Por MARCELO GUIMARÃES LIMA*
A “Série Trágica” de Flávio de Carvalho como um ponto limite do desenho, onde a arte registra a agonia e a morte com uma abordagem simultaneamente próxima e distanciada
1.
Em 1947, Flávio de Carvalho (1899-1973) permaneceu junto à cama de sua mãe doente e registrou em uma série de desenhos a agonia final de uma mulher idosa morrendo de câncer. A série, com o título descritivo: “Minha mãe morrendo” (mais tarde também conhecida como “Série Trágica”), foi exibida em 1948.
Esta série de retratos, pois são de fato retratos únicos formando uma máscara mortuária composta, reúne economia de meios e sensibilidade tátil traduzindo os movimentos do sofrimento humano extremo em formas gráficas claras e urgentes. Apresentam o pathos da morte com urgência característica e, ao mesmo tempo, com relativa sobriedade. Ou seja, de um ponto de vista próximo ao objeto representado e, ao mesmo tempo, com o tipo de distanciamento próprio da visão do artista no processo de observar e registrar as formas inerentemente instáveis e transitórias da realidade.
Pois, de fato, uma espécie de identificação oblíqua, enviesada, com as figuras da realidade é para o artista a condição que aproxima a mente (e a conexão mente-mão, o pensar como fazer que caracteriza o desenho) das realidades das coisas e processos, quer dizer, das suas verdadeiras configurações. Abordagem enviesada no objeto da visão como outro objeto, no ato de ver como outra visão, no tempo próprio da visão como outro tempo. Um tempo prolongado ou suspenso por meio do poder e das restrições e limitações da forma estética.
Nas artes, a representação funerária teve sempre por objetivo preservar a “semelhança” da pessoa falecida contra a aniquilação, o desaparecimento próprio da morte. Na representação gráfica (desenhada, pintada, entalhada, esculpida) de diferentes tempos e lugares, o que existia anteriormente é feito presente novamente aqui, agora e para o futuro, a representação faz apelo à memória, contrapondo-se aos poderes destrutivos do tempo.
Na série de Flávio de Carvalho, o foco está no próprio evento: o evento final em que o sujeito humano é revelado em toda a sua fragilidade, no último evento universal da vida. O sujeito, ou seja, nós mesmos, na particularidade e universalidade de nossa condição como criaturas de carne (universalmente filhos ou filhas), ligados pela carne e pelo espírito aos outros e vivendo, assim, as venturas e as desgraças de todos e cada um, nas alegrias e misérias da vida.
2.
O retrato, qualquer retrato, é sempre uma “máscara mortuária”, o registro do que foi e já não é, transformado pelo tempo. Toda arte funerária é um Memento Mori, a lembrança dos falecidos que serve para lembrar aos vivos sua própria condição mortal. Uma “ancestralidade” artística ou histórico-artística da série de Flávio de Carvalho pode talvez ser encontrada na escultura funerária da Baixa Idade Média: os túmulos transit.
O túmulo transit retratava o rei, o nobre ou alto dignitário da Igreja, no processo de transformação física pela morte, simbolicamente representados junto com uma figura cadavérica em contrapartida, ou parcialmente transformados em um cadáver.[1] A obra de arte moderna, claro está, reflete uma experiência e um conceito de tempo humano e de transitoriedade humana diversos da religiosidade medieval, e uma perspectiva própria sobre a dimensão ideológica, isto é, sobre as funções ou “usos” da arte, conscientes ou não. Própria, mas talvez não completamente distante.
Quando foram exibidos pela primeira vez em São Paulo, os desenhos da “Série Trágica” foram recebidos com choque e desorientação do público.[2] O que contribuiu para estabelecer a reputação do artista como uma espécie de “artiste maudit” do Modernismo brasileiro.
