Yamandú Orsi

Imagem: Jared Schwitzke
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Por MAURICIO VÁZQUEZ CORREA*

Um progressismo que pactua com o autoritarismo externo e a ortodoxia econômica interna trai a esperança de quem viu nele uma alternativa real

 A poucos meses de completar seu primeiro ano de governo, Yamandú Orsi mantém bons índices de aprovação[i] e uma base sólida de apoio dentro da Frente Ampla, coalizão de centro-esquerda que o levou ao poder. No entanto, por trás da estabilidade institucional e do discurso moderado, começam a emergir contradições que desafiam o projeto político do novo progressismo uruguaio – um progressismo que tenta conciliar prudência fiscal, equilíbrio diplomático e sensibilidade social em um cenário regional e global cada vez mais polarizado.

Economia e orçamento

No plano econômico, o recente projeto de Lei Orçamentária prioriza recursos para áreas sociais, como o aumento destinado ao Ministério do Desenvolvimento Social (MIDES). Essa orientação parece positiva, sobretudo após cinco anos do governo de Luis Lacalle Pou, que liderou uma coalizão de direita e favoreceu os setores mais abastados durante sua gestão.[ii]

O orçamento quinquenal, porém, não agradou a todos. Setores como o da educação reagiram com insatisfação. A Universidade da República (UDELAR) reivindica mais verbas para bolsas estudantis, pesquisa e descentralização de cursos fora de Montevidéu.

Sindicatos de professores, funcionários e estudantes afirmam que o orçamento ainda está longe das metas históricas de financiamento da educação. A antiga bandeira da esquerda – destinar 6% mais 1% do PIB à educação e à pesquisa – segue distante de se concretizar.

Por outro lado, a central sindical PIT-CNT, com apoio de alguns parlamentares governistas, propôs a criação de um imposto de 1% sobre o capital do 1% mais rico do país, como forma de combater a pobreza infantil[iii] –uma das emergências sociais mais graves e uma promessa de campanha de Yamandú Orsi. No entanto, a proposta foi rejeitada pelo ministro da Economia e Finanças, Gabriel Oddone, e pelo próprio presidente. O argumento oficial foi de que “não seriam criados novos impostos”, mesmo tratando-se de uma medida voltada ao setor mais concentrador de riqueza do país.

Paradoxalmente, houve disposição para aplicar uma taxa de 22% de IVA sobre as compras realizadas na plataforma chinesa TEMU, atendendo às demandas de importadores e comerciantes locais. A medida afeta sobretudo o pequeno consumidor, que perde uma vantagem tributária.

Mas, além do impacto direto, há uma leitura geopolítica: compras feitas em plataformas norte-americanas como a Amazon não sofrerão as mesmas restrições, por estarem amparadas pelo Tratado de Proteção de Investimentos assinado com os Estados Unidos em 2007, durante o primeiro governo da Frente Ampla.

Na prática, o governo opta por penalizar uma empresa chinesa e favorecer uma norte-americana – um gesto que simbolicamente pode ser interpretado como um alinhamento à política comercial de Washington em detrimento da China, principal parceiro comercial do Uruguai ao lado do Brasil.

Vale lembrar que não foram poucos os setores da Frente Ampla que expressaram desconforto com a nomeação de Gabriel Oddone como ministro da Economia. Desde o Partido Comunista e o Partido Socialista – bases históricas da coalizão – questionou-se a orientação ortodoxa da nova equipe econômica. Gabriel Oddone, ao apresentar um plano de orçamento “austero” e “responsável”, adotou um vocabulário típico do manual neoliberal.

Para piorar, ele chegou a elogiar a política econômica de Javier Milei na Argentina, destacando “o grande avanço dos últimos 18 meses”.[iv] Tal afirmação ignora os efeitos devastadores das políticas de ajuste sobre o povo argentino: cortes em saúde, educação, aposentadorias e salários. Colocar a macroeconomia acima do bem-estar social parece ser um dogma que une neoliberais de todos os matizes.

