Doravante, só pago com pix

Imagem: Bruno Peres/ Agência Brasil
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Por JOSÉ RICARDO FIGUEIREDO*

Vê-se que o pix veio incomodar um negócio altamente lucrativo para o sistema financeiro norte-americano. A própria investida de Donald Trump contra ele demonstra a relevância de sua criação

1.

De repente, ressurge a questão nacional, e com ela a luta anti-imperialista. A iniciativa do Sr. Trump contra a produção brasileira exportada aos EUA mereceu repúdio geral, de empresários e trabalhadores, rurais e urbanos. Ao mesmo tempo, a traição bolsonarista ao seu patriotismo retórico ficou transparente, recolocando as bandeiras do patriotismo e do nacionalismo em mãos consequentes.

Não que a ação política e a exploração econômica imperialista inexistissem, apenas não afloravam tão nitidamente. Tiveram importância enorme na Lava-Jato, que foi absolutamente responsável pelo golpe de 2016, pela prisão de Lula e pela eleição de Jair Bolsonaro, e foi também responsável pela destruição das potentes empresas de engenharia pesada brasileira, que concorriam com as maiores empresas similares no mundo.

As revelações da Vaza-Jato e dos documentos da operação Spoofing viriam demonstrar a associação ilegal dos procuradores da Lava-Jato com serviços de inteligência estadunidenses. Mas antes disso havia indícios que mereceriam atenção, a começar pelo histórico de relações do ex-juiz Moro com iniciativas do Departamento de Justiça estadunidense, e pela revelação de espionagem estadunidense contra Dilma Rousseff.

Mais ainda, o jornalista Jânio de Freitas, então na Folha de S. Paulo, observou que, em contraste com o rigor com encarcerava empreiteiros brasileiros, nenhum empresário estrangeiro foi preso pelo Sr. Moro, apesar de haver denúncias de corrupção envolvendo as empresas Samsung, Mitsui e os estaleiros Jurong e Keppel Fels de Cingapura. Enquanto as empresas brasileiras eram proibidas de firmar contratos com governos até fecharem acordos de leniência, as empresas estrangeiras estavam liberadas. Entretanto, pouco se atentou para a atuação imperialista durante a luta de resistência contra o golpe de 2016 e contra a prisão de Lula.

A atuação do capital financeiro estadunidense em nossa economia é permanente. Grande parte da dívida pública brasileira, altamente remunerada pela Selic, é propriedade estrangeira. Quase a metade das ações da Petrobras, por exemplo, é propriedade estrangeira.

Sob Jair Bolsonaro, a Petrobrás remunerou por anos seguidos seus acionistas com mais de 90% dos lucros da empresa, e ainda tratava os recursos obtidos com a privatização de subsidiárias como se fossem lucros, para distribuí-los. Atualmente os acionistas ainda são remunerados com 50% dos lucros, quando o mínimo legal é 25%. Em síntese, a luta contra a ditadura do capital financeiro é, também, uma luta contra as “perdas internacionais”, como dizia o saudoso Leonel Brizola. Mas não se costuma destacar este aspecto.

2.

Parece mesmo haver uma subestimação da importância da questão nacional. Há pouco, respondendo aos líderes bolsonaristas que e adornavam com o boné vermelho do movimento trumpista Make America Great Again, o PT adotou um boné azul com dizeres “O Brasil é dos brasileiros”.

Li críticas ao boné azul por “apelar para o nacionalismo”. Ora, mesmo quando parecia uma disputa meramente simbólica e ideológica, foi importante confrontar a mensagem vira-lata do boné dos bolsonaristas com o dever dos políticos brasileiros defenderem seu povo e seu país. E a atual investida trumpista contra nossa economia mostra que não se tratava de uma disputa meramente simbólica e ideológica.

Houve no passado um grande consenso entre os setores de esquerda sobre a questão nacional. Havia unidade em torno de medidas de proteção à economia brasileira, que eram atacadas pelos liberais, alcunhados como “entreguistas”. Os setores nacionalistas e de esquerda tinham clareza sobre a diferenciação entre o nacionalismo opressor, seja imperialista ou colonialista, e o nacionalismo libertador, anti-imperialista e anti-colonialista.

