Vale tudo – o remake neoliberal

Imagem: Pierre-Axel Cotteret
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Por LUIZ MARQUES*

O verdadeiro “vale tudo” não é o gesto anárquico, mas a lógica sistêmica que mercantiliza até a rebeldia, convertendo a luta de classes em drama individual e o SUS em pano de fundo para vender xampu

Lançada em maio de 1988 e finalizada em janeiro de 1989, a novela Vale Tudo traz a icônica cena do personagem que ao fugir da justiça faz o gesto da “banana para o Brasil”. Quem simboliza o mal no remake neoliberal da teledramaturgia ainda é Odete Roitman, cujo sobrenome deriva do iídiche (roit / vermelho, man / homem). A indisfarçável insinuação ideológica dos tempos da Guerra Fria ressurge agora na hegemonia totalitária da mercadoria, segundo o padrão dos shopping centers.

Para Renato Janine Ribeiro, o protesto indignado da versão que se despede da ditadura cede a um arrivismo. Os valores neoliberais celebram a antipolítica e o individualismo (da loba, frise-se). A tragédia vira comédia. “Em tempos de empreendedorismo e ódio, a esperteza malvada torna-se aceitável”. As vitórias concentram-se no identitarismo. Lá, o negro aparecia como trombadinha; ora figura com estrelas. O ex-ministro da Educação aponta a metamorfose do país em quatro décadas.

A gramática cênica busca persuadir o público de que entre a redemocratização e o status quo atual não há uma contradição, abstraindo do balanço as privatizações, terceirizações e precarizações do trabalho. Pior, recusa uma saída do labirinto por meio da organização e da participação popular nos movimentos sociais e partidos políticos para uma superação da ordem, congelada no caos. Com a overdose, o espetáculo converte em equivalentes estruturas e acenos políticos com sinais díspares.

Odete Roitman é um significante à procura de significado. Seu fascínio está no fato de se situar na anormalidade absoluta, na incompreensão. Impossível justificá-la com as categorias convencionais da razão. A palavra passou a significar uma ação sem por quê. O mal supõe um ato de maldade, per se, praticado apenas porque é para o mal. Não tem explicação. “É como entrar no trem de subúrbio lotado com uma enorme jiboia”, comenta Terry Eagleton na introdução de um ensaio Sobre o mal.

A persona-mãe responsável pelo acidente automobilístico do filho culpa a filha pelo infortúnio, ao encarnar o mal que atrai os telespectadores no derradeiro capítulo. O Gran finale revela o talento comercial da emissora para as vendas. Debora Bloch lava os cabelos com uma marca de xampu. Renato Góes enaltece as camionetes utilitárias para enfrentar o confuso trânsito do Rio de Janeiro. Fernanda Torres comercializa as sandálias Havaianas, na praia. O merchandising invade as telas.

Na euforia, a Rede Globo enche os bolsos com 64% de audiência devidamente monetizada, o que não acontecia há muitos carnavais sequer em jogos de futebol para decidir algum campeonato. A medíocre concorrência disputa horários da poderosa grade da televisão, por exemplo, frente o lixo dos entretenimentos oferecidos nas tediosas tardes de domingo. O espectro do mal mobiliza mais as emoções das pessoas do que um gol no encerramento de uma partida empatada até os acréscimos.

Conforme o presidente Lula da Silva em redes sociais, no coração da brasilidade o mal é a brutal desigualdade social. Trata-se da ciranda financeira, das big techs, dos bilionários e do Congresso que reluta em taxar os ricos e incluir os pobres no Orçamento da União. A direita mantém hábitos do período colonial-escravista, ao flertar com a segregação e sequestrar os direitos. A prioridade é o futuro da comunidade nacional, a partir do princípio-esperança para costurar o tecido social gasto.

No vale de lágrimas

Em paralelo, há que encarcerar o inominável para um ajuste de contas, pelos delitos cometidos. Da pedofilia (meninas venezuelanas) ao negacionismo vacinal na pandemia; do terrorismo de bombas em caminhão de combustível no aeroporto de Brasília à destruição das torres de energia elétrica. Três delas derrubadas – Cujubim (RO), Rolim de Moura (RO) e Medianeira (PR). O objetivo era criar as condições sociais para a volta do regime de torturas. Nada foi realizado sem planejamento.

A prioridade combina-se com uma rigorosa e profilática punição dos mentores do terror para cobrar o preço pela tristeza, a humilhação e a indiferença demonstrada com o sofrimento da população. Por sorte, não magnificado em função do rotundo fracasso das investidas para suprimir o Estado de direito democrático. A responsabilização pelo putsch, porém, está longe de se equiparar ao Primeiro Testamento bíblico. “Olho por olho, dente por dente”, para que todos fiquem cegos e desdentados.

A esperança anda junto com o espírito de vendetta dos ofendidos, sem violar a legislação vigente. Crime & castigo, mas não de maneira a lembrar os infelizes monarcas assassinados em revoluções: na Inglaterra, o rei Carlos I em 1649; na França, o rei Luiz XVI em 1793; na Rússia, o czar Nicolau II e sua família em 1918. Ainda, sem vitimar pastores reacionários como na insurreição da Comuna de Paris em 1871 e da guerra civil espanhola em 1936, com templos vandalizados qual a logística Igreja de Sacré-Couer, toda em mármore branco de Carrara, no topo da colina de Montmartre.

Se fôssemos bons por natureza e – como diz Oscar Wilde – nossos ancestrais tivessem aprendido a rir enquanto desenhavam na parede das cavernas, a história seria generosa conosco. Sem o consolo, conjugamos mágoas com a letra fria da Constituição na tentativa de exorcizar o perigo representado pelas botas do obscurantismo, da truculência e soberba castrenses. Sem anistia aos anjos do mal.

No vale de lágrimas, nunca deixamos de promover lutas fratricidas. A colonização para levar às etnias originárias a civilização – o modelo de vida europeu – lega ruínas arquitetônicas, culturais, linguísticas e de saberes. Não à toa, os clássicos da filosofia política se referem à humanidade com termos depreciativos (traidores, invejosos, egoístas, etc). Não há belas almas, na vitrine humana.

Thomas Hobbes, a propósito, quando descreve no livro Leviatã a “guerra de todos contra todos” inspira-se nos primórdios da sociedade burguesa, na fase inicial da modernidade. Não projeta especulações; retrata com fidelidade o modo de ser do e no capitalismo desde a acumulação primitiva do capital, em que “o homem é o lobo do homem” (“Homo homini lupus est”). Odete Roitman é a banalidade e a inteligência do mal em proveito próprio e da plutocracia, para um eterno retorno com patrocínio.

Ao reeditar o folhetim Vale tudo, de Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, a Globo mira as relações na sociedade neoliberal, a crise da democracia, do igualitarismo e do solidarismo institucional. Mas, numa cena fora da curva, reconecta-se com o Brasil ao mencionar (ufa) nossa soberania e sacudir a viralatice tradicional.

Ao citar o Sistema Único de Saúde (SUS), a educação pública, a urna eletrônica e a ciência nacional no cotejo com falhas estruturais dos Estados Unidos contorna o divórcio cognitivo com a realidade concreta para não perder consumidores. Onde existe Thanatos, existe Eros para nos ensinar a fracassar melhor. Até o plim-plim pode escutar o povo!

*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.


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