Alinhamento geopolítico

No campo da política externa, também surgem sinais preocupantes. Durante uma recente visita a Montevidéu do presidente equatoriano Daniel Noboa, Yamandú Orsi assinou acordos de cooperação em defesa, segurança interna e combate ao narcotráfico. Segundo o governo, o objetivo seria “aprofundar as relações bilaterais”.[v]

No entanto, causa inquietação ver o Uruguai firmar vínculos em áreas tão sensíveis com um governo como o de Daniel Noboa, marcado por claros traços autoritários e desrespeito ao direito internacional – como ficou evidente no ataque policial à embaixada do México em Quito, em abril de 2024.[vi]

Daniel Noboa enfrenta denúncias por reprimir protestos[vii], perseguir movimentos sociais[viii] e até por supostas ligações com o narcotráfico através de sua empresa familiar, a Noboa Trading, implicada em apreensões de cocaína na Europa.[ix]

Além disso, tem incentivado a presença de contratistas militares privados, como a Blackwater[x] – empresa mercenária envolvida em golpes contra governos contrários aos interesses dos EUA e em crimes de guerra – e discute a possível reinstalação de bases militares norte-americanas no território equatoriano. Diante disso, cabe perguntar: que tipo de cooperação é possível entre o Uruguai e um governo com esse perfil?

Somando-se a isso, em agosto um contingente de fuzileiros navais norte-americanos do Comando Sul entrou no Uruguai para realizar manobras conjuntas com as Forças Armadas, sem autorização prévia do Parlamento. Mais do que o número reduzido de militares, o simbolismo do gesto é contundente: o Comando Sul representa, para os movimentos sociais de esquerda, o legado da ingerência militar dos Estados Unidos na América Latina – desde a Escola das Américas até o Plano Condor. Hoje, sob o disfarce de “treinamento técnico”, reativa-se o mesmo padrão de subordinação geoestratégica.[xi]

Para completar o panorama, em setembro, durante a visita de Yamandú Orsi à sede da ONU em Nova York, foi anunciado o estabelecimento da Universidade Adam Smith no Uruguai. No entanto, mais do que uma instituição acadêmica, trata-se de um think tank ultraconservador fundado por Ron DeSantis, governador de extrema direita da Flórida, e integrado por figuras como Juan Guaidó e Iván Duque.

A entidade está vinculada à Atlas Network, uma poderosa rede internacional da nova direita. Sua chegada ao Uruguai levanta sérias dúvidas sobre os verdadeiros interesses por trás da iniciativa – e sobre o rumo ideológico que o governo parece disposto a tolerar.

Gaza: uma ferida aberta

Talvez o sinal mais eloquente das contradições do governo de Yamandú Orsi esteja na postura diante do genocídio contra o povo palestino em Gaza – um acontecimento que tem colocado à prova a coerência ética e política dos governos em todo o mundo.

No caso uruguaio, a posição adotada pela administração de Yamandú Orsi tem sido marcada por uma prudência que beira a ambiguidade, distanciando-se da clareza de líderes progressistas como Gustavo Petro, Lula ou Gabriel Boric. Embora o Ministério das Relações Exteriores tenha expressado “preocupação com a crise humanitária” e apelado pelo fim das hostilidades, evitou qualificar as ações do Estado de Israel como genocídio ou crimes de guerra.

Nas recentes votações da Assembleia Geral das Nações Unidas, o Uruguai manteve uma posição que, embora condene os ataques do exército israelense contra a população civil palestina e defenda a criação de dois Estados como caminho para a paz, segue evitando nomear os fatos pelo que são: crimes de guerra e genocídio.

A chancelaria reiterou seu compromisso com a “neutralidade diplomática” e a “busca de consensos”, mas essa cautela – quando não acompanhada de uma condenação explícita – pode ser interpretada como uma forma de omissão política. No contexto atual, o silêncio diplomático, mesmo travestido de prudência, corre o risco de se tornar cumplicidade.

Essa postura parece refletir uma política externa que privilegia a moderação e evita desagradar os centros de poder. A mesma lógica que inspira a política econômica – a austeridade como virtude – projeta-se também sobre a diplomacia, onde a cautela se disfarça de equilíbrio.

O Uruguai, historicamente reconhecido por defender a autodeterminação dos povos e o respeito ao direito internacional, hoje parece optar pelo cálculo em vez da convicção. Em um cenário em que dezenas de milhares de civis palestinos – incluindo crianças e mulheres – são massacrados pelo exército israelense, e em que as instituições internacionais são ignoradas, a neutralidade se transforma em cumplicidade.

Gaza expõe, de forma brutal, a fratura do progressismo contemporâneo: sua dificuldade em manter coerência entre a justiça social interna e a solidariedade internacional. Nenhum projeto emancipador pode se sustentar se relativiza a defesa da vida e da dignidade humana por conveniência diplomática. O desafio do governo de Yamandú Orsi – que neste ponto se distancia da própria Frente Ampla – será decidir se quer ser lembrado como um governo que acobertou a injustiça e o genocídio, ou como um que teve a coragem de enfrentá-los.