O antagonismo radical entre os objetivos de ambos leva a uma diferença radical de concepções ideológicas. O nacionalismo imperialista ou colonialista precisa afirmar sempre a superioridade do opressor, e por isto estimula a xenofobia e o racismo, enquanto o nacionalismo libertador busca romper uma situação de inferioridade, fundando-se no clamor pela igualdade.

O Brasil tem agora importantes questões práticas a resolver acerca da forma de enfrentar o tarifaço do Sr. Trump, quando está claro seu jogo duro nas negociações.

A reação de diferentes países ao tarifaço tem mostrado a importância de dispor-se de um cardápio de medidas retaliatórias eficazes. Assim, a China foi bem-sucedida ao tensionar as negociações interrompendo o fornecimento de minerais de terras raras, imprescindíveis à moderna tecnologia, além de outras medidas. Por outro lado, a predisposição para a negociação a qualquer custo levou Japão, Filipinas, a própria Europa e outros a firmarem acordos desvantajosos.

3.

Na discussão acerca das possíveis medidas retaliatórias contra o tarifaço de Donald Trump no Brasil, já foi observado que o aumento simétrico de tarifas por nossa parte aos produtos estadunidenses tende a provocar inflação e a frear investimentos dependentes de maquinário daquela origem. Seria mais adequada uma escolha criteriosa dos produtos a serem taxados.

Por conta disso, passou-se a falar em medidas distintas, complementares a um aumento seletivo de tarifas. Por exemplo, foi mencionada a quebra de patentes de medicamentos de empresas estadunidenses, possibilitando produção nacional de genéricos, medida que é anti-inflacionária e estimuladora do crescimento tecnológico brasileiro.

Pode-se temer o risco de que acusações de quebra de contratos venham prejudicar a atração de investimentos, mas está bem claro quem vem quebrando todos os contratos e práticas comerciais no Planeta.

O presidente Lula afirmou que o Brasil vai taxar as big techs de informática. Excelente proposta, com a qual ganham o erário e a economia brasileira. Além de justos impostos, cabe também regulamentar a distribuição dos recursos arrecadados com propaganda entre aquelas empresas e os produtores de conteúdo brasileiros.

Outra questão envolve as empresas de cartão de crédito, que abocanham parcela relevante do faturamento de empresas brasileiras, cobrando taxas da ordem de 1,5% a 2% para compras a vista (débito) e de 3% a 4% para compras a crédito. Assim, uma percentagem do que se paga por cada produto, ainda que seja de fabricação inteiramente nacional, vai para fora do país, pelo simples uso dos cartões de débito e crédito.

Vê-se que o pix veio incomodar um negócio altamente lucrativo para o sistema financeiro norte-americano. A própria investida de Donald Trump contra ele demonstra a relevância de sua criação. Por alvejarem o pix, as empresas de cartões de crédito tornam-se um dos alvos mais adequados para a retaliação brasileira.

Eu costumava usar cartão de débito e crédito por comodidade, mas a lembrança da imagem do Sr. Trump me deu o impulso repentino de usar o pix, apesar de demandar maior número de operações no celular do que o manejo dos cartões. Neste momento tomei a decisão de que minhas compras não mais irrigarão o sistema financeiro gringo: doravante, só pago com pix, ou dinheiro em papel.

Assim, dei-me conta de que nossa retaliação não precisa esperar o resultado das negociações lideradas pelo vice-presidente Geraldo Alckmin, nem qualquer iniciativa governamental.

O pix já é valorizado por comerciantes e prestadores de serviço como meio de pagamento isento de taxas. Neste momento, merece ser valorizado pelo conjunto da população como afirmação da soberania nacional. É pertinente uma campanha de estímulo ao uso do pix, como forma de pressão contra o tarifaço, com a possibilidade de envolver ativamente milhões de brasileiros.

Convido o leitor a aderir, proponho que os movimentos sociais e partidos progressistas adiram, e peço a jornalistas, blogueiros e influenciadores que divulguem esta campanha: doravante, só se paga com pix!

*José Ricardo Figueiredo é professor aposentado da Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp. Autor de Modos de ver a produção do Brasil (Autores Associados\EDUC). [https://amzn.to/40FsVgH]


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