O discurso da segurança à sombra das finanças

Imagem: Pixel Shot
image_pdf

Por ALEXANDRE FAVARO LUCCHESI*

A batalha pela segurança não será vencida com mais armas, mas com o enfrentamento do ecossistema que une finança ilícita, desigualdade e autoritarismo

A finança desregulada como veículo de operações ilícitas

Estimativas mostram que o “negócio” do crime transnacional movimenta entre US$ 1,6 e 2,2 trilhões por ano entre fluxos ilícitos globais em lavagem de dinheiro, crimes financeiros, tráfico de drogas e outras atividades correlatas.[i] Perpetradores de crimes financeiros dependem de redes de elite pessoal e profissional que operam através de plataformas financeiras sofisticadas.[ii]

Os mecanismos clássicos de financiamento do crime organizado, como empréstimos clandestinos, bancos clandestinos, empresas-fantasma, influência em cadeias de pagamento, e ocultação de propriedade conectam-se à chamada “economia legal” por meio de (a) jurisdições de sigilo corporativo, (b) fintechs e criptomoedas, (c) lacunas regulatórias e (d) movimentos rápidos de capital para lavar recursos e financiar operações de crime, corrupção e tráfico.

Na América Latina, essas dinâmicas financeiras convergem com fragilidades de estruturas de regulação financeira pouco consolidadas, jurisdição de baixa fiscalização, fronteiras permeáveis e a economia informal. Assim, redes criminosas com base local ou transnacional instalam nesses países uma verdadeira plataforma de reciclagem de capitais, extorsão, tráfico e lavagem.

Essa infiltração financeira compromete a soberania dos Estados, a eficácia da regulação e, consequentemente, a capacidade de formular políticas públicas coerentes, inclusive de segurança. Essas condições estruturais favorecem a apropriação da segurança pública pela lógica da captura conservadora.

A pauta da segurança tornou-se campo de disputa ideológica e política, na qual a direita, tradicional e ultraconservadora, está conseguindo impor sua hegemonia, apropriando-se do medo e da insegurança como instrumentos de poder. Na literatura, reflexões sobre fenômenos populistas mostram que a direita, por várias vezes, construiu um imaginário de “ameaça externa” ou interna junto à população, remetendo à restauração de uma ordem perdida e à convocação para medidas de urgência contra “inimigos” fictícios ou reais.[iii]

Em outras ocasiões, redefiniram políticas externas e de segurança, articulando medo, identidade e nostalgia autoritária[iv]. Assim, no âmbito latino-americano, não é possível desenhar uma fronteira nítida entre violência política e criminal quando atores paramilitares, elites econômicas e organizações do crime articulam-se em conjunto.

A direita latino-americana utiliza a “insegurança” como vetor eleitoral e de hegemonia moral. Mesmo quando esta não se origina necessariamente de uma falha governamental específica, o discurso conservador a transforma em “colapso generalizado”.

Por sua vez, governos de esquerda ou mesmo centristas e moderados são acusados de “conivência”, “fraqueza” ou “ingovernabilidade”, de modo que a narrativa transfere para o Estado progressista a responsabilidade da desordem. E então surgem soluções salvadoras autoritárias, que envolvem militarização, privatização da segurança, criminalização dos movimentos populares e endurecimento penal, todas aceitas sob o signo da emergência moral.

O crime organizado, inundado de recursos ilícitos, opera em conjunto com políticas de segurança laxas ou capturadas, e a direita consegue cinicamente mostrar isso como falha da esquerda, quando se trata, na verdade, de um sintoma da inserção subordinada no capitalismo global.

A finança desregulada alimenta o crime organizado, que por sua vez gera insegurança, usada politicamente pela direita para implementar políticas autoritárias e liberar os mecanismos de mercado para captura de recursos. Assim, a segurança não é tratada como direito público, mas como mercado e instrumento de ação política. Detrator de abordagens de “segurança cidadã”, o “Estado penal” é justamente o terreno da direita.

A geopolítica do crime organizado na América Latina

A crise de segurança pública reapareceu no centro do debate político latino-americano como uma das principais plataformas da nova direita continental para fragilizar governos progressistas, corroer a legitimidade eleitoral e reorganizar blocos conservadores em torno de narrativas de medo. O fenômeno não é novo, mas assume feições inéditas ao se articular com redes transnacionais do crime organizado, com operações midiáticas coordenadas e com um discurso securitário que se apresenta como “técnico”, mas que é profundamente ideológico.

Casos recentes mostram uma retomada agressiva da retórica de “lei e ordem” com objetivos claramente eleitorais. Governos progressistas têm sido acusados, de forma sistemática, de “conivência” com o crime, “fraqueza” institucional ou “leniência” diante de gangues e facções. Isso decorre menos da realidade objetiva da segurança e mais da construção de uma percepção pública de colapso. A direita regional tem transformado incidentes graves, porém localizados, em símbolos generalizados de ingovernabilidade.

Organizações criminosas transnacionais passaram a operar em múltiplos países simultaneamente, como México, Colômbia, Peru, Equador, Brasil e Paraguai, reestruturando mercados ilícitos, disputando fronteiras, controlando portos e, sobretudo, instrumentalizando a midiatização do terror.

Estados com capacidades desiguais enfrentam redes cada vez mais sofisticadas, e a direita tem explorado essa limitação estrutural como prova de “incompetência” dos governos progressistas. Nesses países, estão ocorrendo ofensivas legislativas e midiáticas acopladas a projetos econômicos que exigem maior controle social, redução de direitos e flexibilização de garantias constitucionais. O “neoliberalismo autoritário”[v] utiliza o medo como cimento social para aprovar reformas regressivas.

