Por JAIME TROIANO*
Os dados do censo revelam surpresas e inquietações sobre a fé no Brasil, destacando o crescimento evangélico e a subnotificação de religiões de matriz africana
1.
Quando a gente precisa responder ao clamor do “Brasil, mostra sua cara”, o IBGE é quem abre a janela para enxergarmos quem somos hoje, de corpo inteiro.
As travas políticas do antigo governo retardaram além da conta o Censo com a cumplicidade da pandemia. O Brasil numa grande angular agora está aí, cada vez mais visível para todos nós. Parabéns ao IBGE!
E nos últimos dias, chamou minha atenção a publicação de uma nova rodada de resultados: a nossa religiosidade. Tim por tim, estado por estado, religião por religião, confirmações, surpresas e inquietações.
Começo pela principal surpresa: se alguém estava imaginando que o ritmo de crescimento dos evangélicos, alimentado pelas vertentes pentecostais e neopentecostais, continuaria acelerado como nas últimas décadas, enganou-se. O ritmo de avanço diminuiu, embora essas vertentes continuem crescendo. Hoje, representam 26,9% da sociedade, e a maioria católica é de 56,7%.
Minha humilde hipótese para a taxa de crescimento evangélica, que frustrou as expectativas de muitos prognósticos, está apoiada em dois fatores: fervor e comunicação.
O primeiro é que os evangélicos são um segmento de pessoas muito mais “militantes” em torno da disciplina e envolvimento com os preceitos de sua religião. Sua atividade pessoal, social, familiar é muito mais atravessada pela moral evangélica. O fervor e o compromisso que os movem manifestam-se de forma intensa. Salvo em ocasiões muito episódicas como o que vimos na morte do Papa Francisco e o Conclave do Papa Leão XIV as manifestações católicas não são tão visíveis e festivas no dia a dia.
O peso numérico dos evangélicos no Censo é 26,9%, mas me atrevo a dizer que seu peso ponderado é muito maior. É como se, de alguma forma, cada evangélico ocupasse um espaço muito maior em nosso imaginário do que os números em si retratam. E daí, para imaginar uma taxa de crescimento bem maior de crescimento do que se pudesse esperar, foi apenas um passo.
O segundo fator que gera a sensação de um crescimento mais acelerado é o padrão de comunicação das redes e das atividades evangélicas. De um lado, o controle e estabilidade da atividade católica, do outro, a extroversão e multiplicação midiática dos evangélicos.
Outro indicador na mesma direção? Em algumas cidades, e São Paulo é um bom exemplo, experimente caminhar pelas regiões fora dos bairros de elite e repare: a multiplicidade de oferta de templos pentecostais e neopentecostais. A impressão que esses contatos visuais geram é algo assim: se eu preciso de um apoio espiritual, de uma chance a mais para encontrar caminhos para mim ou minha família, como meus vizinhos fizeram…recorro a que está mais próxima.
Quase como se escolhesse um mini-mercado perto de casa. A soma dessas oportunidades de acesso à vida religiosa é um indicador que alimenta uma projeção estatística “caseira”. Algo como: eles devem estar crescendo muito.
2.
Uma segunda surpresa nos dados recentes do IBGE foi o número que mostra a presença de umbandistas e candomblecistas. Um número que gravita ao redor de 1%, no total Brasil. Repito, eu escrevi certo, um por cento. Cerca de um milhão e oitocentos indivíduos.
Alguém mais acredita nesse número?
Num país em que 54% de nossa população é negra (IBGE), onde a matriz africana penetrou profundamente em muitas vertentes de nossa cultura, o número 1% é difícil de engolir. E mais curioso, é o estado brasileiro onde esse número é mais alto. Adivinhem! O Rio Grande do Sul tem 3,2 % de praticantes, muito mais alto do que seu berço na Bahia.
O que me impressiona não é o 3,2% do Rio Grande do Sul, até porque políticas anti-racistas têm sido tratadas com cuidado no estado. O que fere minha intuição é o um por cento. Aprendi bastante com um grande professor de estatística da USP, que dizia mais ou menos o seguinte: quando a estatística contrariar frontalmente o bom senso, ignore a estatística!
Quero recorrer a quem entende muito mais sobre religião, em busca de explicações.
Matheus Pestana do ISER (Instituto de Estudo das Religiões diz o seguinte (Estadão 06/06/2025): “Isso é muito brasileiro, se declarar católico e frequentar terreiros”. Afinal, somos um país de devoções sincréticas, difíceis de encaixar em categorias rígidas dos formulários censitários. E ele diz ainda: “Acho que a subnotificação é explicada pelo preconceito e também por conta de uma metodologia muito rígida”.
Ou seja, sendo sensato é melhor admitir que a declaração que gera o 1% é fruto mais uma daquelas respostas cômodas que protegem as pessoas com seus álibis politicamente corretos. Uma pena que o número não reflete quem somos, de corpo inteiro.
Na minha profissão, em estudos de mercado e branding, estamos cansados de tentar contornar essas declarações distorcidas, que o IBGE, infelizmente, não é capaz de resolver. Apesar da fantástica contribuição que ele coloca em nossas mãos e nas mãos de quem precisa planejar a gestão pública e de empresas. Sabemos o quanto, nessas declarações verbais como as do Censo, as pessoas dizem o que pensam mas acabam fazendo o que sentem.
Por outro lado, são tantas contribuições e benefícios que o Censo nos dá que preferimos – acho que posso falar em nome de quase todos – contar com IBGE com esses pequenos desvios do que um jogo de esconde-esconde, onde cada um pode afirmar o que bem entende sobre a nossa população.
Aguardem e acompanhem. A cada semana, novos resultados do IBGE têm mostrado mais detalhes do que nós brasileiros somos de corpo inteiro. E com isso vai atualizando nossa carteira de identidade nacional”.
*Jaime Troiano é engenheiro químico pela FEI e sociólogo pela USP. Autor, entre outros livros, de As marcas no divã (Editora Globo). [https://amzn.to/3H5cQLK]
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