Flávio de Carvalho foi um dos artistas mais importantes e inovadores da Arte Moderna no Brasil, e ainda assim, por muito tempo, uma figura relativamente marginal na narrativa da história da arte brasileira.[3] Ele foi, de fato, um pioneiro, na primeira metade do século XX, de iniciativas artísticas que só na segunda metade do século seriam reconhecidas como pertencentes às variedades de “arte conceitual” e “arte de performance” (por exemplo: Experiência n. 2, de 1931, e Experiência n. 3, em 1956).
3.
Flávio de Carvalho foi a seu modo um polímata, um engenheiro por formação e prática profissional inicial, que se tornou arquiteto e artista: pintor, escultor, artista gráfico (desenhista, gravador). Podemos observar que a unidade de sua obra diversificada é dada pelas formas e conceitos subjacentes ao desenho.
A imediatez e espontaneidade do desenho como efeito do domínio do artista sobre seus meios mentais e físicos, e ao mesmo tempo como resultado da natureza exploratória e de busca da forma própria do ato de desenhar (que inclui hesitações, novos começos, a acumulação de camadas de marcas e ideias, incompletude, etc.), são qualidades presentes nas diversas criações de Flávio de Carvalho: no elemento gestual característico e na energia gráfica informada, na clareza da linha e na vitalidade buscada das formas, no espírito experimental, seja em obras arquitetônicas, pintadas, desenhadas ou esculpidas, ou seja, na imanência consciente da obra ao seu tempo e lugar, quer dizer, na mortalidade da própria arte.
O conceito da obra de arte como experimento – como forma aberta (dinâmica, móvel, necessariamente incompleta, etc.) como exploração, e outros conceitos relacionados – é ideia central na Arte moderna. A experimentação e a exploração têm sido conceitos centrais na prática do desenho na história da arte ocidental desde o Renascimento, ou, em suas formas mais conscientes, pelo menos desde a Era barroca.
Podemos talvez dizer que, de certo modo, foi do “laboratório” da prática do desenho que emergiram algumas das formas, atitudes, direções e ideias dos movimentos da Arte Moderna. Considerando a designação “desenho” como abrangendo não apenas o grupo tradicionalmente definido de materiais e técnicas, mas também todos os possíveis casos híbridos, sobreposições, casos limítrofes, a mistura e a fusão entre desenho, pintura e outras artes gráficas, etc.
“Desenho”, ou seja, a identidade imediata, revelada e afirmada, do processo e do produto. Como exemplo, podemos citar o grande número de esboços, desenhos preparatórios, aquarelas, pinturas preparatórias ou complementares e esboços pintados, etc., de Picasso no processo de criação das Demoiselles d’Avignon (1907), a “obra inaugural” da história da pintura moderna e em si mesma um grande esboço, uma obra “incompleta”, em aberto.
Em seu elemento ou fundamento mais básico, o desenho é a experiência da forma emergindo no tempo, ou da forma como uma modalidade do tempo.
*Marcelo Guimarães Lima é artista plástico, pesquisador, escritor e professor.
Versão adaptada do artigo publicado originalmente revista Imprint – Journal of the Print Council of Australia [https://mguimaraeslimatextos.blogspot.com/2022/03/drawing-in-limit-notes-from-temporal.html].
Notas
[1] Panofsky, Erwin (1992) Tomb sculpture: four lectures on its changing aspects from ancient Egypt to Bernini, New York: H.N. Abrams.
[2] Stigger, Veronica (2009) Retratos dentro da morte- a Série Trágica de Flávio de Carvalho, Crítica Cultural, vol 4, n. 2, dezembro. Disponível em http://www.portaldeperiodicos.unisul.br/index.php/Critica_Cultural/article/view/131
[3] Centro Cultural do Banco do Brasil (2012): Flávio de Carvalho – A revolução modernista no Brasil. Catálogo da exposição, Luzia Portinari Greggio (curadora), Brasília. Disponível em www.bb.com.br/docs/pub/inst/dwn/Flavio2.pdf






