Além das disputas internas, a retórica de “narco-Estados” serve de justificativa para pressões externas por políticas antidrogas alinhadas aos EUA, principalmente no marco da DEA (Drug Enforcement Administration) e de novas iniciativas hemisféricas de controle territorial. Como ocorre no Peru, no Equador e parcialmente na América Central – por exemplo em El Salvador –, essa retórica pretende facilitar operações militares, acordos de cooperação assimétricos e o avanço de agendas antidemocráticas sob a justificativa de combate ao crime. Possivelmente uma atualização do lawfare, na qual segurança e drogas substituem corrupção como narrativa disciplinadora.

No Chile, onde a ultradireita e a direita tradicional somaram mais de 70% dos votos na eleição presidencial de primeiro turno em novembro de 2025, o esgotamento de um projeto reformista, que não conseguiu responder às demandas sociais emergentes nem restaurar a autoridade do Estado, deixou um vácuo político explorado pela direita dura, cuja narrativa disciplinadora, punitivista e autoritária reconquistou o imaginário coletivo.

Já no México, o ataque, no dia 15 do mesmo mês, de centenas de encapuzados à sede do governo mexicano, figura como um laboratório da ultradireita e uma transnacionalização do “modelo Bukele”, em referência ao presidente salvadorenho. Fantasiados de “Geração Z” e clamando por “segurança”, grupos ultraconservadores e articulados com think tanks estadunidenses testam novas formas de insurreição social midiatizada.

A estratégia regional de ativar um pânico moral, explorando fissuras sociais, é um ardil para construir consenso em torno de soluções de militarização, encarceramento em massa e suspensão de direitos, o que se vê em larga medida no Equador.

Em toda a região, o crime organizado ganha centralidade e decorre de mercados ilícitos globalizados, da financeirização do tráfico, do comércio de armas oriundas do norte global, da permeabilidade institucional e da corrupção endêmica. A resposta progressista, contudo, tem sido insuficiente. Apesar da pressão, os governos enfrentam falhas internas, desde a lentidão em reformar estruturas policiais até a coordenação regional de inteligência precária, que inviabiliza traduzir demandas sociais em políticas concretas de segurança cidadã.

Uma agenda[vi] de segurança progressista, regional e democrática na América Latina exige romper com o paradigma proibicionista que estruturou durante décadas um regime de controle territorial funcional aos interesses geopolíticos dos EUA e à reprodução das economias ilegais. A segurança cidadã não pode ser concebida como extensão do “Estado penal”, mas como reconstrução da soberania social e territorial por meio de políticas que articulem direitos, inclusão, participação comunitária e reforma das instituições armadas.

Isso implica enfrentar o crime organizado não como um “inimigo externo”, mas como parte de um ecossistema político-econômico alimentado pela desigualdade, pela financeirização das economias ilícitas e pela militarização imposta por organismos internacionais e cooperações assimétricas.

Uma agenda regional deve integrar inteligência compartilhada, políticas de drogas baseadas em saúde pública, fortalecimento de instituições civis, controle estrito das forças armadas, desmilitarização dos territórios e pactos democráticos que coloquem as comunidades, e não os interesses geoestratégicos, no centro da segurança.

Assim, desloca-se o foco da repressão para a governança democrática do território, reconhecendo que só haverá paz quando os Estados latino-americanos recuperarem autonomia política para regular seus territórios e enfrentar o entrelaçamento entre finança ilícita, violência armada e autoritarismo.

*Alexandre Favaro Lucchesi é professor visitante no curso de Relações Internacionais na UFABC. Autor, entre outros livros, de Integração financeira e regulação bancária na zona do euro entre 1999 e 2016 (Editora Dialética) [https://amzn.to/4nL03hO]

Referências


BROWN, Wendy. O Frankenstein do neoliberalismo: liberdade autoritária nas “democracias” do século XXI. In: ALBINO, Chiara; OLIVEIRA, Jainara; MELO, Mariana. Neoliberalismo, neoconservadorismo e crise em tempos sombrios. Recife: Seriguela, 2021.

CIRO, Estefanía. Por una política anticapitalista sobre drogas. Jacobin Latinoamérica, 8 out. 2025. Disponível em: https://jacobinlat.com/2025/10/por-una-politica-anticapitalista-contra-las-drogas/

GUIMARÃES, Feliciando de Sá; OLIVEIRA E SILVA, Irma Dutra de. Far-right populism and foreign policy identity.International Affairs, N.97, Vol. 2, 2021. Disponível em: https://www.cebri.org/media/docs/Guimaraes_Silva_Populism.pdf

MUGGAH, R. The Rise of Citizen Security in Latin America and the Caribbean. Journal of Policing and Development, 2017. DOI: https://doi.org/10.4000/poldev.2377

PREMRL, Peter, DOBOVŠEK, Bojan, SLAK, Boštjan. Complexities in defining and investigating financial crime. Secur J 38, 55 (2025). DOI: https://doi.org/10.1057/s41284-025-00501-4

STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo: A política do “nós” e “eles”. Porto Alegre: L&PM Editores, 2018.

Notas


[i] Global Financial Integrity (GFI), think tank que colabora com as instituições multilaterais como a ONU, OCDE e Banco Mundial.

[ii] Cf. Premrl et al. (2025).

[iii] Cf. Stanley (2018).

[iv] Cf. Guimarães e Oliveira e Silva (2021).

[v] Cf. Brown (2021).

[vi] Cf. Ciro (2025).


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
C O N T R I B U A

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES