incorporada por seus protagonistas e reconhecida até mesmo por seus inimigos. Israel, ao bombardear sistematicamente instalações na Síria no passado, ao eliminar comandantes da Guarda Revolucionária em Bagdá ou Damasco, reconhece na prática a existência desse eixo. Os EUA, ao manterem tropas no nordeste da Síria e no Golfo Pérsico, admitem o temor da consolidação dessa rede.
O ensinamento que os iranianos legaram ao mundo não é que o anti-imperialismo é um destino ou uma vocação cultural. É que ele é um projeto político e estratégico, possível mesmo nas condições mais adversas. Ensinam que alianças contra-hegemônicas podem ser construídas fora das lógicas de Washington, que o Sul Global tem capacidade de autodefesa, e que resistir é, antes de tudo, uma arte de sobrevivência e imaginação histórica.
Talvez o maior mérito do Eixo da Resistência seja justamente esse: ter feito da resistência um horizonte possível, não uma nostalgia do passado. E isso, em um mundo sufocado por guerras híbridas, fake news, sanções e desinformação, já é uma vitória.
*Diego Rabelo é professor do Departamento de Museologia Conservação e Restauro da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
Nota
[1] O governo sírio caiu em dezembro de 2024 após anos de guerra civil e pressão internacional. O futuro da Síria permanece incerto, e seu papel no eixo da resistência está em aberto diante das transformações políticas e territoriais no país.
Referências
SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. [https://amzn.to/3U8xA8o]
COGGIOLA, Osvaldo. A Revolução Iraniana. São Paulo: Sundermann, 2020.
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