Sinais de alerta

O núcleo mais fiel do eleitorado de esquerda, tradicionalmente anti-imperialista, decolonial e desenvolvimentista, observa com atenção – e certa desilusão – o rumo que o governo de Yamandú Orsi vem tomando. Vale lembrar que ele representa a renovação geracional da primeira onda de governos progressistas da Frente Ampla, liderada por duas figuras históricas: Tabaré Vázquez e José “Pepe” Mujica. Foi este último, inclusive, quem apadrinhou Yamandú Orsi, impulsionou sua candidatura e teve papel decisivo em sua ascensão política até a presidência.

Nesse contexto, uma parte importante do eleitorado frenteamplista vem reivindicando uma guinada à esquerda, tanto no plano econômico quanto na política externa.[xii] Tudo indica, porém, que o governo de Yamandú Orsi tem optado por um cálculo cuidadoso: preservar a estabilidade institucional no front interno, enquanto se alinha ao tradicional rumo liberal e atlantista que marcou a diplomacia uruguaia ao longo do século XX e neste início de século XXI.

Os sinais de uma nova ordem mundial são cada vez mais inegáveis. O dilema, então, não passa apenas pela gestão, mas pelo rumo: se o progressismo uruguaio será capaz de redefinir o seu lugar, ou continuará orbitando em torno das velhas certezas.

*Mauricio Vázquez Correa é licenciado em Relações Internacionais e Magíster em Estudos Contemporâneos da América Latina pela Universidade da República do Uruguai.

Notas


[i] Segundo a pesquisa publicada pela consultoria privada CIFRA em outubro de 2025, a aprovação de Orsi chega a 43%. Disponível em: https://bit.ly/3JhPh3H

[ii] A título de exemplo, segundo o Center for Economic and Policy Research (CEPR), durante o governo de Luis Lacalle Pou os mais ricos experimentaram um aumento em sua renda real; no entanto, os 50% mais pobres viram sua renda real cair 16%. Disponível em: https://bit.ly/4oseuaq

[iii] Em 2024, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística, a pobreza infantil afetou 32,2% das crianças com menos de seis anos. No grupo de 6 a 12 anos, a taxa é de 28,1%, enquanto entre adolescentes de 13 a 17 anos alcança 15,4%. Os idosos com mais de 65 anos registram o menor índice, com 6,3%.

[iv] Gabriel Oddone, em declarações feitas durante a cúpula do Mercosul. Disponível em: https://bit.ly/4orPjVv

[v] Nota oficial do acordo no site da Presidência. Disponível em: https://bit.ly/3JlbePh

[vi] Nota oficial de protesto do Governo Mexicano. Disponível em: https://bit.ly/47fOkAH

[vii] Segundo a Amnistia Internacional, Human Rights Watch, o Comitê Permanente para a Defesa dos Direitos Humanos e a própria Procuradoria-Geral do Estado, desde dezembro de 2024 foram registradas mais de 40 desaparições, 25 execuções extrajudiciais e mais de 100 assassinatos — “alvos neutralizados”, segundo o governo —, entre eles crianças e adolescentes. Esses organismos também denunciam falta de transparência judicial, torturas, prisões sem garantias e a estigmatização de defensores de direitos humanos, em um país onde o estado de exceção se transformou em forma de governo. Artigo da Amnistia Internacional. Disponível em: https://bit.ly/4on5L9w

Organizações de direitos humanos emitiram um comunicado de alerta sobre perseguição política e repressão ao direito de protesto. Disponível em: https://bit.ly/4ozJndn

[ix] Segundo documentos oficiais da polícia equatoriana, a empresa familiar do presidente Daniel Noboa estaria implicada no tráfico de cocaína. Artigo publicado pela Progressive International, disponível em: https://bit.ly/47i22TK

[x] Recomenda-se o artigo publicado por Henry Shuldiner no portal Insight Crime, intitulado: “América Latina: o novo laboratório de mercenários de Erik Prince”. Disponível em: https://bit.ly/48AtK0t

[xi] “A participação dos graduados da Escola em torturas, assassinatos e repressão política em toda a América Latina está tão amplamente documentada que, em 2001, seu nome foi oficialmente alterado para Instituto do Hemisfério Ocidental para a Cooperação em Segurança. Lesley Gill explora a história e apresenta um retrato completo da Escola das Américas.” The School of the Americas: Military Training and Political Violence in the Americas Autora: Lesley Gill — https://doi.org/10.1215/9780822386001 Editora: Duke University Press, 2004.

[xii] Recentemente, um grupo de militantes do Frente Ampla começou a se mobilizar para expressar seu desencanto com o governo de Orsi, que, para alguns, não é suficientemente de esquerda. Nota de imprensa disponível em: https://bit.ly/4odQV5q


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